Ando
a procura de espaço para o desenho da vida.
Cecília Meireles
Fios da Vida: tecendo o feminino em tempos de Aids
traz registros e reflexões sobre o trabalho e a pesquisa que desenvolvemos
junto a mulheres soropositivas e soronegativas.
Em 1996, criamos no GIV a Rede Paulista de Mulheres
com HIV/Aids, projeto desenvolvido com financiamento da Coordenação
Nacional de DST e Aids, do Ministério da Saúde. A Rede tem como objetivo
o apoio e o fortalecimento de mulheres com HIV/aids em todas as suas
iniciativas, contribuindo para a melhoria da qualidade de vida.
Em 1997, obtivemos um financiamento do Grupo Latino-americano
de Trabalho sobre Mulheres e Aids, do Instituto Nacional de Salud
Pública do México (GLAMS/INSP), que conta com o apoio da John D. and
Catherine T. Mac Arthur Foundation, e realizamos, paralelamente ao
trabalho da Rede, a pesquisa-ação Gênero e Oficinas no Trabalho com
Mulheres e Aids.
O objetivo era investigar as representações das mulheres
sobre gênero, sexualidade e auto-estima e também as oficinas como
estratégias de apoio a mulheres infectadas pelo HIV e prevenção para
mulheres não infectadas.
Pudemos observar que, para as mulheres não infectadas
pelo HIV, a aids ainda aparece como algo distante, um cinza em outras
pinturas que não as suas, mas de alguma forma há uma insatisfação
(muitas vezes não identificada) com a vida que levam.
Para muitas mulheres soropositivas, a aids aparece
como alguém que inadvertidamente rasga um desenho de vida lentamente
construído, promovendo uma profunda desestruturação. Paradoxalmente,
a superação do impacto inicial acaba revelando que a vida já não era
tão boa e que a aids pode significar uma reconstrução, o encontro
de novos sentidos para viver.
No entanto, este desenhar a vida está intimamente atrelado
a todo contexto que circunscreve as mulheres – representações sobre
relaçõesde gênero e sexualidade, pertencimento racial, condição socieconômica,
acesso a serviços de saúde e educação – na maioria das vezes deixando-as
vulneráveis.
Enfim, os contornos que cada mulher traça para sua
vida, incluindo o enfrentamento da aids, extrapolam os limites da
individualidade e encontram profundas intersecções com as construções
sócio-históricas da condição feminina.
Identificamos que a grande maioria das mulheres não
possuía a experiência de encontrar um tempo para olhar-se. A participação
em grupos, que promove o (des)encontro com uma outra que é igual e
diferente de si, pode configurar-se como um espaço para estabelecer
contato consigo e (re)desenhar a vida (com ou sem aids).
A presente publicação objetiva compartilhar os resultados
de nossa pesquisa, nossas experiências e contribuir para a organização
e o fortalecimento das mulheres em grupos.
Este “compartilhar” foi motivado por pedidos de profissionais
de ONG e serviços de saúde que nos procuram, querendo pensar intervenções
junto a mulheres com e sem HIV/aids. Foi motivado, ainda, pelas nossas
inquietudes diante do trabalho, pela necessidade que sentimos de sistematizar
nossas ações e reflexões.
Como perceberão no decorrer da leitura, algumas vezes
tivemos a impressão de que apesar de nossas ações, tivemos mais permanência
do que rupturas. Por outro lado, também obtivemos resultados surpreendentes,
como por exemplo, uma comunidade que conseguiu se organizar, ampliar
nosso trabalho, abrir comunicação com a Secretaria da Saúde e “caminhar
com as próprias pernas”.
Mas este é nosso ofício: dizer, refazer nossas falas,
(re)conhecer nossas interlocutoras... Ter consciência dos limites.
Buscar alargar as possibilidades...
Organizamos esta publicação nos seguintes capítulos:
No capítulo 1, Rede Paulista de Mulheres com HIV/Aids: lugar possível
de tecer solidariedade, empoderamento e cidadania, apresentamos o
trabalho da Rede.
No capítulo 2, A fala das mulheres: contracepção, aborto, maternidade,
sexualidade, relações de gênero, cidadania e auto-estima, discutimos
as representações das mulheres com e sem o vírus da imunodeficiência
adquirida sobre HIV/aids, relações de gênero, saúde reprodutiva e
auto-estima.
No capítulo 3, Grupo: experimentando a existência do eu no (des)encontro
com a outra, relatamos as oficinas realizadas junto a mulheres soropositivas
e soronegativas, e fizemos uma discussão sobre esta estratégia como
forma de emponderamento feminino.
Nas Considerações Finais, oferecemos alguns indicadores para a realização
de trabalhos com esta população.
Talvez este material traga algumas respostas e deixe
muitas perguntas. Nosso desejo é que ele abra e amplie diálogos, para
que possamos encontrar juntas(os) melhores caminhos não só para combater
a aids, mas, principalmente, para tecer a vida. Uma vida que permita
a todas(os) nós, não somente sobreviver, mas também vicejar.