Criminalização da
Transmissão do HIV
e Exclusão Social
Dezembro de 2022

Projetos de Lei punindo especificamente a transmissão ou exposição ao HIV

Inicialmente, cabe esclarecer que, no Brasil, a legislação e criação de tipos penais é prerrogativa do Congresso Nacional, não podendo os estados criar leis neste sentido.

No país, não temos lei específica que puna a transmissão do HIV, e a propositura de Projetos de Lei neste sentido não iriam combater a epidemia. Por outro lado fariam aumentar o estigma, o preconceito e a discriminação das pessoas vivendo com HIV/Aids, estimulando ainda que as pessoas evitassem fazer o teste, consequentemente não se submetendo ao tratamento.

A ciência mundial, depois de anos de pesquisas, já comprovou que o tratamento eficaz permite à pessoa ficar vivendo com carga viral indetectável, e impede a transmissão do HIV por via sexual.

O voto do Relator na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ) na análise do PL nº 130/1999 (com os PLs apensados de nºs 276/1999 e 4.887/2001) deixa clara a falta de pertinência dessas proposituras.

“Os projetos são inoportunos e inconvenientes. O mero rigor das penas, transformando o crime em hediondo, ou aumentando o prazo de reclusão, não terá o condão de prevenir a prática que se pretende coibir. E, note-se, a pena atual, a do artigo 131 do Código Penal, prevê reclusão de um a quatro anos, e multa.

Cremos, a par disso, que a aprovação de qualquer das proposições em exame viria a, desnecessária e desproporcionalmente, aumentar o preconceito contra os portadores do vírus.”

O Projeto de Lei nº 130/1999 foi proposto pelo deputado federal Enio Bacci, visando a “tornar crime hediondo a transmissão deliberada do vírus da Aids”, com o acréscimo do inciso IX ao artigo l° da Lei Federal 8.072 (que dispõe sobre os crimes hediondos), estabelecendo no inciso: Transmitir e infectar, consciente e deliberadamente a outrem com o vírus da Aids.

Como justificativa para o projeto, o deputado relatou:

“A doença mais conhecida como Aids ainda é incurável e mata, com o decorrer do tempo. Os que infelizmente adquirem esta doença sabem perfeitamente que podem infectar se não tomarem todas as precauções necessárias para evitar o contágio, seja através de contato sexual ou por transfusão de sangue, etc. (**)

"Portanto, o portador do vírus da Aids, que tem conhecimento de sua doença, dever (sic) ser responsabilizado o (sic) rigor das penas da lei, caso a transmita conscientemente a terceiros."

Podemos considerar a intenção de contaminar outra pessoa conscientemente, como um crime premeditado e hediondo e, como tal, deve ser considerado pela lei. Sala das Sessões, 2 de março de 1999.”

O deputado Enio Bacci também propôs o PL nº 276/1999, visando a incluir parágrafo único ao artigo 131 do Código Penal, que passaria a ter a seguinte redação: “Parágrafo único: quando a transmissão for consciente e deliberada do vírus da Aids, a pena será de reclusão de (dois) a 6 (seis) anos”.

A justificativa foi que a legislação em vigor previa a pena de 1 (um) a 4 (quatro) anos para a transmissão a outrem de moléstia grave de forma a produzir o contágio. A proposta era agravar a pena em relação a outras moléstias, dadas como exemplo a varíola, o sarampo e outras.

Já o Projeto de Lei nº 4887/2001 foi proposto pelo Deputado Federal Feu Rosa, e que visava a introduzir novo artigo no Código Penal com a seguinte redação:

“Art. 267-A. Contaminar alguém com doença notoriamente incurável de que sabe ser portador. Pena – Reclusão de 10 (dez) a 15 (quinze)anos.

§ 1° Se do fato resulta morte, a pena é aplicada em dobro.

§ 2° No caso de culpa, a pena é de detenção de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, ou, se resulta morte, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos.

E justificou da seguinte maneira:

“A afetação pelo vírus HIV constitui crescente fator de mortalidade no mundo, atualmente.

Além da forma de morte dolorosa, que, todos sabemos, marca os dias finais da vítima, existe a agravante de certeza de morte; em que pese a existência de produtos farmacêuticos que, em alguns casos, bloqueia e estanca a evolução do terrível mal, essa certeza torna inigualável o sofrimento da vítima.

E mesmo nos casos em que existe o adiamento da evolução da doença, a natureza comportamental do vírus é mal conhecida; artigos médicos, que versam a matéria, temem as formas de transmutação que os vírus possam assumir, livrando-se, assim, da ação destrutiva dos medicamentos próprios e tornando-se cada vez mais resistentes.

Tais fatos constatam que a Aids continua presente e ameaçadora, exigindo atenção e medidas radicais para alavancar o controle e combate do terrível mal.

Daí a nossa iniciativa no sentido de criar pena eficaz para a pessoa que, sabendo-se portadora do vírus mortal, adota postura que permita que outra pessoa seja contaminada pela doença.

É sabido que pessoas portadoras de doenças assemelhadas tendem a se aglutinar; isso é até compreensível pela necessidade de apoio mútuo, mas existem casos em que as pessoas portadoras de determinadas doenças, entre as quais se inclui a Aids, procuram, por razões psicológicas até, cooptar novos elementos, a fim de criar um especial “vínculo e solidariedade”, forjada pelas circunstâncias de possuírem a mesma enfermidade.

Queremos esclarecer que existem ações de pessoas doentes que não se importam em contaminar terceiros.

Daí, no nosso entender, a necessidade de criar um mecanismo que apene convenientemente o comportamento.

A situação não se confunde com a hipótese do artigo 267, que exige, para caracterização do tipo, mais de uma pessoa contaminada.

São as nossas justificações ao Projeto de Lei. Sala de sessões, em 20 de junho de 2001. Deputado Feu Rosa”

Os projetos nºs 130/1999, 276/1999 e 4.887/2001 tiveram como último movimento o arquivamento pela Mesa Diretora em 31/01/2015.

Em 04 de fevereiro de 2015, o deputado federal Pompeo de Mattos propôs o PL nº 198/2015 (que foi uma reapresentação do PL nº 130/1999).

A proposta previa a inclusão de um inciso na lei de crimes hediondos: “IX– Transmitir e infectar, consciente e deliberadamente a outrem com o vírus da Aids”.

E veio com a seguinte justificativa: “Trata-se a presente proposta de reapresentação do Projeto de Lei nº 130, de 1999, de autoria do Ex-Deputado Federal Enio Bacci, do meu partido, com o objetivo de tornar crime hediondo a transmissão deliberada do vírus da Aids.

Referido projeto foi arquivado nos termos do artigo 105 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados, mas mantém-se, no mérito, oportuno e atual, como se pode ver das razões que o justificaram, a época, de sua apresentação:

“A doença mais conhecida com Aids ainda é incurável e mata com o decorrer do tempo. Os que infelizmente adquirem esta doença sabem perfeitamente que podem infectar se não tomarem todas as precauções necessárias para evitar o contágio, seja através de contato sexual ou por transfusão de sangue, etc.

Desta forma, por concordar com os argumentos despendidos na justificativa colacionada, que demonstra a necessidade da proposta, cujo autor entendeu oportuna a sua reapresentação, espero aprovação rápida do presente Projeto de Lei. Sala das Sessões, de de 2015. Dep. Pompeo de Mattos”

Em 24/03/2017, a relatora deu seu parecer pela rejeição do PL, juntamente com os PLs apensados de nºs 1048/2015 e 1971/2015.

A relatora ao final de seu parecer descreve: “Assim, acreditamos que o foco do Projeto de Lei é inadequado.

A prevenção, por meio de medidas eficazes de saúde pública, é o melhor caminho. Novamente, segundo a ANAIDS (Articulação Nacional de Luta contra a Aids) investir na melhoria do protocolo relacionado ao vírus HIV e nos recursos humanos envolvidos é a forma ideal de se deter o avanço da doença.

Sobre os apensados, tanto o Projeto de Lei nº 1.048, de 2015, do Deputado Sóstenes Cavalcante, quanto o Projeto de Lei nº 1.971, de 2015, do Deputado Victor Mendes, alteram o art. 131 do Código Penal, para, de formas distintas, alcançarem o mesmo objetivo: o de incriminar aqueles que transmitem, deliberadamente, o vírus HIV. Porém, como esclarecemos previamente, o STJ já identificou essa prática como lesão corporal gravíssima (artigo 129, § 2º, II, do Código Penal), em razão do enquadramento da Aids como doença incurável. Por isso, a conduta, quando dolosa, já é punida, atualmente, com pena de 2 a 8 anos de reclusão.

Esses apensados, assim como o Projeto de Lei principal, assentam-se na ideia de que a criminalização específica da transmissão do vírus HIV tem o condão de conter o avanço da doença. Porém, como já provamos nos parágrafos acima, do ponto de vista da saúde pública, para conter o progresso da Aids, é muito mais eficaz educar os cidadãos para a prevenção. E isso já tem sido feito pelo Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais. Temos de lutar, cada vez mais, pelo aprimoramento dos programas preventivos. Esses sim são adequados para deter essa doença.

Diante de todo o exposto, o voto é pela rejeição dos Projeto de Lei nº 198, de 2015, e seus apensados, os Projetos de Lei nºs 1.048 e 1.971, de 2015.”

Após ouvir seguimentos da sociedade civil, o deputado Pompeo de Mattos apresentou em 31/08/2017 o requerimento de retirada de tramitação do Projeto de Lei nº 198/2015, sendo o projeto arquivado.

O Projeto de Lei nº 1048/2015, de propositura do deputado federal Sóstenes Cavalcante, que tramitava apensado ao PL 198/2015, tinha como justificativa tipificar o crime de perigo de contágio de moléstia incurável.

Desta forma o artigo 131 do Código Penal traria o seguinte parágrafo único:

“Parágrafo único. Se a moléstia é incurável: Pena - reclusão de dois a oito anos, e multa.”

O deputado Cavalcante justificou seu projeto da seguinte forma:

“O projeto apresentado objetiva conferir maior efetividade no combate a comportamento que vem trazendo grande insegurança à sociedade.

Com a reforma legislativa ora deduzida, faz-se frente ao fenômeno social assaz reprovável, que, aliás, estampou as páginas dos periódicos nacionais.

Em reportagem publicada pelo jornal O Globo, registrou-se a ação de um grupo intitulado Clube do Carimbo, cujas peculiaridades daninhas inspiraram a presente iniciativa. Na ocasião, assinalou-se;

“Denominado de ‘Clube do Carimbo’, um grupo de homossexuais soropositivos se reúne em sites para passar dicas de como transmitir Aids para outras pessoas. A premissa é que se todos tiverem a doença, ela não será mais um problema social. Junto com isso, a prática do “bareback”, o sexo sem camisinha, misturado com uma dita sensação de aventura, faz com que as “carimbadas” aconteçam mais e já se tornem um problema de saúde pública. (...)

Em outro site visitado, os praticantes chegam a marcar encontros em casas noturnas para sexo em grupo de forma que alguns possuem a doença e outros não. Os que não possuem são divididos entre os que sabem que correm o risco de transmissão, chamados de “bugchasers”, e os que não possuem ciência disso. Em comentários de outros usuários do site, as orgias mescladas são chamadas de “roleta russa” do sexo.

Segundo o último Boletim Epidemiológico, divulgado pelo Ministério da Saúde, a Aids avança tanto entre homossexuais quanto em heterossexuais. Entretanto, o aumento de infectados entre os gays é bastante superior. Em 2003, eram 4.679 novos casos por ano. Atualmente, são 6.043 soropositivos diagnosticados anualmente””.

Com o projeto de lei ora apresentado, coíbe-se não apenas a disseminação da AIDS, mas de todas as moléstias incuráveis.

Amparado em tais argumentos, conclamo os nobres pares a apoiar esta iniciativa que, exitosa, representará progresso na dissuasão de conduta deveras pérfida. Sala das Sessões, em 08 de abril de 2015. Deputado Sóstenes Cavalcante.”

O projeto 1048/2015 foi retirado de pauta em 03/04/2019, após requerimento do próprio autor, e posteriormente arquivado.

O PL nº 1971/2015, o último remanescente dos 3 projetos propostos no ano de 2015, e que estava apensando ao projeto 198/2015, aguarda a designação de relatoria.

Em suma, de forma geral, após esclarecimentos a respeito dos avanços da ciência, os projetos apresentados ou foram arquivados a pedido dos autores, ou foram barrados nas comissões da Câmara Federal.

 

Os textos relativos aos projetos de lei foram mantidos na grafia original.