“Ela descartou o leite que escorria de seus seios como lágrimas.”
Lili Nascimento no filme “Aquela criança com AID$”, 2023 (1)
No lugar, recomenda-se que a decisão seja compartilhada entre os profissionais de saúde e os cuidadores. Estes precisam receber informação centrada no paciente e baseada em evidências: que as chances de transmissão, de acordo com as pesquisas disponíveis, são menores que 1%, mas não é zero; mas também sobre os benefícios do aleitamento para a pessoa lactante e para o bebê. Qualquer que seja a decisão dos cuidadores, os profissionais devem respeitá-la e apoiá-la.
Além disso, o protocolo é explícito ao dizer que não se deve envolver o Conselho Tutelar nesses casos
A obstetra Judy Levison participou da revisão do protocolo e fez uma apresentação para a Sociedade Internacional Antiviral (IAS-USA, na sigla em inglês), disponível no YouTube, em que sintetiza as discussões que embasaram esta mudança (3).
COMO ERA ANTES NOS ESTADOS UNIDOS E COMO É NO BRASIL?
Historicamente, os países se dividiram em dois grupos: os que podiam e os que não podiam garantir fórmula láctea com segurança para todos os bebês nascidos de pessoas vivendo com HIV. O primeiro grupo era composto por países de maior renda ou políticas públicas mais abrangentes e incluía Estados Unidos, países da Europa e Brasil. Nesses países, houve desde o início uma contraindicação formal ao aleitamento enquanto uma política de risco zero.
Nos Estados Unidos, porém, em 2015 já se nota uma mudança de postura, quando o protocolo reconhece que as pessoas podem sofrer pressões sociais que as levem a aleitar, apesar do risco. Percebe-se a necessidade de se promover o diálogo franco de forma a orientar na redução do risco de transmissão nesses casos.
O Brasil mantém posição de contraindicação, sendo fundamental a oportunização de espaços para discussão de redução de riscos e promoção de assistência a alguns casos que possam fugir ao protocolo.
Na versão de 2018, já há um capítulo sobre aleitamento. O texto propunha monitoramento intensivo de carga viral de lactante e bebê. Ainda assim, a mensagem principal era de que o aleitamento era contraindicado – e foi essa a mensagem que foi retirada na versão de 2023.
O Brasil mantém posição de contraindicação sem espaço para discutir redução de riscos – o que pode significar negar assistência a alguns casos que possam fugir ao protocolo.
Vem à minha cabeça a lembrança de uma mãe vivendo com HIV que atendi num posto de saúde na Zona Leste de São Paulo. Depois que revelei minha sorologia e puxei assunto sobre aleitamento com uma postura compassiva, ela se sentiu à vontade para me dizer que havia aleitado o filho, àquela altura já maiorzinho: “minha sogra é enfermeira, como eu ia explicar que não ia dar de mamar?” Ela deve ter sentido muita confiança em mim para dizê-lo. Consigo entender seu medo de ser julgada e criminalizada, afinal, por muito tempo, vivi isso com minha própria sexualidade.
QUAL A POSIÇÃO DA ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE?
A OMS vem norteando as políticas justamente daqueles países que não podem garantir que haverá fórmula láctea segura a todos os bebês com exposição perinatal ao HIV. Nestes países, recomenda-se o aleitamento. Também se leva em conta que, em contextos desfavoráveis, o risco de desnutrição ou por infecções comuns pode ser maior do que o de adquirir HIV.
Desde 2010, a OMS preconiza o tratamento antirretroviral das lactantes vivendo com HIV como medida para reduzir o risco de transmissão.
Sendo assim, desde 2010, a OMS preconiza o tratamento antirretroviral das lactantes vivendo com HIV como medida para reduzir o risco de transmissão. A OMS também recomendava uma outra opção, menos utilizada: ofertar – a título de profilaxia pré-exposição (PrEP), como chamaríamos hoje –, o antirretroviral nevirapina para os bebês durante todo o aleitamento.
Em 2016, a OMS estabeleceu que o aleitamento deve ser exclusivo até os 6 meses, e que poderá ser mantido até os 24 meses ou mais, em havendo uma boa adesão ao tratamento.
QUE PESQUISAS TÊM BALIZADO AS RECOMENDAÇÕES DE ALEITAMENTO?
O estudo Kesho Bora, na África, publicado em 2011, verificou que lactantes que tomaram ARV até o fim do desmame transmitiram menos para os bebês (5,4%) do que aquelas que não foram medicadas (9,5%).
O estudo Mma Bana, de 2010, acompanhou, em Botsuana, mulheres que foram medicadas na gestação e por até 6 meses de aleitamento e verificou uma taxa de transmissão de 1,1%. Mas somente 77% a 84%, a depender do esquema antirretroviral utilizado, estavam indetectáveis.
O estudo BAN (2010), no Maláui, comparou o tratamento materno com a PrEP com nevirapina nos bebês. Não houve diferença estatisticamente significativa entre as taxas de transmissão, respectivamente de 1,7% e 2,9%. De todo modo, a transmissão foi menor do que no grupo controle (5,7%).
O estudo HPTN 046 (2014) comparou bebês em PrEP com nevirapina com bebês tomando placebo em quatro países da África. A nevirapina não acrescentou proteção se a mãe já estava se tratando.
O estudo Promise, de 2018, também comparou tratamento da mãe com a profilaxia dos bebês em 5 países da África e na Índia. Ambas as estratégias reduziram a transmissão, que foi de 0,3% para 6 meses de aleitamento e de 0,6% para 12 meses. São estes os melhores números que temos hoje – e é a eles que nos referimos quando dizemos que a chance de transmissão “é menor que 1%, mas não é zero”.
Houve dois casos de transmissão em mães que, no dia do diagnóstico do bebê, estavam indetectáveis. Isso pode representar reais casos de transmissão por indetectáveis.
Uma análise posterior do Promise, em 2021, procurou correlacionar a carga viral materna com a chance de transmissão. Foi comprovado que houve dois casos de transmissão em mães que, no dia do diagnóstico do bebê, estavam indetectáveis. Isso pode representar reais casos de transmissão por indetectáveis. Uma possível explicação é a presença, no leite, de linfócitos contendo HIV integrado em seu DNA, o que ocorre mesmo na ausência de vírus livre no sangue. Porém, segundo os autores, também não se pode afastar explicações alternativas.
De todo modo, esse dado posterior do Promise corroborou que a máxima “indetectável é igual a intransmissível” (I = I) não se poderia aplicar ao aleitamento. Se o risco não é zero, encerra-se a discussão? Não.
I = I não se poderia aplicar ao aleitamento. Se o risco não é zero, encerra-se a discussão? Não.
POR QUE O PROTOCOLO DOS EUA MUDOU?
A revolução sexual e reprodutiva trazida pelo I = I instigou em mulheres vivendo com HIV o interesse no aleitamento. Ao mesmo tempo, novas evidências e questionamentos ganharam força na comunidade científica.
Um trabalho seminal foi o da bioeticista e obstetra Marielle Gross e colegas, de 2020 (4). As autoras demonstraram que o risco de transmissão deveria ser comparado com os riscos de não aleitar. Bebês privados do aleitamento têm mais morte súbita, enterocolite necrotizante e sepse, entre tantos outros problemas. Para quem lacta, não aleitar também significa mais morbidade e mortalidade – por causas que incluem infarto, câncer de mama, diabetes e depressão puerperal.
Segundo as autoras, a interdição ao aleitamento agravaria iniquidades sanitárias, já que são justamente as mulheres desfavorecidas e racializadas as que mais têm tanto o HIV quanto as doenças preveníveis pelo aleitamento. O princípio ético da justiça social, assim como o da autonomia, poderia ser evocado neste caso.
No caso do aleitamento por indetectáveis, estamos em equipolência clínica – o que significa um estado de incerteza genuína entre os pesquisadores sobre qual de duas abordagens terapêuticas é a mais eficaz ou segura.
Concluem que, no caso do aleitamento por indetectáveis, estamos em equipolência clínica – o que significa um estado de incerteza genuína entre os pesquisadores sobre qual de duas abordagens terapêuticas é a mais eficaz ou segura. Em um caso assim, não há como se recomendar por uma ou outra estratégia, sendo, portanto, necessária a decisão compartilhada.
Dois anos antes, em 2018, Kahlert e colegas, da Suíça, haviam evocado a equipolência clínica para mães em “cenário ótimo”, ou seja, indetectáveis desde o começo da gestação, aderentes e em seguimento regular (5). As recomendações na Suíça foram atualizadas desde então para não mais contraindicar, nem indicar, mas promover uma decisão informada.
As recomendações na Suíça foram atualizadas para não mais contraindicar, nem indicar, mas promover uma decisão informada.
A organização profissional australiana ASHM lançou em 2021 um guia defendendo a decisão compartilhada (6). Os australianos acrescentaram que, além do “cenário ótimo”, a mãe ou pessoa lactante deveria ter acesso a uma “assistência ótima”, que incluísse profissionais bem-informados e recursos clínicos.
O movimento social de mulheres do estado australiano de Victoria lançou no mesmo ano sua cartilha para a comunidade, que foi extensivamente citada pela ASHM (7). Nos Estados Unidos, a organização de mulheres vivendo com HIV The Well Project também lançou em 2021 um amplo projeto de conscientização e advocacy em aleitamento, o BEEBAH.
Também se tem questionado se os resultados do estudo Promise poderiam ser generalizados a contextos de alta renda e alta qualidade dos serviços. Advoga-se por mais e melhores estudos em contextos de assistência ótima.
Ou seja, a mudança do protocolo dos Estados Unidos veio na esteira de um movimento global e foi resultado da união de esforços da comunidade científica e da sociedade civil.
A mudança do protocolo dos Estados Unidos veio na esteira de um movimento global e foi resultado da união de esforços da comunidade científica e da sociedade civil.
Sobre o aumento do interesse das pessoas lactantes em aleitar, Judy Levison mostrou dados em sua aula. Em uma pesquisa estadunidense, quase metade dos profissionais de saúde entrevistados já tinham cuidado de alguém que tivesse aleitado. Séries de casos sobre mulheres aleitando em diferentes países de renda alta começaram a ser publicados.
A NECESSIDADE DE UM GUIA BRASILEIRO
Na Conferência Internacional de AIDS de 2022, em Montreal, assisti a uma mesa sobre aleitamento organizada pelo movimento social (8). Lá estavam mulheres vivendo com HIV de diferentes países, relatando a dor de não ter aleitado ou a alegria de tê-lo feito. As australianas de Victoria estavam lá, apresentando sua cartilha e o documento da ASHM. Também estava na mesa Marielle Gross, a bioeticista e obstetra que citei.
Na hora das perguntas, desabafei o dilema que eu vinha sofrendo em minha prática profissional. Como pediatra geral, eventualmente atendo uma mãe vivendo com HIV e seu bebê em contexto ótimo e, apesar de estar acompanhando o debate e empatizar com a questão das violações de nossos direitos, me sentia de mãos atadas pela ausência de uma regulamentação da questão. No mesmo dia, participei de uma roda de conversa muito rica promovida pela Comunidade Internacional de Mulheres Vivendo com HIV, ICW na sigla em inglês.
Hoje, dois anos depois, a situação normativa é diferente – a regulamentação estadunidense já pode ser uma referência. Mas, para mudar valores e práticas, é importante que o Ministério da Saúde e estados promovam o debate, atualizem suas recomendações e operem uma readequação dos serviços.
Para mudar valores e práticas, é importante que o Ministério da Saúde e estados promovam o debate, atualizem suas recomendações e operem uma readequação dos serviços.
A Sociedade Brasileira de Pediatria lançou um aceno à discussão em um documento publicado em fevereiro de 2024 sobre prevenção do HIV (9). Nas considerações finais, menciona os movimentos em prol da decisão compartilhada, trazendo a ressalva de que isso só é possível se houver monitoramento estrito da adesão, monitoramento mensal de carga viral e acesso imediato a serviços de saúde em caso de lesão em mamas.
DESAFIOS
Acabamos de comemorar a eliminação da transmissão vertical do HIV no estado de São Paulo e sabemos que essa não é a situação em boa parte do Brasil. Também sabemos que não é em contextos ótimos que essa transmissão vem ocorrendo, mas em situações ligadas à desigualdade na oferta de saúde e outras políticas. Ainda hoje faltam recursos básicos a mulheres e bebês em vários lugares do País.
Organizar uma assistência ótima que possibilite a decisão compartilhada significa complexificar o que já oferecemos: mais tempo para diálogo e educação, fortalecimento das rotinas já existentes, novas rotinas, garantia de atendimento oportuno. Há questões em aberto, como o papel da profilaxia prolongada no bebê.
Arrisca-se que o acesso ao aleitamento se torne um privilégio para quem tem estabilidade econômica e acesso às melhores rotinas de saúde. Por outro lado, é possível também que o sentimento de ter seu direito à autonomia respeitado e a possibilidade de realização do sonho do aleitamento sejam estímulos promotores de vinculação e adesão de pessoas gestantes.
Não será fácil mudar rotinas cristalizadas, em especial no Brasil, onde mesmo a discussão de redução de risco tem sido tratada como tabu. Em algumas situações, poderemos ter que lidar com uma recrudescência de atitudes sorofóbicas, misóginas e criminalizantes contra mulheres e outras pessoas gestantes vivendo com HIV.
Trata-se ainda de que lactantes e bebês também tenham direito à revolução relacional e afetiva que a prevenção farmacológica nos propiciou.
Na perspectiva da evolução dos direitos das pessoas vivendo com HIV/AIDS, o aleitamento se coloca como questão-chave. É mais um tópico em nossa demanda de que pesquisas e protocolos sejam centrados nas nossas necessidades, e que tenhamos acesso aos melhores recursos terapêuticos. Trata- -se ainda de que lactantes e bebês também tenham direito à revolução relacional e afetiva que a prevenção farmacológica nos propiciou, e que, infelizmente, a ciência demorou tanto em demonstrar.
(*) Carué Contreiras é Pediatra e Sanitarista vivendo com HIV/AIDS. Trabalha no CRT DST/AIDS de São Paulo, atendendo adolescentes e jovens nos ambulatórios de HIV e de pessoas trans, e como pediatra geral no setor privado. É membro da Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV e AIDS. As opiniões do autor não refletem necessariamente as posições da instituição para a qual trabalha.
REFERÊNCIAS:
• 1. Lili Nascimento e Hiura Fernandes. Aquela criança com AID$ (That Child with AID$), 2023.
Disponível em: https://video.visualaids.org/Lili-Nascimento-and-Hiura-Fernandes-Aquela-crianca-com-AIDS
• 2. U.S. Department of Health and Human Services, Panel on Treatment of Pregnant Women with
HIV Infection and Prevention of Perinatal Transmission. (2022). Infant Feeding for Individuals with HIV in the United States (Revisão de 2023). Em: Recommendations for the Use of
Antiretroviral Drugs During Pregnancy and Interventions to Reduce Perinatal HIV Transmission
in the United States.
• 3. Levison, J. Breast/Chestfeeding among individuals living with HIV: Where have We Been and
Where Are We Going? International Antiviral Society – USA: 2022. DIsponível em: https://www.youtube.com/watch?v=lRC8rdp_zPg
• 4. Gross MM et al. Breastfeeding with HIV: An Evidence-Based Case for New Policy. J Law Med
Ethics. 2019 Mar;47(1):152-160.
• 5. Kahlert, Christian et al (2018). Is breastfeeding an equipoise option in effectively treated
HIV-infected mothers in a high-income setting? Swiss Medical Weekly, 148:w14648
• 6. The Australasian Society of HIV, Viral Hepatitis and Sexual Health Medicine (2021). The
Optimal Scenario & Context of Care ASHM Guidance for Healthcare Providers regarding Infant
Feeding Options for People Living with HIV with highlights from Breastfeeding and Women
Living with HIV in Australia Allan. B and Machon. K (Editors) August 2021
• 7. Positive Women Australia. Breastfeeding for women living with HIV in Australia. 2021.
• 8. AIDS 2022. Breast is best? Making infant feeding options available for all women living with HIV. https://programme.aids2022.org/Programme/Session/8
• 9. Sociedade Brasileira de Pediatria. Estratégias de Prevenção da Infecção pelo HIV em crianças e adolescentes. SBP: 2024. (Disponível somente para associados.)