Primeiro
Seminário Regional de Capacitação para Mulheres Vivendo com HIV/Aids
na América Latina e no Caribe
ORGANIZADO PELO
COMITÊ LATINO-AMERICANO E DO CARIBE DE MULHERES VIVENDO COM HIV/AIDS,
LIGA COLOMBIANA DE LUTA CONTRA AIDS E UNAIDS Santa Fé de Bogotá. Colômbia,
Janeiro de 1999
APRESENTAÇÃO
Apesar da epidemia de aids na América
Latina e no Caribe ter, inicialmente, atingido a população masculina,
desde 1990 o número de mulheres infectadas tem crescido rapidamente.
Entretanto, os esforços voltados para o desenvolvimento de políticas
de prevenção e assistência específicas para a população feminina ainda
são tímidos, tanto em âmbito regional quanto nos diferentes países.
Descobrir-se portador do HIV é
uma experiência crítica para qualquer pessoa, que muitas vezes tem
que se defrontar com a desinformação a respeito das alternativas para
continuar levando uma vida saudável e feliz e com os preconceitos
próprios, dos familiares e amigos. Várias mulheres, ao receber seu
diagnóstico, vivenciam solitárias a dor de, junto com essa descoberta,
conhecer também a sorologia positiva para o HIV do parceiro e entrar
em contato com dúvidas a respeito da fidelidade e atividades sexuais
dele.
Os serviços existentes para o atendimento
aos portadores do HIV não possuem um olhar e/ou uma orientação sobre
as necessidades específicas das mulheres vivendo com HIV, e os serviços
de saúde da mulher não possuem o olhar sobre a soropositividade e
o HIV. Com freqüência estas mulheres se sentem como se fossem as únicas
pessoas no mundo portadoras do vírus, e não sabem a quem pedir ajuda,
apoio ou orientação. Ao mesmo tempo, muitos profissionais de saúde
ainda ignoram as necessidades particulares das mulheres vivendo com
HIV/aids, especialmente no que diz respeito a aspectos da sua saúde
sexual e reprodutiva.
Não apenas no Brasil, mas em toda
a América Latina e no Caribe, a maior parte dos grupos de apoio para
pessoas vivendo com HIV/aids estão voltados para homens, havendo dificuldades
em perceber e priorizar as demandas das mulheres.
Além disso, os grupos de mulheres,
feministas ou não, latino-americanos e caribenhos não costumam desenvolver
atividades de atenção ou suporte direto para problemas de saúde específicos.
Assim, as mulheres com HIV se mantém isoladas no atendimento às suas
necessidades.
Diante deste quadro, desde 1996,
no Brasil, começaram a ocorrer eventos voltados para a discussão e
organização das mulheres portadoras do HIV/aids, como a Rede Paulista
de Mulheres com HIV/aids do Grupo de Incentivo à Vida de São Paulo,
responsável pela organização de uma agenda anual para tratar de assuntos
relacionados a mulheres e aids, destacando-se o "I Encontro do Estado
de São Paulo de Mulheres e Aids" (realizado em Juquitiba-SP e organizado
pela APTA) e o "VHIVER Mulher" (realizado em Belo Horizonte e organizado
pelo Grupo VHIVER). ganizado pelo Grupo VHIVER).
No âmbito regional, em maio de
1997 foi organizado, pela Liga Colombiana de Luta contra a Aids e
UNAIDS, o "Primeiro Encontro Nacional de Mulheres Vivendo com Aids",
ao qual compareceram representantes de diversos países da região.
Durante a "V Conferência Panamericana
de Aids" em Lima/Peru (1998), dez mulheres vivendo com HIV/aids do
Brasil, Chile, Colômbia, Guatemala, México e Peru se reuniram para
discutir a situação e sugerir possíveis soluções.
O resultado desta reunião foi a
proposta de realização do "Primeiro Seminário Regional de Capacitação
para Mulheres Vivendo com HIV/aids da América Latina e do Caribe",
visando proporcionar às mulheres da região os conhecimentos e habilidades
necessárias para o seu fortalecimento pessoal e para a implementação
de projetos de prevenção, atenção e apoio a mulheres vivendo com HIV/aids.
Para a organização deste Seminário,
foi sugerido que cada representante aplicasse um questionário a uma
amostra de mulheres em seu país, antes da realização do evento, visando
subsidiar as atividades do seminário e as propostas de continuidade
do trabalho em cada país.
O envolvimento das mulheres na
aplicação dos questionários referendou as discussões do Seminário,
pois além do mapeamento das condições e necessidades básicas vividas
pelas mulheres com HIV/aids da América Latina e Caribe, possibilitou
a estas mulheres uma discussão mais elaborada e o conseqüente aprofundamento
das questões mais amplas que envolvem o tema mulheres e aids em cada
país de origem e em toda a região.
A estratégia de possibilitar o
protagonismo das participantes na elaboração, execução e avaliação
do Seminário foi um desdobramento das experiências vivenciadas anteriormente
no Brasil, a partir dos trabalhos relatados nesta publicação (grupos
de mulheres do GIV e Mutirão).
Acreditamos serem estes valiosos
instrumentos de apropriação do saber e empoderamento feminino.
As vivências compartilhadas nos
grupos de São Paulo e durante o seminário em Bogotá traduzem, em diferentes
planos, a situação vivida pelas mulheres com HIV/aids: difíceis condições
sociais, econômicas, culturais e políticas que obstaculizam a conquista
da cidadania, ou seu exercício.
Os motivos são vários, desde as
constantes violações dos direitos humanos, os regimes opressores dos
diferentes governos, a baixa qualidade de atenção à saúde. Fatores
que operam sobre um feminino submetido, que desconhece suas possibilidades
de acesso e de direitos.
Tanto quanto as experiências relatadas
no Fios da Vida, o Encontro de Bogotá trouxe à luz os sonhos, a realidade,
as aspirações e o desejo de mulheres com HIV/aids, que a partir das
experiências nos grupos passam a pincelar a vida com cores que são
as suas, escrevendo sua trajetória através de um olhar que não se
distancia das demais, mas as remete a horizontes mais amplos, deixando
transparecer a força das suas cores e abrindo espaços para novas experiências,
as quais contemplarão um futuro mais digno e inclusivo para todas.
A idéia de trazermos um fragmento
do seminário nesta publicação deriva do entendimento de que o Seminário
de Bogotá também compõe, como as outras vivências apresentadas e discutidas
aqui, a tessitura dos fios da vida.
O SEMINÁRIO
Ao seminário, ocorrido de 27 a
31 de janeiro de 1999, compareceram 34 mulheres com HIV/aids, representando
19 países da América Latina e do Caribe.
Partindo do objetivo de fortalecimento
destas mulheres, buscou-se estimular a participação de todas, intercalando
depoimentos, debates e discussões sobre as realidades nacionais com
exposições, palestras e oficinas, visando não apenas criar espaços
de reflexão e troca, como também de aprendizagem técnica e teórica.
Compartilhando
experiências
(Relatos das participantes sobre
as condições em que vivem as pessoas com HIV/aids nos respectivos
países.)
As pessoas com menos de 300
CD4, sem recursos econômicos, entram num sorteio para receber medicação
(Chile).
Na minha cidade, que é bem pequena,
existem 27 homens com aids, e 30 mulheres.... No país, hoje, dois
times de futebol, Nacional e Peñarol, doam 5% dos seus ingressos para
ajudar o Programa Nacional de Aids a comprar medicamentos (Uruguai).
Até a igreja tem violado o direito
à confidencialidade... Não querem ver a realidade de que há um problema
grave de aids no país... ( El Salvador...).
Em meu país, pelo ambiente provinciano,
vivemos no anonimato e sem comunicação... depois de um ano que sei
que estou infectada ainda não conheço outra pessoa com aids no país...
(Bolívia).
Tema 1.
A vulnerabilidade da Mulher ao HIV
(Sinopse das apresentações das
Dra. Lili Faas, Venezuela - Diretora da ONG - Contrasida, divisão
de grupo Prosalud e Albis Cruz, Diretora de Educação Fedaeps - Quito
Equador)
A pertinência a um sexo transcende
as características físicas para incluir um grande número de variáveis
culturais: costumes, educação, tradições e normas que regem a sociedade.
Deste modo, a desigualdade das
mulheres em relação aos homens se manifesta através de aspectos econômicos,
culturais, ideológicos, legais, laboratoriais, salariais, profissionais,
educativos e até na linguagem. E as mulheres pobres são mais afetadas
por esta desigualdade.
O discurso médico em relação à
aids se constitui em torno da figura masculina, criando um véu de
ignorância em relação às mulheres. Este discurso contribuiu para criar
um espaço de invisibilidade, onde as mulheres não se reconhecem como
vulneráveis à infecção ao HIV.
As desigualdades no acesso aos
serviços de saúde que afeta as mulheres no geral se dão também nos
casos de aids.
Para romper o véu de invisibilidade
que se cria em torno da epidemia de aids em sua versão feminina é
necessário refletir sobre:
os modos como lidamos com nossa saúde; as histórias sexuais dos
nossos parceiros; os modos de prevenção das
DST/aids;
a homofobia que leva a um grande número de homens
a negar as suas práticas sexuais com outros homens;
as formas de violência intrafamiliar que as mulheres
sofrem; a necessidade de mais estudos
e pesquisas sobre o impacto do HIV no corpo feminino e as interfaces
entre saúde reprodutiva e infecção pelo HIV.
Compartilhando
experiências
(Relatos das participantes sobre
a situação das mulheres com HIV/aids nos diferentes países.)
Éramos mulheres submissas, em
geral assumíamos o papel de vítimas... agora a situação é diferente...
(Brasil).
Fatores
que afetam a vulnerabilidade das Mulheres ao HIV
O muco vaginal atua como barreira nas paredes da vagina e do colo
uterino; é lubrificante, e tem células cuja função é ativar a resposta
imunológica do trato genital. Nas mulheres adolescentes,
a superfície do trato genital é mais delgada, e, portanto, menos eficiente
como barreira contra o HIV. A produção de muco é menor, e portanto
o papel protetor do muco é menos eficiente. A má nutrição inibe a produção
da mucosa vaginal, inibe o processo de cicatrização, deprime o sistema
imunológico e promove a laceração durante a penetração. O sexo não consensual,
ou a violência sexual, inibe a produção da mucosa e aumenta a possibilidade
de trauma durante a penetração. Falta poder às mulheres
para negociar o sexo mais seguro, a orientação sobre saúde sexual
e reprodutiva, e o acesso à educação, a oportunidades econômicas e
a serviços de saúde de qualidade. Nas mulheres menopausadas
a mucosa vaginal é mais delicada, e a produção de muco é menor, o
que aumenta a possibilidade de infecção; além disso, não existem programas
de prevenção ou orientação sexual voltados para esta população.
Recomendações
1.
Incentivar visitas periódicas das mulheres ao ginecologista, visando
diagnosticar e tratar precocemente qualquer afecção do trato genital;
2. Desenvolver campanhas de prevenção
dirigidas a mulheres maduras; 3. Realizar campanhas maciças
de informação e distribuição do condom masculino e feminino; 4. Criar serviços telefônicos
de emergência para prestar assessoria médica, psicológica e jurídica
para mulheres violentadas; 5. Fortalecer os grupos de mulheres
portadoras de HIV, disseminando informações adequadas sobre saúde
reprodutiva e tratamentos.
Tema 2.
O Fortalecimento das mulheres
(Sinopse da apresentação da Dr.ª
Lídia E. Santiago, PhD Recinto de Ciências Médicas -Universidade de
Porto Rico.)
Para alguns autores, o fortalecimento
pessoal se dá a partir da participação, em grupos organizados, onde
o indivíduo aprende a exercer habilidades de argumentação, escuta,
reflexão e análise. O processo de fortalecimento requer a identificação
das causas da opressão, o reconhecimento de que todos possuímos algum
nível de poder e de que temos capacidade de transformar as situações
de opressão. Reconhecer e validar o poder do outro, no processo grupal,
produz um compromisso entre os participantes do grupo e permite que
possamos reconhecer nossas próprias práticas opressoras. A saúde é
um direito de todos, mas poucos detém os recursos necessários para
o bem-estar. Promover habilidades e facilitar espaços para o desenvolvimento
dos poderes individuais constitui uma tarefa para reflexão e ação
de todas as mulheres.
Neste processo é necessário: escutar as experiências
de vida das participantes, de modo a transformá-las em co-investigadoras
das reflexões sobre as diferentes situações que afetam a vida de cada
uma; desenvolver um diálogo
sobre as situações vivenciadas que permita que todas possam compartilhar
suas distintas interpretações da realidade; problematizar as situações
vividas, de modo que se possam identificar as causas dos problemas,
e enfrentá-los.
Recomendações
As mulheres vivendo com HIV/aids devem ser co-responsáveis na tarefa
de diminuir a discriminação contra as pessoas vivendo com HIV; A mulher portadora do HIV
pode levar informação e educação sobre HIV/aids para outras mulheres.
Compartilhando
experiências
(Relatos das participantes sobre
o seu fortalecimento pessoal a partir de viver com HIV.)
Sou uma enfermeira pressionada
pelo meu diagnóstico. Aprendi que só sentindo-me fortalecida terei
capacidade de lutar por mim mesma e por minha saúde. (México)
Desde que descobri minha positividade
me fiz pública... Não havia motivos para me esconder, não havia cometido
nenhum crime, e estava consciente de meus direitos como cidadã...
(Brasil)
Tema 3
- Atenção em saúde na perspectiva de gênero
(Sinopse da apresentação do Dr.
Henry Ardila, M.D. Liga Colombiana de Luta contra a Aids, in memoriam)
A atenção à saúde numa perspectiva
de gênero para mulheres vivendo com HIV depende de uma complexa rede
de fatores que transcendem o nível biológico.
Embora o diagnóstico da infecção
pelo HIV na mulher se realize do mesmo modo que no homem, a partir
de dados clínicos, epidemiológicos e laboratoriais, poucos estudos
têm enfocado as diferentes manifestações do HIV em homens e em mulheres.
Sabe-se que alguns problemas são
mais freqüentes ou específicos de mulheres, como os canceres de vulva,
colo de útero e região perineal; os problemas ginecológicos, como
a candidíase, as úlceras genitais e o herpes genital e o condiloma
acuminado, as alterações de fertilidade e do ciclo menstrual.
O uso de métodos para evitar gravidez
também deve ser cuidadosamente acompanhado por médicos, pois alguns
métodos como alguns anovulatórios hormonais e o DIU podem facilitar
a ocorrência de problemas ginecológicos em mulheres portadoras de
HIV. Deve ser feito um grande esforço para ampliar a disponibilidade
do condom feminino, principalmente como alternativa para mulheres
que têm alergia ao látex, ou vivem situações de total impossibilidade
de negociação do condom masculino com seus parceiros.
A inclusão de aspectos sociais,
da perspectiva de gênero e dos direitos humanos são fundamentais para
que existam programas adequados de atenção integral para mulheres
vivendo com HIV.
Compartilhando
experiências
(Relatos das participantes sobre
suas mudanças na perspectiva de vida a partir de viver com HIV.)
A mulher que vive com HIV na
Venezuela enfrenta muita discriminação nos âmbitos sociais, culturais,
econômicos e políticos. Por isso tomamos a iniciativa de formar o
Grupo de Mulheres Ativistas Soropositivas, para nos fortalecer e nos
revalorizarmos como seres humanos... (Venezuela)
Sinto que Deus me ama muito,
por estar me dando a oportunidade de viver para mim, para meus filhos,
e também para outras pessoas... (Guatemala)
Tema 4
- Direitos Sexuais e Reprodutivos
(Sinopse da apresentação da Dr.ª
Argelia Londoño, Colômbia.)
Os direitos humanos são valores
que representam aspirações éticas da humanidade: regulam as relações
entre homens e mulheres, e destes com o estado.
Os direitos humanos se fundamentam
na dignidade da pessoa humana, e são um limite para o exercício arbitrário
do poder. Os direitos sexuais e reprodutivos são direitos humanos
que apontam para o exercício livre, satisfatório, seguro e saudável
da vida sexual e reprodutiva, e incluem:
Direito à vida - atos sexuais e/ou
reprodutivos não podem colocar vidas em risco; Direito à liberdade - de escolha sobre
com quem, quando e como ter relações sexuais e/ou procriar; Direito à Integridade física, psíquica
e social - os atos sexuais e reprodutivos devem recusar toda forma
de violência;
Direito à segurança no exercício da sexualidade;
Direito à intimidade;
Direito à igualdade entre os sexos - na liberdade de escolhas sexuais
e reprodutivas;
Direito à saúde sexual e reprodutiva;
Direito à educação e informação para o exercício consciente dos direitos
sexuais e reprodutivos.
Recomendações
As mulheres devem buscar garantir
seus direitos sexuais e reprodutivos: Divulgando os direitos
das mulheres que têm apoio legal; Fazendo pressão para o
cumprimento dos acordos internacionais de proteção aos direitos das
mulheres; Estimulando a promoção
de ações educativas em saúde sexual e reprodutiva; Lutando para garantir a
qualidade dos serviços de saúde; Participando de instâncias
públicas onde se definem políticas.
Compartilhando
experiências
(Relatos das participantes sobre
viver com HIV.)
A aids para mim tem significado
metas, luta para conseguir o que preciso para viver... (Guatemala)
Quando fui diagnosticada, pensei
que tinha direito à eutanásia... Mas perder a coragem é perder tudo...
e isto não podia ser...levantei minha moral, para reprogramar minha
vida, na perspectiva de ser soropositiva... (Bolívia)
Oficina
de elaboração de projeto a partir do Enfoque Lógico
(Coordenação: Dr. Jeff Stanton,
LCLS.)
Todo projeto requer um desenho
que parte da análise de um problema e seus determinantes. O enfoque
lógico identifica causas e efeitos dos problemas e é uma metodologia
fundamental para desenhar projetos. A utilização desta metodologia
durante o seminário permitiu que se identificassem os seguintes problemas:
A ausência de uma organização Latino-americana de Mulheres vivendo
com HIV, em função do desinteresse de muitas mulheres infectadas e
indiferença de órgãos governamentais;
A falta de visibilidade das mulheres vivendo com HIV também dificulta
a formação de grupos com esta especificidade. Frente a estes problemas
foram apontadas as seguintes alternativas: O tema dos direitos sexuais
e reprodutivos é muito amplo e, portanto, deve-se fazer um esforço
para delimitá-lo frente a populações e problemas específicos: mulheres,
adolescentes, crianças, com e sem HIV, em situação de maior ou menor
vulnerabilidade social. Usar o termo "cidadã",
ao invés de "mulher", pois reforça a conotação política dos nossos
esforços junto às mulheres vivendo com HIV; O fortalecimento individual
e grupal deve ser o eixo central de todo trabalho com mulheres vivendo
com HIV visando reduzir sua mortalidade e melhorar a qualidade de
vida.
UM BREVE
RETRATO DAS MULHERES COM HIV/AIDS DA AMÉRICA LATINA E CARIBE
(Extraído dos 460 questionários
aplicados e preenchidos por mulheres de 19 países dessa região.)
Embora não possamos considerar
o perfil aqui apresentado como um retrato fiel do conjunto das mulheres
portadoras do HIV da região, pelo modo como as mulheres foram incluídas
na pesquisa, supomos ser este retrato bastante aproximado, inclusive
pela discussão dos resultados que promovemos com as participantes
ao final do Seminário, que possibilitou um maior entendimento de algumas
informações.
A proposta de realização desta
pesquisa incluiu a aplicação de um número preestabelecido de questionários
em cada país participante, calculado a partir da prevalência conhecida
de casos entre mulheres. Estabelecida a meta quantitativa, os questionários
foram aplicados em função da disponibilidade da entrevistadora, liderança
local participante do Seminário. Na maioria dos casos, o local escolhido
para entrevistar foram os serviços públicos de saúde que atendem portadores
do HIV.
As mulheres entrevistadas têm em
torno de 30 anos. Em sua maioria são viúvas; tendo em média 3 (três)
filhos. A maior parte dispõe de 300 dólares ou menos para cobrir suas
despesas e de sua família e, aproximadamente, a metade não compartilha
com ninguém as responsabilidades financeiras do sustento próprio e
da sua família.
Pouco mais de um terço da amostra
é composta por donas de casa, tendo, as demais, atividades remuneradas
fora do lar, como trabalhadoras autônomas de serviços gerais (empregadas
domésticas, faxineiras, auxiliares de limpeza ) ou pessoais (cabeleireira,
manicure, costureira e outras). Estudaram pouco, até quatro anos,
no geral.
A PERCEPÇÃO
SOBRE HIV E A SUA CONDIÇÃO
O grau de informação sobre aspectos
da transmissão e prevenção do HIV é preocupante. Ainda aparecem mulheres
que citam insetos ou uso de piscinas coletivas como forma de transmissão,
do mesmo modo que nem conhecem os benefícios do AZT para a prevenção
da transmissão vertical do HIV.
A percepção de que as mulheres
com HIV têm direitos de ter ou não filhos e dispor de meios para apoiar
esta decisão com a maior segurança possível não é unânime, o que corrobora
nossa impressão de que muitas ainda não sabem da possibilidade de
viver com saúde e qualidade mesmo tendo o vírus, e de não transmiti-lo
para seus filhos.
ACESSO
À ASSISTÊNCIA
Como vimos nos relatos, o acesso
a serviços e tratamentos é ainda bastante precário, na maioria dos
países da América Latina e Caribe. Acrescente-se à falta concreta
dos serviços o fato de que as mulheres portadoras do HIV desconhecem
o rol de cuidados que deveriam ter. Assim, o tratamento odontológico
ou a orientação nutricional, por exemplo, foram pouco citados como
demandas ou como realidade das mulheres.
SAÚDE
SEXUAL E REPRODUTIVA
O mesmo desconhecimento quanto
às necessidades específicas de saúde aparece quando se abordam questões
de saúde sexual e reprodutiva. Pouco acesso a cuidados específicos
de saúde para as mulheres portadoras, como maior freqüência de exames
de Papanicolau e facilidades para a realização de colposcopia nos
casos positivos, foi uma tônica em todas os países. O mesmo se pode
dizer em relação à oferta do condom e dos demais meios contraceptivos,
onde a falta de acesso se mescla à desinformação e desconhecimento
da possibilidade de reivindicar a disponibilização por parte do poder
público. Paradoxal, também, é a postura das mulheres em relação à
interrupção voluntária da gravidez: mesmo sem acesso à contracepção
segura e negando às mulheres portadoras o direito de reproduzir, as
entrevistadas também se posicionaram contra o aborto!
NEGOCIAÇÃO
DO USO DE PRESERVATIVO
Cerca da metade das mulheres consideram
que sabem negociar bem o preservativo, embora uma parte importante
deste grupo seja formada por mulheres sem parceiro estável no momento,
e mesmo sem vida sexual. Chama atenção que as mulheres que têm parceiros
estáveis, mas não coabitam nem são casadas com eles, são as que se
consideram mais aptas a negociar o sexo seguro, sendo consistente
esta informação com aquela sobre o percentual de relações sexuais
protegidas nos últimos três meses.
Compartilhando
experiências
(Relato de Nair Brito, membro da
Comissão Organizadora)
O encontro em Santa Fé de Bogotá
- janeiro de 1999, representou para todas nós, mulheres com HIV/aids
tanto no plano individual, quanto no coletivo, um capítulo importante,
um marco na história da organização de movimentos de mulheres na luta
contra a aids na América Latina e no Caribe.
O evento foi organizado para promover
o fortalecimento individual, dos grupos e da região. A estratégia
básica para atingirmos as metas propostas foi o envolvimento das mulheres
como sujeitos de um processo em construção. Assim, organizamos o evento
na perspectiva da criação de espaços de troca, aprendizado, autonomia
e solidariedade, elementos essenciais para o resgate e ampliação da
cidadania.
Conseguimos juntas (comissão organizadora
e participantes) transformar o encontro em um momento muito especial,
pois além do mapeamento das condições e necessidades básicas vividas
pelas mulheres com HIV/aids desta região, realizado a partir das respostas
de 460 questionários dos diferentes países, o ato de aplicar o questionário
possibilitou a todas as participantes um contato diferenciado e próximo
com a realidade na qual viviam as mulheres com HIV/aids nos respectivos
países.
A partir das idas e vindas aos
serviços de saúde, da proximidade e do questionamento sobre aspectos
mais amplos que envolvem o tema mulheres e aids, destacados no questionário,
como acesso a serviços e tratamentos, percepção dos direitos e riscos,
importância da formação d e grupos e gravidez, as participantes do
Seminário - lideranças nacionais - sentiram-se tomadas por inquietações
e indignação, sentindo-se estimuladas a organizar grupos para discutir
e encaminhar suas reivindicações. A identificação de tantas demandas
determinou a elaboração de agendas para o trabalho de mobilização
local.
Efetivamente, este processo gerou
nas participantes uma percepção valiosa sobre as alternativas de construção
coletiva passíveis de aplicação local ou regional, na qual as concepções
de sujeito, direito e cidadania fossem de fato exercitadas. Percebemos
nesta estratégia participativa um enorme ganho, traduzido na elaboração
de um documento de referência sobre mulheres e aids e na apropriação
pelas mulheres de um saber e de uma prática que lhes servirá de ferramenta
de empoderamento e multiplicação deste conhecimento. As inúmeras partilhas
ocorridas alcançaram resultados concretos, que foram levados para
os países de origem. No plano coletivo, resultou em projetos de formação
de cooperativas geradoras de rendas e formações de grupos, documentos
de protestos para governos. No plano individual, resultou na ressignificação
de valores e desejos que até então pareciam distantes e impossíveis
para muitas, tais como possibilidades de acesso a tratamentos e medicamentos,
melhoria da auto-estima e reconhecimento da condição de cidadania
como algo possível de ser exercida.
A vivência durante o Seminário
permitiu às mulheres constituírem-se sujeitos da própria ação, capazes
de assumirem dentro do contexto da epidemia o lugar que lhes pertence,
escrevendo sua trajetória a partir de um olhar feminino, até então
cobertos com nuanças que não as nossas.
Tão amplamente divulgado o termo
exercício da cidadania ainda figura somente nos discursos e na escrita
dos países da América Latina e Caribe. Embora tenhamos na nossa história
social e política alcançado algumas vitórias, sabemos que existe muito
para ser feito e as conquistas, principalmente no campo de mulheres
e Aids, ainda dependerá do pleno exercício dessa cidadania, a qual
concebe liberdade de expressão, direitos sobre o próprio corpo e acesso
a serviços de qualidade.
FINALIZANDO
O Seminário na Colômbia e a pesquisa
realizada com mulheres vivendo com HIV na região traduz o empenho
de todas nós mulheres, com ou sem HIV, na busca alternativas de acolhimento
e conquista de espaços onde a identidade de uma mulher com HIV/aids
seja concebida numa ótica de gênero capaz de suprir e promover a qualidade
de vida, favorecendo o exercício da cidadania tão desgastada pelo
medo, preconceito, abandono e discriminação vividos no cotidiano.
Para isso, é preciso propor ações
específicas, sem distanciá-las das reflexões coletivas trazidas pela
aids, que tanto contribuem para o fortalecimento coletivo e individual.
Exemplo desse tipo de ação foi a criação do movimento Latino-americano
e Caribenho de Mulheres com HIV/Aids-MLACM+ - durante o encontro em
Bogotá, com objetivo de pensar estratégias conjuntas nesses países
que contribuam para o empoderamento de mulheres com HIV/aids. Após
o encontro de Bogotá, as tentativas de organização, locais ou nacionais,
começaram a surgir ou a se fortalecer, em toda a região, apesar das
reconhecidas dificuldades de obtenção e gerenciamento de fundos e
recursos para este tipo de iniciativa, e da exigência do investimento
diário, do fôlego renovado e da crença de que semear autonomia é preciso.
Todas nós, ativistas do movimento
de mulheres, sabemos que são várias as prioridades no trabalho com
mulheres e os desafios para atendermos estas prioridades são grandes
também. Mesmo assim é preciso seguir buscando alternativas, adequando
as lições aprendidas de acordo com a necessidade e cultura local.
Enfatizar as relações de gênero no trabalho planejado, envolver qualitativamente
mais mulheres que ainda estão isoladas, envolver a sociedade civil
de forma geral no combate a epidemia e suas conseqüências.
Melhorar as condições socieconômicas
das mulheres infectadas mostra-se uma estratégia eficaz para recuperação
da auto-estima e construção de projetos de vida. Exigir dos governos
a implementação de políticas públicas capazes de atender as necessidades
básicas referentes a saúde integral dessas mulheres será um desafio
diário.
Ufa! Temos muito o que fazer no
âmbito da saúde e dos direitos das mulheres, e as possibilidades de
estabelecimento e ampliação dessas para o coletivo, serão efetivas
quando, internamente, cada uma de nós nos apropriarmos de nós mesmas.
Portanto, é necessário acreditarmos nas organizações dos espaços para
mulheres que falam sobre a existência de um feminino constantemente
desrespeitado e submetido em seus direitos, espaços que possibilitam
o choro o riso, a brincadeira, a expressão espontânea e simples, o
fortalecimento, a reflexão sobre o mundo, sobre si mesma e o(a) outro(a).
Os fios tão necessários para a
confecção de um mundo melhor, mais justo e igualitário, dependerá
do quanto cada uma de nós disponibilizará primeiro para a nossa teia
pessoal, segundo para a nossa teia coletiva. Assim, as possibilidades
de ganhos serão efetivas, profundas e verdadeiras, agora não mais
só como doadoras, mas como grandes tecelãs. Encontre os seus fios
e mãos a obra!
Wilza Villela é médica, assistente de direção do Instituto de Saúde.
Participou do seminário de Bogotá como consultora, a convite do Comitê
Organizador. Nair Brito é militante
da luta das mulheres contra o HIV. Fez parte do Comitê Organizador
do Seminário de Bogotá.