BOLETIM
VACINAS
ANTI HIV/AIDS - NÚMERO 35
PUBLICAÇÃO DO GIV - GRUPO DE INCENTIVO À VIDA - Julho - 2024

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Boletim Vacinas Anti-HIV/AIDS - GIV

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PATENTES
Acesso à atualização tecnológica
Monopólio de medicamentos
E OS ENTRAVES NO ACESSO A NOVAS TECNOLOGIAS E NA ATUALIZAÇÃO DOS ESQUEMAS TERAPÊUTICOS NO BRASIL
Carlos André F Passarelli*

O debate sobre os impactos das leis de comércio internacional nos custos de produção e preços de tecnologias de saúde e, consequentemente, no acesso a esses insumos, tem estado presente em diversos fóruns de políticas de saúde pública. As inequidades com relação ao acesso às terapias antirretrovirais se tornaram inequívocas no final dos anos 90, quando somente pacientes de países desenvolvidos podiam usufruir desses produtos que revolucionaram o tratamento das pessoas que vivem com HIV. Somente com a produção de versões genéricas desses medicamentos em países como Índia e Brasil, foi possível a muitos países em desenvolvimento incluir essas tecnologias em seus programas de atenção às pessoas vivendo com HIV.

De que maneira esses países puderam produzir esses medicamentos? Em 1994, com a criação da Organização Mundial de Comércio (OMC), os países-membros tiveram que reformular suas leis para adequá-las aos diversos tratados e acordos de fundação da entidade. Entre eles, o Acordo sobre os Direitos de Propriedade Intelectual relacionados ao Comércio (TRIPS, em inglês). Segundo TRIPS, os países devem conceder exclusividade de mercado de 20 anos (no caso de medicamentos, as patentes) para os produtos industriais que preencham os requisitos para ser considerados inovadores, a saber:

  • Novidade: O produto deve ser novo, ou seja, não pode ter sido previamente conhecido ou disponível publicamente.
  • Atividade Inventiva: O produto deve envolver um passo inventivo, isto é, deve ser uma criação que não seja óbvia para um especialista no campo.
  • Aplicação Industrial: O produto deve ser passível de aplicação industrial, ou seja, deve ser possível produzi-lo em escala comercial.

Os países que não são considerados menos desenvolvidos (LDC, em inglês) assumiram o compromisso de incorporar as disposições do acordo TRIPS em suas legislações nacionais sobre propriedade intelectual (patentes, direitos autorais, conhecimento tradicional) dentro de um prazo de 10 anos a partir de 1995. O Brasil não utilizou essa flexibilidade integralmente e, em 1996, adotou sua nova lei de propriedade industrial (com entrada em vigor em 1997). Mas, o Brasil já produzia medicamentos antirretrovirais antes de 1997: em 1993, o País iniciou a produção de zidovudina (AZT) e no ano 2000, por meio de laboratórios nacionais públicos e privados, produzia sete entre 13 antirretrovirais distribuídos pelo então Programa de DST e AIDS8 . A Índia fez uso dos 10 anos previstos por essa flexibilidade e somente reformulou sua lei de patentes em 2005. Isso permitiu às indústrias farmacêuticas indianas desenvolver produtos que ainda estavam protegidos por patentes em outros países. Assim, a Índia se consolidou como a farmácia dos países em desenvolvimento, provendo o continente africano dos medicamentos antirretrovirais a preços abordáveis.

A lei brasileira de propriedade industrial de 1996, ainda que não incorporasse integralmente todas as flexibilidades previstas no acordo TRIPS, continha disposições para a exploração local de produtos protegidos por patentes (artigo 68), nos casos em que se considere que o titular de uma patente utilize seus direitos de forma abusiva (abuso de poder econômico). Segundo a lei, essas situações engendrariam as condições para o licenciamento compulsório da patente, para atender ao interesse público.

Havia uma clara ameaça à produção brasileira de medicamentos antirretrovirais e, consequentemente, à sustentabilidade da política brasileira de distribuição de medicamentos antirretrovirais por meio do Sistema Único de Saúde.

No entanto, em 2001, o governo dos Estados Unidos da América entrou com uma queixa (painel) contra o Brasil na OMC, argumentando que esse artigo violava provisões do acordo TRIPS, especificamente seus artigos 27 e 28. O fato gerou mobilização por parte das organizações da sociedade civil que trabalham com temas relacionados à saúde pública, sobretudo as organizações não-governamentais (ONG) de HIV/AIDS e redes de pessoas vivendo com HIV/AIDS. Ainda que os acordos internacionais de comércio não estivessem fortemente na pauta do movimento social de AIDS no Brasil, manifestações foram organizadas diante das representações diplomáticas do governo dos EUA no Recife, Rio de Janeiro e em São Paulo. Havia uma clara ameaça à produção brasileira de medicamentos antirretrovirais e, consequentemente, à sustentabilidade da política brasileira de distribuição de medicamentos antirretrovirais por meio do Sistema Único de Saúde. Ao mesmo tempo, o governo brasileiro começa a fazer pressão sobre as empresas estrangeiras, ameaçando utilizar o licenciamento compulsório como previsto em lei, para obter redução no preço dos antirretrovirais importados. Em julho de 2001, os governos dos dois países entram em acordo e os EUA retiram a queixa contra o Brasil.

O tema da propriedade intelectual e do monopólio das indústrias farmacêuticas entra na agenda do movimento social de AIDS no Brasil e no mundo: a vida não é mercadoria, reivindicam ativistas dos países do sul global. Aqui começa a engendrar-se a atual configuração do Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual da REBRIP, que em 2003 se constitui como um grupo de ativistas pelo acesso a medicamentos e outras tecnologias de saúde. Movimentos similares surgem em outros países em desenvolvimento e essas vozes começam a ser ouvidas em reuniões intergovernamentais de alto nível que abordam o tema.

DISPUTAS ENTRE O INTERESSE PÚBLICO E O PRIVADO

No texto da declaração política elaborado durante a primeira sessão especial da Assembleia das Nações Unidas (UNGASS, em inglês) sobre o HIV/AIDS, em julho de 2001, a preocupação com as barreiras comerciais ao acesso aos medicamentos se faz sentir. Em sua seção introdutória, a declaração acentua as obrigações dos Estados-membros com respeito à proteção dos direitos humanos, e que tais obrigações têm primazia sobre outros interesses, incluindo os comerciais. A declaração reforça que o sucesso dos esforços em prevenção e tratamento está diretamente relacionado ao acesso e preços abordáveis de produtos de saúde essenciais. Além disso, a declaração reconhece que os potenciais impactos dos acordos comerciais em tais esforços demandam uma reflexão mais aprofundada, sobretudo em relação à produção local de medicamentos (artigo 26) e à importância de maior transparência sobre os preços dos medicamentos essenciais (artigo 103). O tema será abordado nas declarações políticas sobre o HIV/AIDS nos anos posteriores: em 2006 (parágrafos 15, 24 e 42-44), 2011 (parágrafos 32, 35, 36, 71a, 71b 71c e 72), 2016 (parágrafos 37 e subparágrafos de 60a a 60n) e em 2021 (parágrafos 68 e 69).

Ainda no ano de 2001, tivemos outro marco no debate sobre o impacto da proteção da propriedade intelectual no acesso a tecnologias de saúde. Em novembro, durante a conferência interministerial da OMC, os países-membros adotam a declaração sobre o acordo TRIPS e a Saúde Pública, conhecida como Declaração de Doha. Reconhecendo a gravidade dos problemas de saúde em países em desenvolvimento, sobretudo as epidemias de AIDS, tuberculose e malária, os países aceitam que o acordo TRIPS não previne e não deveria prevenir os países-membros a adotar medidas para proteger a saúde pública, e que o TRIPS deveria ser interpretado e implementado de maneira a apoiar o direito dos países de proteger a saúde pública e promover o acesso aos medicamentos para todas as pessoas. Ao mesmo tempo, a Declaração de Doha reafirma o direito dos países em utilizar as flexibilidades previstas no acordo TRIPS para essa finalidade.

TRIPS deveria ser interpretado e implementado de maneira a apoiar o direito dos países de proteger a saúde pública e promover o acesso aos medicamentos para todas as pessoas.

A Declaração de Doha foi e continua sendo um divisor de águas na agenda do comércio internacional sobre o impacto da proteção da propriedade intelectual no acesso às tecnologias de saúde. Mas, como o tema tem sido abordado pela agenda da saúde pública e sua entidade intergovernamental de maior relevância, a Organização Mundial de Saúde? Se as declarações políticas sobre o HIV/AIDS, como descrito acima, se debruçaram sobre o tema em todas as suas edições desde 2001, o debate sobre o alcance e mandato da OMS em estabelecer diretrizes nas interfaces entre comércio e saúde pública segue até hoje acalorado e intenso.

Em 2001, a Secretaria de Estado para o Desenvolvimento Internacional do Reino Unido estabeleceu uma comissão de peritos internacionais em diversas áreas do conhecimento e de diferentes regiões do mundo, para examinar as vantagens e lacunas do sistema internacional de propriedade intelectual para a redução das desigualdades entre países desenvolvidos e em desenvolvimento, estabelecendo recomendações no sentido de reverter as distorções do sistema, que têm um impacto negativo sobretudo para os países em desenvolvimento.

As recomendações dessa comissão irão repercutir no âmbito da OMS, e em 2003, a Assembleia Mundial da Saúde, o órgão maior de governança da OMS, estabelece sua comissão global sobre a inovação, propriedade intelectual e saúde pública, com o mandato de propor diretrizes para o trabalho da organização nessa área. O Brasil foi um dos países visitados pela comissão, reunindo-se com autoridades governamentais e lideranças do movimento social

Diante das recomendações da comissão, a Assembleia Mundial da Saúde decide criar um grupo de trabalho intergovernamental (IGWG, em inglês) para desenvolver uma estratégia que permita à OMS apoiar os países em superar as barreiras potenciais impostas pela proteção da propriedade intelectual para a pesquisa e o desenvolvimento de tecnologias de saúde e assegurar o acesso aos frutos da inovação aos países em desenvolvimento. A Estratégia Global e Plano de Ação sobre a Inovação, Propriedade Intelectual e Saúde Pública é adotada pela Assembleia Mundial de Saúde em 2008, tendo oito eixos temáticos:

  • Priorização das necessidades de pesquisa e desenvolvimento;
  • Promoção da pesquisa e desenvolvimento em saúde;
  • Estabelecimento e melhoria da capacidade de inovação;
  • Transferência de tecnologia;
  • Aplicação e gestão da propriedade intelectual para contribuir com a inovação e promover a saúde pública;
  • Melhoria da distribuição e acesso (tecnologias de saúde);
  • Promoção de mecanismos de financiamento sustentável;
  • Estabelecimento de sistemas de monitoramento e informe.

Diversos processos e iniciativas em relação a acesso a medicamentos no âmbito da OMS foram derivados da Estratégia Global de 2008. Entre eles, a criação de um grupo de trabalho consultor de expertos, que estabeleceu recomendações para a coordenação e o financiamento da pesquisa e desenvolvimento no campo da saúde pública (2012). Uma das recomendações propunha explorar modalidades de incentivo à pesquisa e desenvolvimento de tecnologias de saúde desvinculadas (de-linked, em inglês) da remuneração pela atividade de invenção e inovação por meio da exclusividade de mercado, ou seja, da proteção da propriedade intelectual (patentes, por exemplo). Dessa maneira, o impacto sobre os preços dos medicamentos, vacinas, diagnósticos e demais tecnologias de saúde seria atenuado.

Outros desdobramentos importantes da Estratégia Global foram a adoção de um roteiro (roadmap, em inglês) para o acesso a medicamentos (2019), e as resoluções da Assembleia Mundial da Saúde sobre transparência do mercado de produtos farmacêuticos (2019) e fortalecimento da produção local de tecnologias de saúde (2021).

Esse conjunto de compromissos, iniciativas e mecanismos estabelecidos por meio de organismos multilaterais pode criar condições para que se produzam modificações na maneira como os governos e as sociedades implementam legislações e programas que diminuam as inequidades e ampliem o acesso aos insumos de saúde de forma mais igualitária. Mas há um inequívoco descompasso entre o compromisso e a ação, sobretudo no nível nacional. Além disso, existe algum nível de incoerência política entre distintas organizações, e isso se reflete internamente nos países, com setores do governo apontando em posições distintas. Esse fenômeno é bem presente, por exemplo, quando o governo discute as prioridades orçamentárias com o legislativo.

EM BUSCA DA COERÊNCIA POLÍTICA

O desequilíbrio entre as leis internacionais de comércio (TRIPS, por exemplo) e os compromissos assumidos pelas nações relacionados à proteção dos direitos humanos (o acesso à saúde, às tecnologias de saúde e aos produtos da inovação científica) têm estado sob a lupa de ativistas da saúde e de autoridades governamentais que buscam encontrar soluções concretas para assegurar equidade no acesso às tecnologias de saúde. Ao adotar a perspectiva dos direitos humanos no debate sobre o acesso às tecnologias de saúde, ativistas denunciam que a ênfase no respeito aos tratados comerciais, incluindo a proteção dos direitos de propriedade intelectual, acaba por impedir a produção e distribuição de tecnologias de saúde a preços acessíveis. Além do mais, o argumento de que o sistema de propriedade intelectual atua como incentivo para a inovação científica é facilmente questionado quando se observa que ele propicia a inovação em produtos de saúde que possuem interesse comercial (lucro), deixando sem atenção as necessidades de saúde das populações mais pobres. As regras de mercado não podem continuar orientando a definição das políticas de saúde pública.

O argumento de que o sistema de propriedade intelectual atua como incentivo para a inovação científica é facilmente questionado quando se observa que ele propicia a inovação em produtos de saúde que possuem interesse comercial.

Essa lógica foi discutida profundamente pela Comissão Global sobre o HIV e o Direito (2012), que dedicou um capítulo de seu relatório final aos impasses vividos pelos governos de países em desenvolvimento para assegurar o direito de acesso aos medicamentos das pessoas que vivem com HIV e as pressões políticas dos países desenvolvidos para que não se utilizem as flexibilidades do acordo TRIPS, como recomenda a Declaração de Doha de 2001.

Uma das recomendações da Comissão para investigar e propor soluções para as incoerências políticas entre os tratados de comércio internacional e os compromissos relacionados à proteção e à promoção dos direitos humanos, foi a criação pelo Secretário Geral das Nações Unidas de um painel de alto nível que se debruçaria sobre o tema. Em seu informe lançado em 2016, o painel analisou como essas incoerências engendram uma expressiva falta de acesso às tecnologias para as necessidades de saúde existentes e incapacidade de gerar ferramentas para problemas emergentes, não somente em países em desenvolvimento, mas também nos países ricos.

Ao mencionar problemas emergentes, o painel se referia ao problema da resistência antimicrobiana, mas não é difícil ver como essa análise se aplica ao que vivemos recentemente com a pandemia de covid-19: ainda que um acelerado esforço da comunidade científica tenha permitido o desenvolvimento de vacinas, os países ricos não somente tiveram acesso aos produtos em primeiro lugar, como asseguraram quantidades suficientes para imunizar com mais de uma dose toda a sua população, enquanto que os países mais pobres nem sequer tinham doses suficientes para uma proteção inicial dos grupos mais vulneráveis. Como descrito anteriormente, também com a epidemia de AIDS vivemos situação semelhante: enquanto as novas terapias antirretrovirais estavam disponíveis nos países ricos, as pessoas vivendo com HIV em países em desenvolvimento morriam pela falta de acesso.

Iniciativas internacionais buscaram mobilizar recursos financeiros, técnicos e humanos e implementar dispositivos para escalonar os programas de acesso a medicamentos.

No campo da epidemia de HIV, assistimos a avanços importantes para reverter essa situação. Diversas iniciativas internacionais buscaram mobilizar recursos financeiros, técnicos e humanos e implementar dispositivos para escalonar os programas de acesso a medicamentos, tais como: o programa de pré-qualificação da OMS (2001), o Fundo Global de Combate à AIDS, Tuberculose e Malária (2002), o Plano Emergencial Presidencial dos Estados Unidos para a AIDS (2003; PEPFAR, em inglês), o Fundo Internacional para a Compra de Medicamentos (UNITAID, 2006), a Fundação de Pool de Patentes de Medicamentos (2010; Patent Pool, ou MPP, em inglês), entre outras. Organizações da Sociedade Civil também lideram iniciativas importantes para garantir maior transparência no mercado de produtos para o HIV. Por exemplo, a publicação da organização internacional Médicos Sem Fronteiras (MSF) sobre os preços e status patentário dos produtos antirretrovirais permite aos governos e entidades que compram medicamentos uma noção mais ampla do mercado. Outras organizações, como é o caso do GTPI, no Brasil, em parceria com outras organizações da sociedade civil na Argentina, Marrocos, Índia, Tailândia e Ucrânia, monitoram os processos para a concessão de patentes e apresentam oposições em pedidos de patentes por parte das empresas farmacêuticas, que não correspondem aos requisitos previstos na legislação. Essas iniciativas contribuem para modelar o mercado farmacêutico e ampliar a produção e oferta de versões genéricas para os países em desenvolvimento.

INEQUIDADES PERSISTENTES

No entanto, como era de se esperar, todas as iniciativas mencionadas acima operam dentro dos marcos legais existentes e, desse modo, não conseguem fechar as lacunas estruturais existentes com respeito ao acesso às tecnologias de saúde:

Os escritórios de propriedade intelectual não possuem critérios rigorosos para a concessão de patentes.

  • Preços elevados das novas tecnologias: por estarem protegidas por patentes, não é possível a entrada no mercado de versões genéricas de maneira rápida, criando dependência das agências compradoras ao detentor da patente, que, por ter o monopólio assegurado por lei, tem o poder de definir o preço. Além disso, os escritórios de propriedade intelectual não possuem critérios rigorosos para a concessão de patentes. As organizações que trabalham com oposição de pedidos de patentes desempenham um papel importante nesse sentido. Por outro lado, os governos poderiam utilizar com mais frequência as flexibilidades previstas em TRIPS, como o licenciamento compulsório (também conhecido como quebra de patentes). No entanto, muitas vezes há falta de capacidade técnica para fazê-lo ou, mais preocupante, há pressões políticas internas e externas que dificultam a tomada de decisão nessa direção. Por exemplo, os novos antirretrovirais injetáveis de atuação prolongada, que representam avanços importantes do ponto de vista da aderência ao tratamento e da diminuição de efeitos colaterais importantes, chegam ao mercado com preços proibitivos e não existem perspectivas de produção genérica num curto período, ainda que um dos produtores tenha se utilizado do Patent Pool (MPP) para fazer um acordo de licenciamento voluntário do produto.

Avanços não podem ser incorporados, não por falta de capacidade interna, mas por restrições impostas pela observância dos direitos de propriedade intelectual.

  • Os contextos legais e econômicos dos países de renda média ou de renda média alta, como é o caso do Brasil, dificultam, por um lado, o acesso ao mercado de produtos genéricos, pois, além de ter os produtos patenteados em seu território, esses países nunca são incluídos no escopo geográfico dos acordos de licenciamento voluntário. Por outro lado, esses países financiam integralmente seus programas de tratamento com recursos próprios, sem ajuda internacional, o que dificulta a sustentabilidade financeira em largo prazo dos programas de assistência farmacêutica, incluindo a distribuição dos medicamentos antirretrovirais. Além disso, em países com alguma capacidade de produção farmacêutica, os medicamentos produzidos localmente passam a ser obsoletos em comparação com os avanços tecnológicos. Mas, esses avanços não podem ser incorporados, não por falta de capacidade interna, mas por restrições impostas pela observância dos direitos de propriedade intelectual. Aumenta-se, assim, a dependência em relação aos produtores externos. Um exemplo ilustrativo desta situação é a incorporação do dolutegravir nos esquemas terapêuticos. Apesar de ser um medicamento preconizado pela OMS para início do tratamento antirretroviral, muitos países de renda média demoram a incorporá-lo de forma abrangente, na medida em que outras opções terapêuticas são mais acessíveis. Na Colômbia, por exemplo, somente 5% das pessoas com HIV em tratamento utilizam esse medicamento, por questões econômicas. Diante disso, o governo colombiano decidiu pelo licenciamento compulsório do produto em dezembro de 2023, o que permitirá ao governo aceder ao mercado genérico e incluir uma parcela maior de pacientes na utilização desse produto. No Brasil, o dolutegravir é a recomendação principal para o início do tratamento, ainda que o preço pago pelo produto seja alto. Em comparação com o preço pago em outros países, o Brasil chega a pagar mais de 11 vezes mais caro que os preços conseguidos pelo UNICEF, por exemplo. O gasto com este único produto é muito superior à soma dos gastos com diversos outros medicamentos: em 2019/2020, o governo gastou R$ 1,1 bilhão de reais com dolutegravir e R$ 450 milhões com outros produtos somados. Mas o impacto da observância da patente não se faz sentir somente nos gastos, mas também na otimização do tratamento. Por não poder produzir ou comprar versões genéricas, o governo não pode comprar doses fixas combinadas do dolutegravir com outros antirretrovirais, o que aumenta o número de compridos a ser ingerido pelas pessoas com HIV que fazem uso dessa medicação diariamente. Isso também tem implicações logísticas consideráveis. Experiências passadas podem contribuir para reverter essa tendência, como foi o caso do licenciamento compulsório do efavirenz em 2007, que representou uma grande economia para o país e a possibilidade de incluir mais pacientes em programas de tratamento.
  • A produção de medicamentos antirretrovirais é concentrada em alguns países desenvolvidos e, no caso dos genéricos, em países do sudeste asiático, sobretudo a Índia com formulações finais e a China com os ingredientes farmacêuticos ativos (ou princípios ativos). Isto cria dificuldades logísticas que podem gerar rupturas de estoques nos países compradores, como se observou em alguma medida com a interrupção do tráfego aéreo e marítimo nos primeiros meses da pandemia de COVID-19.

Pouco se investe em doenças ou populações que não representam um atrativo financeiro para as empresas farmacêuticas. É o caso de muitas doenças tropicais que, por esse motivo, são definidas como doenças negligenciadas.

  • Como o sistema de proteção da propriedade intelectual vincula o incentivo à inovação (pesquisa e desenvolvimento) e à remuneração conseguida com a venda dos produtos, pouco se investe em doenças ou populações que não representam um atrativo financeiro para as empresas farmacêuticas. É o caso de muitas doenças tropicais que, por esse motivo, são definidas como doenças negligenciadas. No caso do HIV, pode-se dizer que a infecção pelo HIV em crianças é um caso de doença negligenciada, pois não há interesse das companhias em desenvolver produtos para um grupo que não é numeroso.

PERSPECTIVAS FUTURAS

Os avanços do conhecimento científico no enfrentamento às questões de saúde pública são importantes. Eles são frutos de investimentos de recursos financeiros, mas também de interesses genuínos de acreditar na ciência como um instrumento para a promoção dos direitos humanos e a paz entre as nações. No campo do HIV, a cada ano novos produtos chegam ao mercado com a promessa de melhorar a qualidade de vida das pessoas com HIV e eliminar a AIDS como uma questão de saúde pública até o ano 2030. Hoje se pode imaginar um tratamento para o HIV baseado em produtos que podem ser administrados a cada dois, quatro ou seis meses. E que podem inclusive prevenir a infecção pelo HIV em pessoas que não adquiriram o vírus. No entanto, para que essas inovações possam chegar a quem de fato as necessita, há que se repensar os mecanismos de financiamento de pesquisa e desenvolvimento no campo da saúde pública, para que se dê maior autonomia às pessoas que estão na linha de frente da investigação científica e que não faça com que o peso recaia na conta das pessoas que precisam utilizar o produto para manter-se saudáveis.

Hoje se pode imaginar um tratamento para o HIV baseado em produtos que podem ser administrados a cada dois, quatro ou seis meses.

Mas, os mecanismos existentes precisam ser mais utilizados. As flexibilidades previstas pelo acordo TRIPS têm o potencial de destravar barreiras de acesso aos medicamentos. Mas, elas precisam ser empregadas. Por um lado, os países em desenvolvimento devem estar mais capacitados para a incorporação e uso desses mecanismos em seus ordenamentos jurídicos. Por outro, os países desenvolvidos devem exercer a colaboração técnica e o apoio financeiro, ao invés de pressionar para que se mantenha o status quo e impedir que os outros países possam se desenvolver e ter acesso aos mesmos benefícios que os países ricos. Muito se fala em favorecer mecanismos voluntários de transferência de tecnologias e conhecimento. Mas, as corporações e países que abrigam essas corporações não mostram vontade política de compartilhar o conhecimento que possuem. E quando o fazem, é com uma quantidade de condicionalidades que poucas pessoas podem usufruir de seus benefícios. O conhecimento e a propriedade sobre o conhecimento não podem ser exclusivos de uma pequena parcela da população mundial.

Com ele [Jorge Beloqui], aprendemos que não podemos nunca nos dar por satisfeitos, pois sempre haverá alguém em algum canto do mundo a quem é negado o mínimo para sua subsistência.

Finalmente, é importante retomar os esforços para o desenvolvimento de vacinas eficazes para o HIV e produtos que permitam a erradicação do vírus (cura), no marco do que se entende por Cobertura Universal da Saúde. Em outras palavras, em uma perspectiva baseada na promoção e proteção dos direitos humanos. Este talvez seja um dos grandes legados de Jorge Beloqui e de sua militância aguerrida no movimento de AIDS no Brasil e no mundo. Com ele, aprendemos que não podemos nunca nos dar por satisfeitos, pois sempre haverá alguém em algum canto do mundo a quem é negado o mínimo para sua subsistência. E que todos nós temos uma responsabilidade com relação às pessoas que foram e seguem esquecidas pelas grandes corporações e pelas políticas públicas.

(*) Carlos André F. Passarelli é doutor em Psicologia Clínica pela PUC do Rio de Janeiro e Assessor para acesso a medicamentos do UNAIDS.

REFERÊNCIAS:
1 https://nacla.org/article/good-medicine-brazil’s-multifront-war-aids
2 https://www.wto.org/english/tratop_e/dispu_e/cases_e/ds199_e.htm
3 https://www.redalyc.org/journal/4008/400858300007/movil/?ssp=1&darkschemeovr=1&setlang=fr&cc=FR&safesearch=moderate
4 https://apps.who.int/gb/CEWG/pdf_files/A65_24-en.pdf
5 https://iris.who.int/bitstream/handle/10665/330145/9789241517034-eng.pdf?sequence=1
6 https://apps.who.int/gb/ebwha/pdf_files/WHA72/A72_ACONF2Rev1-en.pdf
7 https://cdn.who.int/media/docs/default-source/medicines/local-production/a74_r6-resolution_published.pdf?
8 The Global Commission on HIV and the Law. Risks, right and health: report of the Global Commission on HIV and the Law. New York: UNDP; 2012 (http://www.hivlawcommission.org/resources/report/FinalReport- Risks,Rights&Health-EN.pdf).
9 United Nations Secretary-General’s High-Level Panel on Access to Medicines report: promoting innovation and access to health technologies. New York: United Nations; September, 2016 (http://www.unsgaccessmeds.org/final-report/).
10 https://preprints.scielo.org/index.php/scielo/preprint/view/6303/12059
11 https://deolhonaspatentes.org/wp-content/uploads/2019/10/Os-_10_anos_do_Licenciamento-.pdf

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