Durante a Conferência de Retrovírus e Infecções Oportunistas (CROI), ocorrida em março de 2019 em Seattle, nos EUA, os pesquisadores contaram o que muitos pensavam que nunca chegaria. Pela segunda vez desde o surgimento da epidemia, um paciente parece ter sido curado do HIV, o vírus que causa a AIDS.
“Uma espécie de esperança paira no ar”, disse o Dr. Steve Deeks, especialista em AIDS da Universidade da Califórnia, em San Francisco. “Toda a abordagem para a cura está mudando mais de aspiração para algo que as pessoas estão percebendo que poderia ser viável.”
“Toda a abordagem para a cura está mudando mais de aspiração para algo que as pessoas estão percebendo que poderia ser viável.”
É uma esperança que deve ser temperada com realismo: o HIV é um adversário astuto, e os cientistas e pacientes que vivem com o vírus estão bem familiarizados com os fracassos do passado na luta contra a epidemia. Veja o que a notícia significa a seguir.
ISSO MUDARÁ ALGUMA COISA PARA AS PESSOAS QUE VIVEM COM HIV?
Ainda não. O segundo caso fornece “prova de conceito”, iluminando um caminho potencial para uma cura do HIV. Os cientistas pretendem persegui-lo com vigor.
Mas este aparente sucesso não significa que uma cura fácil esteja próxima e, menos ainda, que os pacientes infectados parem de tomar seus remédios.
“Às vezes, o desespero por uma cura é impulsionado pelo estigma que ainda existe”, disse Richard Jefferys, diretor do Treatment Action Group (Grupo de Ação em Tratamento), uma organização de defesa de direitos das pessoas vivendo com HIV/AIDS (PVHA). “Mas, ainda que duas ou três pessoas sejam gotas num oceano em comparação aos 35 milhões de pessoas com HIV no mundo, isso é muito melhor do que zero.”
Ambos os homens que se acredita terem sido curados até agora tinham HIV e câncer. Ambos receberam transplantes de medula óssea para tratar o câncer, não para tratar o HIV.
Ambos os homens que se acredita terem sido curados até agora tinham HIV e câncer. Ambos receberam transplantes de medula óssea para tratar o câncer, não para tratar o HIV. Em cada caso, os doadores de medula óssea portavam uma mutação genética chave, chamada delta 32, que dificulta a entrada do HIV em certas células do sangue.
Transplantes de medula óssea são procedimentos arriscados. Por isso não é provável que seja uma opção de tratamento para a maioria das pessoas com HIV. E vale a pena notar que até agora, a maioria das outras tentativas de repetir a primeira cura também havia falhado. (Sobre transplantes de medula em PVHA com câncer, veja o Boletim Vacinas 30, pg. 43 em diante.)
Qualquer que seja o caminho para a cura, não será simples.
REMISSÃO? CURA? QUAL É A DIFERENÇA?
Cura significa que o vírus parece ter desaparecido para sempre. Remissão é um termo mais conservador: o vírus está sob controle no corpo, mas talvez não para sempre.
Antes do caso descrito na CROI 2019, houve apenas um exemplo amplamente aceito de uma cura: Timothy Ray Brown, 52 anos, que permaneceu livre do HIV por 12 anos após dois transplantes de medula óssea.
Depois do caso, houve muitas tentativas fracassadas de replicar esse sucesso. A cada vez, o vírus voltava depois que o/a paciente parava de tomar os antirretrovirais.
O caso recentemente relatado, em um homem descrito apenas como o “Paciente de Londres”, está com o HIV indetectável por 18 meses desde que parou de tomar os antirretrovirais. Testes extraordinariamente sensíveis não conseguem encontrar o vírus em seu corpo. Para alguns cientistas, isso é uma cura. Outros são mais céticos.
“Não temos nenhum acordo internacional sobre quanto tempo sem rebote viral é necessário para que o paciente seja considerado curado.”
“Não temos nenhum acordo internacional sobre quanto tempo sem rebote viral é necessário para que o paciente seja considerado curado”, disse Annemarie Wensing, virologista do Centro Médico da Universidade de Utrecht, na Holanda.
Vale a pena notar que houve pacientes que entraram em remissão sem um transplante de medula óssea. Nestes casos, o sistema imunológico parece capaz de manter um controle rígido sobre o vírus, mesmo sem drogas. Por anos, os pesquisadores vêm tentando descobrir como isso acontece.
QUAL É O PRÓXIMO PASSO?
Um transplante de um doador de células-tronco CCR5 delta 32 essencialmente vai trocando as células imunitárias que são vulneráveis ao HIV, substituindo-as por células resistentes ao vírus. Muitos grupos de cientistas já tentam imitar os benefícios de um transplante de medula óssea sem os riscos do procedimento real.
A mutação delta 32 ocorre em um gene que direciona a produção de uma proteína chamada CCR5, que fica na superfície de certas células do sistema imunológico. Um tipo comum de HIV precisa dessa proteína, entre outras, para entrar nas células e conseguir se replicar.
Correceptor: para entrar na célula T CD4+, o HIV precisa se ligar a ela através da molécula CD4 e também a um correceptor na superfície da célula. O correceptor mais comum nas pessoas é o CCR5; mas há também o CXCR4. É como se o HIV tivesse uma tomada que precisa entrar em 2 buraquinhos: um para o CD4 e outro para o correceptor. O antirretroviral Maraviroc é um bloqueador do correceptor CCR5. (N.doT.)
O gene que direciona a produção de CCR5 pode ser modificado com novas técnicas de terapia genética, semelhantes aos tratamentos desenvolvidos para hemofilia e doença falciforme. E os cientistas tentaram editar o CCR5 das células imunológicas de uma pessoa no laboratório e infundir as células modificadas de volta ao corpo.
Mas até agora o número de células derivadas com este método não parece ser suficiente para tornar qualquer um resistente ao HIV.
Em um ensaio financiado pela Sangamo Therapeutics, no entanto, os pesquisadores relataram um achado curioso. Embora a infusão não curasse a infecção pelo HIV, a quantidade de vírus no corpo pareceu diminuir em mil vezes. A empresa está planejando um estudo de acompanhamento para explorar isso ainda mais.
Outra abordagem seria entregar enzimas que editam os genes diretamente no corpo. O verdadeiro desafio está em atacar as enzimas: muitas equipes estão procurando por nanopartículas, por exemplo, mas essa estratégia está a anos de ter sucesso, disse Deeks.
Uma opção ainda mais intrigante é projetar uma célula-tronco predecessora que produziria um fluxo constante de células imunitárias resistentes ao HIV no corpo. Pelo menos um grupo na China está tentando editar o CCR5 de células-tronco que podem ser infundidas em pacientes com câncer e HIV.
Um grupo na China está tentando editar o CCR5 de células-tronco que podem ser infundidas em pacientes com câncer e HIV.
Os primeiros estudos na Universidade da Pensilvânia sugerem que algo como isso pode funcionar, observou o Dr. Mike McCune, um consultor de saúde global da Fundação Bill e Melinda Gates.
Além disso, alguns cientistas estão tentando forçar o vírus à remissão com anticorpos amplamente neutralizantes, moléculas imunológicas que podem desativar vários tipos de HIV.
EM QUANTO TEMPO UM NOVO TRATAMENTO PODERIA ESTAR DISPONÍVEL?
Entre cinco e 10 anos, no mínimo. E isto cobre apenas os tipos de HIV que dependem do CCR5 para infectar as células. Outras variedades de HIV dependem de uma proteína diferente para entrar nas células, o correceptor CXCR4. Nenhum desses tratamentos teóricos protegeria contra a infecção com essas variedades do HIV.
“Ninguém deveria pensar em obter uma cura ou uma remissão no curto prazo”, disse McCune.
Mas a terapia genética e a edição de genes estão se movendo rapidamente. “Precisamos avançar em várias frentes ao mesmo tempo”, concluiu.