Em todos os casos, exceto em um, as pessoas com HIV receberam células-tronco de uma pessoa que tinha resistência natural à infecção pelo HIV devido à presença da mutação CCR5-delta-32 – as pessoas com esta mutação genética rara não têm receptores CCR5 nas células do sistema imunitário, por isso o HIV não consegue entrar nas células.
1) O “PACIENTE DE BERLIM”
A primeira pessoa curada do HIV foi Timothy Ray Brown, um americano que morava em Berlim e vivia com HIV havia mais de uma década quando desenvolveu leucemia mieloide aguda, necessitando dois transplantes de células-tronco para tratar a leucemia em 2006. O doador nos dois momentos foi o mesmo e era portador da mutação CCR5-delta-32. Ele foi submetido a quimioterapia intensiva e radioterapia de corpo inteiro para matar suas células imunológicas cancerígenas, permitindo que as células-tronco do doador reconstruíssem um novo sistema imunológico resistente ao HIV.
Brown interrompeu a terapia antirretroviral (TARV) no momento do seu primeiro transplante, mas a sua carga viral não voltou a ser detectada. Os investigadores procuraram o HIV em vários tecidos (sangue, intestino, cérebro e outros), não encontrando qualquer evidência de HIV com capacidade de replicação. Em 2009 seu caso foi publicado em literatura. Em 2010, começou a falar à imprensa abertamente e tornou-se embaixador da pesquisa sobre a cura do HIV. Tim Brown morreu em setembro de 2020, aos 54 anos, por recidiva da leucemia – tendo permanecido 14 anos sem sinais do HIV em seu corpo.
Seu caso estimulou os investigadores a procurarem doadores semelhantes em situações subsequentes em que pessoas com HIV precisassem de transplantes de células-tronco.
2) O “PACIENTE DE LONDRES”
Dez anos depois, em 2019, foi relatado na revista científica Nature o caso de Adam Castillejo, que em 2015 recebeu um transplante de células-tronco de um doador com resistência natural à infecção como parte do tratamento para o linfoma de Hodgkin. Seu tratamento antirretroviral foi interrompido em 2017, 16 meses após o transplante. Um ano depois ele veio a público contar sua história. Ele está sem TARV desde então, sem nenhum vestígio de HIV
3) O “PACIENTE DE DUSSELDORF”
Marc Franke, tal como os pacientes de Londres e Genebra, é membro da coorte ICISTEM da amfAR de pessoas que vivem com HIV e câncer e que receberam transplantes de células-tronco. Sua leucemia mieloide aguda foi tratada com um transplante de células-tronco CCR5-delta-32 em 2013 – alguns meses após o transplante, ele teve uma recaída de sua leucemia, que foi tratada com sucesso sem transplante adicional. Sua TARV foi mantida até 2018 – sua remissão foi relatada em 2019 e somente em fevereiro de 2023, após mais de quatro anos de testes extensivos. Ele foi declarado curado do HIV na conferência da Sociedade Internacional de AIDS sobre a ciência do HIV, no ano passado.
Ela recebeu um transplante de sangue haplocordão para tratar uma leucemia mieloide aguda em 2017.
4) A “PACIENTE DE NOVA YORK”
A primeira mulher a participar desta lista de pacientes teve seu caso descrito em fevereiro de 2022, quando já estava havia 14 meses sem TARV, sem que o seu HIV voltasse a ficar detectável. Ela recebeu um transplante de sangue haplo-cordão para tratar uma leucemia mieloide aguda em 2017. Este é um tipo diferente de transplante de células-tronco, usado em circunstâncias em que é difícil encontrar uma correspondência genética próxima, usando células de mais de um doador. Neste caso, o sangue do cordão umbilical de um doador com a mutação dupla CCR5-delta-32 foi suplementado por células de um parente sem a mutação CCR5-delta-32. Seu caso foi relatado por cientistas na revista científica Cell, em 2023.
5) O “PACIENTE DO CITY OF HOPE”
Paul Edmonds é um americano da Califórnia, de 63 anos, cujo caso foi relatado em julho de 2022 na conferência de AIDS de Montreal. Ele recebeu um transplante de células-tronco para tratar leucemia mieloide aguda de um doador com mutação dupla CCR5-delta-32. Até agora, ele é a pessoa mais velha que vive com o HIV há mais tempo (31 anos) e que teve o CD4 mais (abaixo de 100) dentre aqueles que conseguiram o controle viral sem tratamento. Ele interrompeu a TARV 2 anos após o transplante e não apresentou vestígios de HIV nos 17 meses seguintes, estando a sua leucemia também em remissão. Edmonds veio a público pelo jornal USA Today em abril de 2023.
Os testes ultrassensíveis de carga viral não conseguiram detectar o vírus após o transplante e o homem interrompeu o tratamento como planejado.
6) O “PACIENTE DE GENEBRA”
Mais recentemente, um suíço na faixa dos 50 anos se tornou a primeira pessoa a experimentar a remissão do HIV após um transplante de células-tronco (em 2018) que não tinham a mutação dupla CCR5-delta-32. Ele recebia TARV desde 2005, sempre mantendo carga viral do HIV indetectável. Recebeu o transplante após quimioterapia e radioterapia para tratar um sarcoma bifenotípico. As células CD4 do hospedeiro foram completamente substituídas um mês após o transplante, mas ele teve a doença do enxerto contra o hospedeiro, que ocorre quando as células imunológicas do doador atacam o corpo do receptor. Isto exigiu tratamento com ruxolitinib, um inibidor de JAK 1/2, que também demonstrou reduzir o tamanho do reservatório do HIV. Os testes ultrassensíveis de carga viral não conseguiram detectar o vírus após o transplante e o homem interrompeu o tratamento como planejado. Ele está sem rebote do vírus há 54 meses e seus níveis de DNA do HIV continuaram a diminuir após o tratamento. Este caso intrigante levanta novas questões sobre potenciais mecanismos que poderiam levar à remissão do HIV.
É importante frisar que estes casos são considerados incomuns e que outras tentativas de replicar esses resultados em outras PVHA em tratamento contra cânceres hematológicos falharam – há relatados os casos dos “Pacientes de Boston” e o “Paciente de Essen”
Transplantes de células-tronco são procedimentos muito arriscados para pessoas que não precisam deles para tratar cânceres potencialmente fatais
Além disso, os transplantes de células- -tronco são procedimentos muito arriscados para pessoas que não precisam deles para tratar cânceres potencialmente fatais, e o procedimento intensivo e dispendioso está longe de ser viável para a grande maioria das PVHA em todo o mundo.
Casos de Cura Funcional do HIV também existem. Alguns destes nunca receberam tratamento antirretroviral (Controladores de Elite) e outros trataram e interromperam o tratamento, sem rebote do vírus desde então (Controladores Pós-Tratamento).
Há 2 casos considerados de “supercontroladores de elite”:
- Loreen Willenberg, a “Paciente de San Francisco”, diagnosticada em 1992 já há 32 anos sem sinais do HIV no corpo, sem nunca ter tratado.
- A “Paciente de Esperanza”, com diagnóstico do HIV em 2013 e apenas 2 períodos de TARV, durante suas gestações. Esta paciente já se encontra há 9 anos sem sinais do HIV detectados no corpo.
Os Controladores Pós-Tratamento (CPT) são uma categoria de cura funcional bastante heterogênea, com alguns casos compartilhando características comuns e outros não. Nos estudos científicos a frequência dos CPT varia bastante, de 0 a 26%.
- Coorte de Visconti: 14 pessoas que receberam TARV por um período de 1 a 8 anos, iniciando bem próximo do momento da infecção aguda e que já estão em interrupção de tratamento há uma média de 7 anos e meio. O estudo foi publicado em 2013 na revista Plos Pathology.
- Estudo CHAMP: 67 pacientes de 14 estudos, abrangendo 38 pacientes que iniciaram tratamento na fase de infecção aguda e 25 que iniciaram já em fase de infecção crônica. Destes pacientes, 55% mantiveram controle sem uso de TARV por até 2 anos e 20% por até 5 anos. Este estudo foi publicado na revista Journal of Infectious Diseases em 2018.
- A “Paciente de Barcelona”, de 49 anos, fez parte de um estudo clínico utilizando imunoterapia + TARV na fase aguda da doença e, após a interrupção estruturada de tratamento, permanece há 15 anos sem replicação viral no sangue. Seu caso foi relatado na Conferência AIDS 2022.
- Um paciente do estudo “The ERA” para tratamento do HIV em fase aguda com tratamento intensificado e que interrompeu a TARV 26 meses após, mantendo-se sem replicação do HIV há 23 anos. Seu caso foi publicado em 2023 na revista AIDS
É possível perceber nos relatos destes casos que há um grande cuidado em classificar um paciente como “curado” da infecção pelo HIV. Muitas vezes eles são considerados como pessoas com infecção pelo HIV “em remissão” por alguns anos, sem uso de TARV, e com extensiva busca de sinais do HIV em variados tecidos corporais até que se possa considerar com segurança o diagnóstico de cura
(*) Sidnei Rana Pimentel é Médico Infectologista do CRT-DST/AIDS
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