Até pouco tempo atrás, a mera acusação de se realizarem atividades sexuais sem preservativo entre uma pessoa com HIV e uma pessoa HIV negativa era tomada como evidência de intenção de transmissão do vírus. Em alguns casos que chegaram à segunda instancia, não foram apresentados nem solicitados exames que atestassem que o acusador não tinha HIV antes de conhecer o acusado. Ou seja, o réu não tinha presunção de inocência. (Ética e HIV/Aids: uma epidemia que se sustenta. Silva, Sara Romera da; Oliveira, Reinaldo Ayer de (orgs.).SãoPaulo-SP: CREMESP, 2017. 220 p. ISBN 978-85-89656-31-3. WC503 E84e 2017. Disponível em http://www.cremesp.org.br/?siteAcao=Biblioteca&area=livros&pesquisa).
Houve um caso em 2004 que vale a pena relatar. A acusação foi de “tentativa de homicídio qualificado por meio insidioso” de uma mulher contra um homem em tratamento eficaz para o HIV. O júri o condenou por isso.
O TJ anulou a decisão (2007) e solicitou novo julgamento, desta vez por “lesão corporal”. O embasamento era de que tanto o acusado quanto a acusadora estavam em uso de terapia antirretroviral combinada eficaz, gozando de saúde quase normal. E que, estando o tratamento disponível pelo SUS (gratuitamente) para todas as pessoas com HIV/Aids, a acusação não podia ser entendida como tentativa de homicídio. (TJSP, Acórdãos 01262183, 02189955. Apelação Criminal Com Revisão n° 993.05.070796-2).
Observe-se que o tratamento antirretroviral combinado está disponível no SUS, desde janeiro de 1997, e desde 1996 em algumas cidades e estados.
O desconhecimento desta realidade oito anos depois levou a uma condenação injusta, e o processado começou a cumprir a pena. Não foram apresentados pela acusação, nem solicitados no processo, exames que comprovassem que a acusadora não tinha HIV antes de conhecer o acusado. Com efeito, como comprovar que foi ele quem transmitiu o HIV para ela? A existência de um exame negativo para o HIV anterior à relação com o réu seria uma condição necessária. No lugar disso, fizeram-se especulações sobre a vida sexual da acusadora, que resultaram favoráveis a ela. Parece que estava subentendido que as pessoas com poucos parceiros sexuais não se infectam com HIV. Não houve presunção de inocência do réu, que poderia ter sido eventualmente acusado de expor a acusada ao HIV, e não de transmitir o HIV, dada a falta de exames desta.
Em 2008, a Comissão Federal Suíça para AIDS declarou que as pessoas com HIV em terapia antirretroviral eficaz por mais de seis meses não transmitem o HIV por meio de relações sexuais, sejam elas anais, vaginais ou orais. Isto foi utilizado num julgamento contra um homem imigrante africano que teve relações sexuais com uma mulher, sem preservativos. A Declaração foi baseada numa revisão da literatura científica que não localizou relato algum deste tipo, e foi publicada em revista científica (ver abaixo). Daí por diante, ela foi denominada de Declaração Suíça.
A esta Declaração Suíça, seguiram-se ensaios clínicos para verificar se esta ausência de relatos de caso tinha fundamentos mais sólidos. Com os avanços da ciência, da pesquisa em HIV, depois de realizados vários estudos, ficou finalmente comprovado em 2017 que as pessoas com HIV em terapia antirretroviral eficaz não transmitem o HIV através de relações sexuais, sejam elas anais, vaginais ou orais (heterossexuais ou homossexuais). Mais ainda, também foi comprovado que a transmissão não ocorre mesmo na presença de doenças de transmissão sexual.
Voltando ao caso inicial, como o acusado estava em tratamento antirretroviral eficaz, à luz destes resultados posteriores, provavelmente não foi ele quem transmitiu HIV para a parceira. Porém, o que permitiu a possibilidade de cometer esta injustiça foi a falta de presunção de inocência do acusado, um princípio basilar do Direito.
Portanto, da comprovação da intransmissibilidade sexual do HIV por pessoas em tratamento antirretroviral eficaz decorrem duas consequências:
RISCO DE TRANSMISSÃO DO HIV A PARTIR DE UMA PESSOA VIVENDO COM HIV QUE TENHA CARGA VIRAL INDETECTÁVEL
Mensagem introdutória e Declaração de Consenso (divulgada em 2016) Original em inglês: https://www.preventionaccess.org/consensus
Agora, há confirmação baseada em evidências de que o risco de transmissão do HIV a partir de uma pessoa vivendo com HIV ou Aids (PVHA), que esteja em Terapia Antirretroviral (TAR) e conseguiu uma carga viral indetectável no sangue por pelo menos 6 meses é negligenciável ou inexistente. O HIV nem sempre é transmitido mesmo com carga viral detectável, mas quando o parceiro com HIV tem carga viral indetectável, isso não só protege a saúde do soropositivo como também impede novas infecções.
Entretanto, a maioria das PVHA, agentes de saúde e aqueles em risco potencial de infecção pelo HIV não estão cientes da magnitude da prevenção do HIV que ocorre com um tratamento que funciona. A maior parte das informações sobre o risco de transmissão do HIV é baseada em pesquisas antigas e influenciadas por restrições de agências ou de fundos e também por políticas que perpetuam negatividade sexual, estigma e discriminação em relação ao HIV.
A Declaração de Consenso abaixo, abordando o risco de transmissão do HIV por PVHA que tenham uma carga viral indetectável, é endossada por importantes investigadores de cada um dos estudos mais proeminentes que examinaram esta questão. É importante que pessoas vivendo com HIV, seus parceiros íntimos e agentes de saúde tenham informações precisas sobre os riscos de transmissão do HIV a partir dos que obtiveram sucesso na TAR.
Ao mesmo tempo, é importante reconhecer que muitas PVHA podem não chegar a alcançar o status de indetectável por conta de fatores que limitem acesso a tratamento (ex.: sistema de saúde inadequado, pobreza, racismo, negação, estigma, discriminação e criminalização), uso prévio da TAR que tenha resultado em resistência a antirretrovirais ou toxicidade aos medicamentos. Alguns podem escolher não se tratar ou podem ainda não estar preparados para iniciar o tratamento.
O entendimento de que a terapia antirretroviral eficaz previne a transmissão [sexual] pode ajudar a reduzir estigma ligado ao HIV e encorajar as pessoas vivendo com HIV/Aids a iniciarem e aderirem a um tratamento com antirretrovirais que funcionem.
Pessoas vivendo com HIV em tratamento antirretroviral com carga viral indetectável em seu sangue têm um risco negligenciávelNEGLIGENCIÁVEL
Tão pequeno ou sem importância que não vale a pena considerar;
insignificante. de transmissão sexual do HIV. Dependendo das drogas empregadas, pode levar até seis meses para que a carga viral fique indetectável. Supressão viral do HIV contínua e confiável requer a seleção de medicamentos apropriados e excelente adesão ao tratamento. A supressão viral do HIV deve ser monitorada para assegurar tanto os benefícios de saúde pessoal quanto de saúde pública.
Uma carga viral de HIV indetectável somente impede a transmissão do HIV para parceiros sexuais. Preservativos também ajudam a prevenir a infecção pelo HIV, assim como outras infecções sexualmente transmissíveis, além da gravidez. A escolha do método de prevenção para o HIV pode ser diferente dependendo das práticas sexuais de uma pessoa, das circunstâncias e de seus relacionamentos. Por exemplo, se alguém está tendo relações sexuais com múltiplos parceiros ou está em uma relação não-monogâmica, pode considerar a utilização de preservativos para prevenir-se de outras infecções sexualmente transmissíveis (ISTs).
Para os propósitos da Declaração, entende-se como indetectável a carga viral inferior a 200 cópias/ml.
Outros estudos podem ser achados na página https://www.preventionaccess.org/consensus, em “U=U resources”.
A seguir resumimos os resultados desses estudos:
Uma pessoa com HIV, sem nenhuma outra IST e seguindo um tratamento antirretroviral (TAR) com carga viral totalmente suprimida (condição doravante denominada “TAR eficaz”), não transmite o HIV pela via sexual, ou seja, que ela não transmite o vírus pelo meio dos contatos sexuais.
Esta afirmação fica válida com as seguintes condições:
A pessoa com HIV aplique o tratamento antirretroviral ao pé da letra e seja acompanhado por um médico;
A carga viral (CV) se situe abaixo do nível de detecção (desde há pelo menos seis meses);
A pessoa com HIV não tenha nenhuma úlcera genital. (publicado em Bulletin des médecins suisses | Schweizerische Ärztezeitung | Bollettino dei medici svizzeri | 2008;89: 5)
Estudo iniciado em 2005: em Botsuana, Brasil, EUA, Índia, Quênia, Malawi, África do Sul e Zimbabwe que recrutou 1.750 casais sorodiferentes, ou seja, nos quais um parceiro tem HIV e o outro não no estudo de sete anos. Em metade dos casais, a PVHA iniciou a TAR imediatamente e a outra metade iniciaria quando tivesse indicação para tanto, segundo as Diretrizes da época.
Uma revisão intermediária do Comitê de Dados e Segurança (DSMB) em 2011 levou a uma análise que revelou a ocorrência de 39 infecções para uma redução de 96% no risco de transmissão. (Risco de 0.04; IC 95% 0.01 a 0.27). Este resultado foi altamente significativo (p<0,0001). Foram 28 infecções ocorridas dentro do casal e 11 com outros parceiros.
O único caso de transmissão dentro de casal quando a PVHA estava usando TAR ocorreu com um homem que tinha iniciado a TAR havia no máximo um mês, provavelmente não alcançando a indetectabilidade. Estes dados foram de uma análise intermediária. (Cohen MS, Chen YQ, McCauley M, et al. Prevention of HIV-1 infection with early antiretroviral therapy. N Engl J Med 2011;365:493-505)
Já durante todo o curso do estudo, foram observadas 78 infecções, das quais a ligação filogenética foi estabelecida em 72. Destas infecções, 26 não estavam relacionadas ao parceiro HIV-positivo e 46 sim. Destas 46, oito ocorreram depois que o parceiro iniciou a terapia antirretroviral. Destas oito finais, quatro ocorreram antes da supressão viral e as outras quatro ocorreram quando o TAR falhou em alcançar a supressão viral. Em outras palavras, nenhum paciente HIV-positivo com supressão viral transmitiu sua infecção ao parceiro durante todo o estudo.
Mas isto não contradiz a Declaração Suíça que fala em seis meses!
Os resultados finais foram publicados em Antiretroviral Therapy for the Prevention of HIV-1 Transmission, New England Journal of Medicine2016; 375:830-839.
Esse estudo incluiu vários casais - tanto heterossexuais, como homossexuais masculinos.
Ele acompanhou,entre setembro de 2010 e maio de 2014, 1.166 casais sorodiferentes (homo e hetero) em 75 clínicas de14 países europeus. Os critérios de inclusão determinavam que o parceiro positivo deveria ter carga viral indetectável (menor de 200 cópias/ml) em tratamento antirretroviral e que o casal não tivesse o hábito de sempre usar preservativos durante o sexo. Os casais só foram incluídos na análise final quando a carga viral mais recente dos parceiros soropositivos fosse indetectável.
Participaram, para a análise do estudo, 548 casais heterossexuais, sendo 279 com a mulher soropositiva, e 340 casais homossexuais masculinos. Não houve infecções em nenhum casal!
Vale ressaltar que nenhuma infecção ocorreu mesmo havendo níveis bastante elevados de ISTs, sobretudo entre casais homossexuais.
Os casais de homens relataram mais de 22.000 relações sexuais sem preservativos (mediana 41/ano) e os heterossexuais mais de 36.000 (mediana 35/ano). Ao todo, houve mais de 58.000 relações sexuais sem preservativo e sem transmissão do HIV.
Uma extensão do estudo continuaria até 2019 para casais gays (Partner2)
Os resultados do Partner 1 foram divulgados em 2016. (Sexual Activity Without Condoms and Risk of HIV Transmission in Sero different Couples When the HIV-Positive Partner Is Using Suppressive Antiretroviral Therapy, JAMA, July 12, 2016 Volume 316, N 2, 171-179)
Ao todo, houve mais de 58.000 relações sexuais sem preservativo e sem transmissão do HIV.
Durante a IX Conferência Internacional da Sociedade de Aids sobre Ciência do HIV (IAS 2017), em Paris, França, foi relatado um estudo que incluiu 343 casais homossexuais sorodiferentes. O estudo não encontrou um único caso de transmissão do HIV em 16.889 atos de sexo anal sem preservativos. (Viral suppression and HIV transmission in serodiscordant male couples: an international, prospective, observational, cohort study, Lancet HIV 2018; 5: e 438–47)
Os Estudos Opposites Attract e PARTNER 1
A evidência determinada pelo Opposites Attract soma-se à evidência do estudo PARTNER de que as pessoas HIV-positivas em tratamento efetivo contra o HIV que suprime completamente seu vírus não podem transmitir sua infecção por meio do sexo. Em conjunto, os dois estudos não encontraram um único caso de transmissão do HIV em quase 40.000 atos de sexo anal sem uso de preservativos entre homossexuais.
Os pesquisadores quiseram investigar mais a fundo a possibilidade de transmissão pelo sexo anal. Isto é compreensível, porque a transmissão pelo sexo anal é muito mais frequente do que pelo sexo vaginal, quando a carga viral é detectável, e a PVHA não está em tratamento. Este foi o motivo do estudo PARTNER 2.
O PARTNER 1 foi desenvolvido entre setembro de 2010 e maio de 2014, e o PARTNER 2 de maio de 2014 a abril de 2018. Havia 888 casais no PARTNER 1, 337 deles (38%) casais homossexuais. No PARTNER 2, outros 635 casais gays foram recrutados, perfazendo um total de 972 casais gays e 516 heterossexuais em todo o estudo PARTNER.
O estudo PARTNER 2 recrutou casais de HSH sorodiferentes para o HIV (um parceiro positivo, um negativo) em 75 clínicas de 14 países europeus. Eles testaram os parceiros HIV-negativos a cada seis a 12 meses para o HIV e testaram a carga viral nos parceiros HIV-positivos. Ambos os parceiros também completaram pesquisas comportamentais.
Nos casos de infecção por HIV nos parceiros negativos, o seu HIV foi geneticamente analisado para verificar se o vírus veio do parceiro habitual.
O estudo não encontrou transmissões entre casais homossexuais nos quais o parceiro soropositivo para o HIV tinha uma carga viral inferior a 200 cópias / ml - apesar de haver quase 77.000 atos sexuais sem preservativo entre eles.
(Risk of HIV transmission through condomless sex in serodifferent gay couples with the HIV-positive partner taking suppressive antiretroviral therapy (PARTNER): final results of a multicentre, prospective, observational study, Lancet, Published Online May 2, 2019, http://dx.doi.org/10.1016/S0140-6736(19)30418-0)
Opposites Attract + Partner 1 + Partner 2
Combinados os resultados dos estudos Opposites Attract, PARTNER 1 e 2, nenhuma transmissão do HIV foi observada em cerca de 126.000 ocasiões de sexo anal!
E o papel das Infecções Sexualmente Transmissíveis - IST?
Sabe-se que, com carga viral detectável, a presença de uma IST aumenta o risco de transmissão do HIV em várias vezes.
Mas os estudos Opposites Attract, Partner 1 e Partner 2 também constataram que, se o parceiro positivo estiver em tratamento bem sucedido, mesmo com outra infecção sexualmente transmissível (IST), não há aumento do risco de transmissão do HIV. Isso vai além da Declaração da Comissão Federal Suíça de AIDS.
Ativo ou Passivo?
Não importa!
A posição sexual também não fez diferença. Ressalte-se que, se a carga viral não estiver suprimida, a transmissão é 10-20 vezes mais provável se o parceiro HIV-positivo for o insertivo (ou ativo).
Começar a terapia antirretroviral imediatamente após o diagnóstico traz benefícios para a pessoa com HIV/AIDS?
O estudo START (divulgado em 2015) mostrou que as pessoas que iniciam a terapia antirretroviral, quando a sua contagem de células CD4 ainda é elevada (superior a 500 céls/mm3) ao invés de esperarem que a contagem diminua para valores inferiores a 350 células/mm3, têm um risco inferior (estatisticamente significativo) de desenvolver a doença. Participaram 4.685 pessoas de 35 países. O acompanhamento foi de três anos em média.(Initiation of Antiretroviral Therapy in Early Asymptomatic HIV Infection. Lundgren J.D et al, NEJM.org, julho 20, 2015)
Assim, há benefício clínico no início da terapia antirretroviral para qualquer nível de CD4 da PVHA. Logo a PVHA pode começar a ser tratada assim que diagnosticada.
Portanto, com o uso da terapia antirretroviral, há benefícios para a saúde da PVHA e para a prevenção da transmissão do HIV, em qualquer estágio da infecção.
Persistência da carga viral indetectável: o que acontece entre dois exames sucessivos que mostram a carga viral indetectável
Uma pergunta que pode ser feita é o que acontece entre dois exames sucessivos da mesma pessoa, que apresentam carga viral indetectável, em pacientes tratados durante alguns anos.
Um estudo italiano, publicado em janeiro de 2021, acompanhou mais de 8.000 de PVHA por 10 anos, para avaliar isso. Ele determinou que “o monitoramento regular da carga viral (pelo menos duas vezes por ano na maioria) mostrou que essa carga permaneceu suprimida 97% do tempo.” Isto reforça a validade da mensagem ‘I = I’. (Madeddu G et al. Time spent with a viral load<200 copies/mL in a cohort of people with HIV seen for care in Italy during the U=U prevention campaign era. AIDS, published online ahead of print, 29 January 2021.doi: 10.1097/QAD.0000000000002825)
Selecionamos uma parte do texto:
“O monitoramento de longo prazo de pessoas com HIV com carga viral indetectável mostrou que a supressão viral raramente é perdida, reforçando a validade da mensagem ‘I = I’ (Indetectável é igual a Intransmissível), de acordo com uma pesquisa italiana publicada na edição online da revista científica AIDS. O estudo envolveu mais de 8.000 indivíduos HIV-positivos em terapia antirretroviral (TAR) e com supressão viral (carga viral abaixo de 200) no início do estudo. O monitoramento regular da carga viral (pelo menos duas vezes por ano na maioria) mostrou que a carga viral permaneceu suprimida 97% do tempo.”
Os resultados dos ensaios clínicos falam por si mesmos. Mas é importante salientar a adesão de algumas instituições a esta Declaração.
Editorial de The Lancet, prestigiosa revista científica britânica (www.thelancet.com/hiv Vol 4 November 2017)
Página The Lancet
“O fato de que as pessoas infectadas pelo HIV com supressão viral não podem transmitir sexualmente o vírus a outras pessoas é agora aceito na comunidade HIV / Aids como resultado do acúmulo de evidências desde o início dos anos 2000.”
UNAIDS: Programa Global de AIDS das Nações Unidas
https://www.unaids.org/sites/default/files/media_asset/undetectable-untransmittable_en.pdf
Nota Técnica Depto de IST, AIDS e HV (14 de maio de 2019) (consultado em 3/02/2021). Ver Anexo ou acessar.
http://www.aids.gov.br/pt-br/legislacao/nota-informativa-no-52019-diahvsvsms
NOTA INFORMATIVA Nº 02/2017/CRT-PE-DST/AIDS/SES-SP. (Ver Anexo)
“Os avanços científicos têm mostrado que a terapia antirretroviral (TARV) preserva a saúde das pessoas que vivem com o HIV. Também temos fortes evidências da eficácia da prevenção da TARV. Quando a TARV resulta em supressão viral, definida como menos de 200 cópias / ml ou níveis indetectáveis, ela previne a transmissão sexual do HIV. Em três estudos diferentes, incluindo milhares de casais e muitos milhares de atos sexuais sem preservativo ou profilaxia pré-exposição (PrEP), nenhuma transmissão de HIV para um parceiro HIV-negativo foi observada quando a pessoa HIV-positiva estava com carga viral suprimida. Isso significa que as pessoas que tomam TARV diariamente, conforme prescrito, e alcançam e mantêm uma carga viral indetectável,não correm risco de transmitir sexualmente o vírus a um parceiro HIV-negativo ... ”
Conforme demonstrado nos estudos HPTN 052(1), Partner(2) e Opposites Attract(3), o risco de uma pessoa vivendo com HIV/Aids, que esteja com carga viral indetectável, há pelo menos seis meses, em uso regular da medicação antirretroviral, transmitir o vírus por via sexual foi considerado insignificante.
Sociedade Brasileira de Infectologia de São Paulo, 18 de janeiro de 2018.
Outras declarações de apoio por instituições e revistas científicas podem ser achados na página https://www.preventionaccess.org/consensus, em “U=U resources”.
Há alguns processos judiciais, por exposição ou transmissão, em que foram utilizados estes resultados e a Declaração I=I.
Em primeiro lugar, é importante uma sentença do Tribunal de Cassação da França. O link da sentença está no texto.
Supremo Tribunal da França confirma que as PVHA com carga viral indetectável não podem ser processadas, porque o risco de transmissão é nulo.
Podemos processar uma pessoa HIV-positiva em tratamento? O Tribunal de Cassação toma decisão histórica.
Em uma sentença proferida em 5 de março de 2019, o Tribunal de Cassação declarou que era impossível processar um homem HIV-positivo em tratamento, com carga viral indetectável, que fez sexo sem camisinha e não informou a parceira sobre sua sorologia para o HIV (Sentença126 (18-82.704). https://www.legifrance.gouv.fr/juri/id/JURITEXT000038238535
É a primeira sentença deste tipo na França. O Tribunal de Cassação reconheceu, em uma sentença proferida em 5 de março, a natureza preventiva do tratamento contra o HIV. Assim, nenhuma pessoa cuja carga viral seja indetectável e faça sexo sem preservativo com outra pessoa sem que esta tenha conhecimento da sorologia de seu parceiro, pode ser processada.
Neste caso, uma mulher que fez sexo com um homem que era HIV-positivo e estava em tratamento processou o homem, alegando que ele não a havia notificado anteriormente sobre sua condição de HIV-positivo. A acusadora não estava infectada. No entanto, o homem foi processado com base na “administração de uma substância nociva”, ou seja, uma suposta exposição ao vírus.
Fluidos corporais não prejudiciais
O juiz de primeira instância não deu seguimento ao processo. Uma decisão da qual a acusação recorreu, mas que foi rejeitada novamente. De acordo com o Tribunal de Recursos, ficou provado que a “carga viral do HIV” era “consistentemente indetectável desde 3 de setembro de 2001”. O homem fez “estrita e permanente adesão ao tratamento, de modo que a soropositividade era apenas potencial, mas não atual”.
E os juízes da Tribunal de Recursos decidiram que “os fluidos corporais do usuário não podem ser considerados prejudiciais na data dos atos que lhe são censurados”.
“os fluidos corporais do usuário não podem ser considerados prejudiciais na data dos atos que lhe são censurados”
Um lembrete não insignificante dos juízes: eles afirmam que é necessária “uma carga viral detectável em uma pessoa infectada para que ela possa infectar algum parceiro”.
Uma margem de erro puramente matemática
Além disso, os juízes do Tribunal de Recursos reconheceram que havia de fato uma margem de erro, mas que era puramente matemática. Assim, eles concebem a ideia de “risco não zero” de transmissão do HIV por uma pessoa em tratamento. Um risco que eles descrevem como “pequeno”, uma vez que é cerca de um em 10.000. E, segundo eles, essa margem de erro não permite condenar o portador do vírus.
A acusação recorreu ao Tribunal de Cassação. O Tribunal negou provimento ao recurso, alinhando-se aos juízes de primeira instância.
Em 5 de março de 2019, o Tribunal de Cassação declarou que era impossível processar um homem HIV-positivo em tratamento, com carga viral indetectável, que fez sexo sem camisinha e não informou a parceira sobre sua sorologia para o HIV (Sentença 126, 18-82.704).
Conclusão:
É claro que, à luz do conhecimento científico atual, não cabe processar uma PVHA em tratamento eficaz com antirretrovirais por exposição ou transmissão do HIV por via sexual.
Por estes motivos, sugerimos que os operadores de justiça arquivem quaisquer acusações contra PVHA em TAR eficaz por exposição ou transmissão do HIV por via sexual.
Ao mesmo tempo, para as PVHA que não estejam em TAR eficaz, sugerimos que seja adotado o princípio de presunção de inocência.
As PVHA que têm carga viral detectável.
Algumas pessoas vivendo com HIV/AIDS podem ter carga viral detectável. Seja porque desconhecem que têm HIV, ou porque têm dificuldades de adesão ao TAR ou porque o tratamento não é eficaz. A estigmatização, por exemplo, pode levar a pessoa que mora num ambiente preconceituoso não querer deixar seus frascos de medicamento no local onde mora.
Contudo, se alguma destas PVHA for processada por exposição ou transmissão sexual do HIV, ela deve contar com a presunção de inocência. Cabe à acusação, como mínimo, mostrar que não tinha HIV antes de conhecer o réu. E que não foram utilizadas outras formas de prevenção, tais como preservativos, ou Profilaxia Pré-Exposição.
No Brasil e no mundo, nem todas as PVHA conhecem sua sorologia. Além disso, nem todas as PVHA em tratamento com antirretrovirais alcançam a carga viral indetectável. Isso pode ser devido a problemas sociais (por exemplo: sistema de saúde inadequado, pobreza, racismo, negação, estigma, discriminação e criminalização) que dificultam a adesão ao tratamento, ou mesmo quando aderentes, por peculiaridades de cada organismo. Isto é, pode haver fortes razões de ordem social ou biológica envolvidos na falta de indetectabilidade da carga viral de HIV numa pessoa.
Devido aos problemas globais suscitados pela criminalização da transmissão ou da exposição ao HIV, um grupo de prestigiosos especialistas da área elaborou uma Declaração de Consenso sobre o uso da ciência do HIV no contexto da Lei Penal.
Ela é assinada por cientistas respeitados, entre os quais a Prêmio Nobel Françoise Barre-Sinoussi e a pesquisadora brasileira Beatriz Grinsztejn (INI, Fiocruz, Rio de Janeiro).
Eles expressam:
Globalmente, os processos por exposição ou transmissão do HIV frequentemente estão relacionados à atividade sexual, mordidas ou cuspidas. Isto inclui casos em que nenhum dano foi pretendido, a transmissão do HIV não ocorreu e a transmissão do HIV era muito improvável ou impossível. Portanto, fica sugerido que os processos nem sempre são guiados pelas melhores evidências científicas e médicas disponíveis.
Neste contexto, esperamos que esta Declaração de Consenso incentive os governos e aqueles que trabalham no sistema legal e judicial a prestarem atenção aos avanços significativos na ciência do HIV que ocorreram nas últimas três décadas, e a envidar todos os esforços para garantir que uma compreensão completa e correta do conhecimento científico atual embase qualquer aplicação da lei criminal em casos relacionados ao HIV.
A Declaração de Consenso tem como objetivo auxiliar os especialistas científicos, considerando casos criminais individuais nos quais foi alegada a exposição (percebida ou possível) ou transmissão intencionais do HIV. Ele fornece a opinião de especialistas sobre a dinâmica de transmissão individual do HIV (ou seja, a “possibilidade” de transmissão), o impacto de longo prazo da infecção crônica pelo HIV (ou seja, o “dano” do HIV), e a aplicação da análise filogenética como evidência.
Análise Filogenética: análise biológica utilizada, por exemplo, para determinar a proximidade de duas amostras de vírus (no caso, do HIV). Nesse caso, visa a estabelecer se as amostras de HIV do acusado e do acusador são compatíveis ou não.
Descreve a possibilidade de transmissão do HIV entre indivíduos que se envolveram em um ato específico, em um momento específico sob circunstâncias específicas, uma vez que este geralmente é o foco de casos criminais, e visa a comunicar as evidências científicas atuais relacionadas ao HIV de uma maneira compreensível para um público não científico.
Dadas as evidências apresentadas neste documento, recomendamos enfaticamente que mais cuidado seja exercido ao considerar um processo criminal, incluindo uma avaliação cuidadosa das evidências científicas atuais sobre os riscos e danos relacionados ao HIV. Isso é fundamental para reduzir o estigma e a discriminação e evitar erros judiciais.
Referência:
Expert Consensus Statement on the science of HIV in the context of Criminal law
(Declaração de Consenso de Especialistas sobre a ciência do HIV no contexto da Lei Criminal)
Barre-Sinoussi F et al. Journal of the International AIDS Society 2018, 21:e25161
http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1002/jia2.25161/full
https://doi.org/10.1002/jia2.25161