Tomei a liberdade de apropriar-me
deste prefácio para prestar uma homenagem a minha amiga e parceira
de trabalho, Nair Brito. Esta mulher é uma grande personalidade, uma
revolucionária que promove ações e transformações no panorama da aids,
ocupando dignamente a liderança que possui entre as pessoas infectadas
pelo HIV/aids.
Multifacetada, é uma das pioneiras na realização de intervenções junto
a mulheres soropositivas no Brasil, coordenadora e idealizadora da
Rede Paulista de mulheres com HIV/Aids, pedagoga, militante,
membro do Grupo de Incentivo à Vida (GIV), companheira do Pepe, mãe
do Robertinho, repleta de muitos amigos...
Conhecemo-nos há uns dez anos, quando trabalhávamos juntas em uma
creche da periferia de São Paulo. Sua inquietude e capacidade de inovação
já apareciam desde aquela época. Uma boa lembrança que tenho é que
ela propôs a existência de um “correio” na creche. Tínhamos duzentas
e vinte crianças, e todo mundo escrevia carta! A meninada adorava!
Quem não sabia escrever mandava desenhos, e eu, que era coordenadora,
enviava comunicados e textos para os educadores através do “correio”.
Lembro ainda de uma festa na qual ela fazia mágicas para as crianças.
Hoje, acho que faz mágica com a própria vida!
Há sete anos descobriu-se portadora do HIV, estava separada e morando
com seu filho. Como a maioria da pessoas, sentiu o impacto inicial
do resultado positivo e pensou em suicidar-se.
Quando a Nair apareceu com a triste notícia, a primeira sugestão foi
a de que ela procurasse um grupo de ajuda mútua. Decidimos ir ao Gapa
e marcamos de nos encontrar no metrô Paraíso. Mais de duas horas e
meia de espera e nada. Ela não apareceu. Ah! Não me animei, não
tava bem!
Eu insistia na história do grupo e ela sempre dizia: Eu vou, você
vai ver como eu vou. Depois, sozinha, começou a freqüentar o Gapa,
e foi se inserindo no universo da aids.
No começo foi assim: Gapa, exames, trabalho, licenças, medicamentos,
preocupações com o filho, com a mãe etc.
O tempo passou e a entrada no mundo da aids fez com que ela rapidamente
se transformasse em uma militante dentro dessa causa. A cada dia intrigava-se
com questões institucionais, públicas, sociais e identificava a necessidade
de espaço e apoio para as mulheres infectadas pelo HIV.
Evidentemente, pensar em um trabalho desse tipo, conferia um sentido
ao seu viver. Reunir e auxiliar mulheres com aids, inconscientemente
tinha relação com reparar partes de si mesma. Mas apesar deste aspecto,
que creio verdadeiro, o surgimento do sonho de realizar o trabalho
com as mulheres também estava atrelado a uma utopia. Nessa época,
já tínhamos uma militância política e social e compartilhávamos o
desejo de transformações no panorama da sociedade.
Nair sempre foi uma visionária e alguém que olhava para o mundo além
do seu umbigo. Estar infectada pelo HIV recrudesceu a certeza da relevância
de realizar uma intervenção e configurou o campo que escolheria para
desenvolver sua atuação.
Foi para o GIV em 1993, em 1994, iniciou o Toque de Mulher , espaço
só para mulheres soropositivas e, em 1996, a Rede Paulista de Mulheres
com HIV/Aids1.
1 - Estes
trabalhos encontram-se detalhados no capítulo 1.
Nesse meio tempo, muitas histórias: problemas de saúde, amigos sumidos,
amigos solidários, reflexões sobre o trabalho. Houve a fase na qual
parecia que a oficina de silk- scream era a saída (lá vamos nós vender
camisetas!), depois não era mais isso! Vamos aos bombons!
Um dos grandes encantamentos que viveu nesse percurso foi a Ação pela
Cidadania! Vibrava com a perspectiva humanitária do movimento, engajou-se,
fez parcerias.
Também era muito importante o grupo de teatro que existia no GIV,
o qual fazia apresentações no interior. Com certeza, esse contato
com as cidades distantes de São Paulo serviu como inspiração para
a Rede.
No meio disso tudo, o resultado dos exames, CD42
que sobe, CD4 que desce. 2 - O exame
de CD4 refere-se à quantidade de células de defesa do organismo.
Tudo vivido intensamente por uma mulher intensa!
Não poupamos reflexões sobre a morte! Lembro-me de uma tarde na calçada
de um Café na Vila Mariana, quando Nair, em um delicado movimento,
ergueu uma xícara de porcelana branca e disse: A vida é esta xícara
de café. Sim, a vida... Um movimento delicado, uma xícara de porcelana,
um conjunto de momentos preservados com perseverança.
Um momento importante desta trajetória foi o projeto da Rede. Agenda
lotada, saúde frágil e problemas a resolver. Onze horas da noite,
no penúltimo dia do prazo, aparece Nair, a datilógrafa, com uma maquininha
de escrever (nem tínhamos computador!). Às cinco da manhã, depois
de muito café, sai o projeto da Rede. Tempos depois, a alegria com
a aprovação do projeto! O trabalho do primeiro ano da Rede foi maravilhoso
e ela ficou muito empolgada. Tinha achado um caminho!
Nesse percurso, foi ganhando espaço, fazendo apresentações em encontros
e seminários nacionais e internacionais. Foi eleita representante
da Comunidade Internacional de Mulheres vivendo com HIV/Aids, na América
Latina. Falou de Sorocaba à Quebec. Encantou-se com a força das mulheres
africanas. Esteve na Colômbia, no Chile, Peru, Equador, França e em
Londres. Contribuiu para a organização das mulheres com HIV/aids,
principalmente no Brasil e na América Latina.
Deu seu recado, apontou as necessidades e direitos das mulheres soropositivas,
incentivou a formação de grupos. Iluminada que é, deixou em cada lugar
por onde passou seu sorriso largo, um feixe de esperança e uma certeza:
há muito o que fazer.
Colocou sua imagem e história a serviço da causa, e isto teve um preço.
Por exemplo, o transtorno causado junto a seu ex-marido, quando uma
grande revista modificou seu depoimento, colocando, na capa, sua foto
estampada com os dizeres: Peguei aids do meu marido3
. 3 - A revista
queria fazer uma reportagem com mulheres que se infectaram por meio
de relacionamento com o marido, o que não foi o caso de Nair. Como
não encontrava mulheres que expusessem o rosto, fez uma “adaptação”,
colocou a sua imagem associada ao depoimento de outra mulher.
Nair revolucionou o percurso da aids no País, sendo a primeira pessoa
no Brasil a entrar na Justiça para receber a combinação de anti-retrovirais,
conhecida por “coquetel”. Na seqüência, várias ações foram impetradas
e as ONG entraram com uma representação para que o Estado distribuísse
gratuitamente os medicamentos.
A exposição muitas vezes foi desgastante, principalmente quando coincidia
com momentos de adoecimento.
Sempre me surpreendi com a força e o desejo de viver que parecem sair
de suas entranhas. E, com certeza absoluta, não estou exagerando.
De tudo ela já enfrentou, tal como horríveis dores físicas, várias
doenças oportunistas, preconceito, boicotes, perdas afetivas, falta
de atendimento adequado, problemas financeiros... E ela resiste!
Em uma ocasião na qual ficou muito doente, foi internada no meio da
madrugada no pronto-socorro de um hospital público. O médico informou-lhe
que seu estado era gravíssimo e que faria o possível. No dia seguinte,
deram-lhe alta por falta de vagas para internação! E ela não foi embora,
isto porque sentia que estava muito mal e sabia que não podia sair
do hospital. Foi um dia horrível. Impressionante a falta de escuta
da médica em relação ao que a Nair dizia, e até mesmo da observação
do seu quadro, pois ela estava com o CD4 baixíssimo e com suspeita
de tuberculose ou pneumocystis carini .
Com a aids, Nair aprendeu a conhecer seu corpo. Apesar de seu estado
emocional alterado, inclusive por uma febre muito alta, tinha noção
sobre suas más condições de saúde. Confiava mais na avaliação que
fazia do que na avaliação médica, a qual estava atrelada menos a sua
saúde e mais à infra-estrutura do hospital.
Armamos uma grande discussão, pedimos a intervenção de sua médica,
o GIV e o Gapa denunciaram e, escândalo feito, surgiu uma vaga para
internação.
A partir daí, foi muito bem tratada, mas, no dia seguinte, o caso
agravou-se ainda mais e ela quase morreu. Durante a maior parte do
período de internação a indicação na portaria era de estado grave.
Mais de quinze dias de internação e dois meses de tratamento foram
necessários para que ela começasse a se recuperar.
Em um País onde a saúde é tão doente quanto as doenças que deveria
tratar, Nair, como tantas outras mulheres, precisa brigar para sobreviver.
Cabe aqui uma pergunta: E as mulheres que vão embora, aquelas que
não dizem não? Aquelas que não têm visitas e ONG? Aquela D. Fulana,
que é pobre e desinformada? Onde morrerá? No caminho de volta para
casa?
Em outra ocasião, o abuso cometido contra Nair foi o fato de realizarem
uma microcirurgia para diagnosticar possível tuberculose óssea e perderem
os resultados dos exames.
A força com que enfrenta todas essas situações é a mesma com a qual,
por mais de dois anos, cuidou até a morte de sua mãe, que estava velha
e doente.
Poderia continuar descrevendo outros momentos da trajetória desta
mulher fenomenal, mas acho que as passagens aqui descritas já permitem
perceber a força que ela tem.
Sua trajetória, do impacto inicial à superação e luta pela qualidade
de vida, assemelha-se a de outras mulheres que anonimamente confrontam-se
com a aids e sentem em suas vidas o impacto da infecção pelo HIV .
O trabalho que realizamos, e que apresentamos neste livro, tem como
meta o empoderamento das mulheres com aids. A história de Nair é um
exemplo vivo de que isto não é um sonho, mas sim uma possibilidade.
A mulher que não apareceu no metrô para ir ao grupo é bem diferente
da mulher que hoje organiza e lidera o grupo. Ela é o retrato vivo
do empoderamento feminino! Da mulher que não se deixa coisificar e
que ocupa o lugar de sujeito e não de objeto, na vida e no cenário
da epidemia da aids.
Eis uma mulher livre, vibrante, com profundidade, lucidez e sabedoria,
que construiu um viver feminino bem à frente de seu tempo.
Nessa homenagem, junto minha voz ao coro de pessoas que se sentem
privilegiadas por conhecê-la e compartilhar essa caminhada. Por fim,
deixo aqui a resposta a uma pergunta sua: Sim , tudo isto vale a pena!
O seu existir nos ensina e faz a diferença nas nossas lutas, nas nossas
vidas.
Disse o poeta que “Tudo vale a pena se a alma não é pequena”. O que
dizer, então, quando a alma é imensa e iluminada?
Elizabete
Franco Cruz, inverno de 1999.
A elaboração de material que registrasse
o esforço de abordar questões relacionadas ao HIV e à auto-estima
com base nas diferenças de gênero, é fruto de um trabalho competente
de mulheres preocupadas em focalizar a aids do ponto de vista social,
destacando aspectos relevantes do cotidiano e do protagonismo político
que vêm conquistando.
Com este propósito surgiu o Fios
da Vida: tecendo o feminino em tempos de aids que, a partir da experiência
da Rede Paulista de mulheres com HIV/aids, vem a ser um instrumento
de empoderamento de mulheres vivendo com HIV/aids.
Este empoderamento é construído
através de oficinas de trabalho que incluem informações sobre DST,
aids, negociação com o parceiro do uso do preservativo, sexualidade,
direitos reprodutivos etc. entrelaçadas a aspectos lúdicos e interativos
com o intuito de oferecer ferramentas que permitam às mulheres vivendo
com HIV/aids refletirem e reivindicarem melhores condições e qualidade
de vida.
Os fios desse tecido social, protagonizado
pelas mulheres, devem ser referidos contínua e ininterruptamente pelas
relações entre o governo e a sociedade civil no esforço conjunto pela
elaboração e adoção de medidas preventivas que possam esclarecer e
orientar a população feminina sobre suas dúvidas relativas às DST
e aids e sobre sua própria sexualidade.
Paulo
Roberto Teixeira
Coordenador
Coordenação Nacional de DST e Aids