Capítulo
III
Grupo
Experimentando a existência
do eu no (des)encontro com a outra
Segurando os fios da vida
Face a estes resultados, retomamos os objetivos iniciais
para verificar se atingimos o que pretendíamos, quando propusemos
o programa de oficinas:
1) Fortalecimento e intercâmbio de mulheres
com e sem HIV/aids;
2) Resgatar a dimensão de sujeito, contribuir para o aumento da auto-estima,
refletir e questionar valores sobre relações de gênero e sexualidade;
3) Transmitir informações.
Sim, atingimos os objetivos, elas saem mais fortalecidas,
com mais informações, repensando valores, isto é visível...
Mas, paira uma insatisfação no ar! Se podemos afirmar
que algumas saem assim, não podemos afirmar o mesmo em relação a todas...
O que dizer da mulher negra que entra na oficina afirmando
precisar comprar uma peruca loura e uma lente de contato azul para
ficar bonita e, depois de três horas de discussão, repete a mesma
frase? O que dizer da mulher que no segundo encontro aparece muito
mal, fica mais ou menos bem por mais uns dois encontros e depois não
aparece mais nas oficinas, sendo que, ao final, sabemos estar em profunda
depressão? Onde estará a mulher que, depois de uma oficina nos presenteia
com duzentos sapinhos (símbolo do GIV) desenhados um por um à mão?
Talvez ela tenha tentado se segurar no que o GIV representava, mas
sumiu da sua ONG.
E a mulher que continua infeliz apanhando do marido?
E aquelas que, ao final, continuam achando que a mulher é inferior
ao homem?
As transformações e permanências têm relação somente
com nossa intervenção? Estas pessoas não são “nossas”! São da vida!
Têm preconceito, família, pobreza, mídia, depressão, filho, doença,
atendimento médico... Enfim, uma vida que extrapola a nossa intervenção...
Mas sentimo-nos tão responsáveis por elas!
Profissionais desta área cotidianamente deveriam lembrar
que não são a única intervenção na vida das pessoas e, além de tudo,
não são intervenção divina...
Este trabalho, assim como a própria vida, tem limites...
A maioria de nós freqüentemente prefere esquecer, não relatar...
Na correria do dia-a-dia, agenda cheia, dinâmica agitada
de ONG, enfim, tanto trabalho, tantas coisas, tantas reflexões, tentativas
de sistematizar... Nem sempre paramos para sentir, como ficamos tristes
quando alguém morre... concreta ou simbolicamente... Existe um pedaço
de nós dizendo: Puxa, não conseguimos... O trabalho não é bom. Mas
quando uma mulher vem e conta que dormiu no hospital e às onze da
manhã do dia seguinte ainda não tinha sido atendida e então pensou:
puxa, eu vou nas oficinas, e agora estou aqui, devia brigar pelos
meus direitos!. Então briga e é atendida, temos alento.
Muitas vezes nossas ações geram frutos além de nossas
expectativas! Foi assim no Mutirão. Todas as mulheres solicitaram
que voltássemos a fazer o trabalho. Depois nos pediram assessoria
para enviar um projeto para o Ministério da Saúde e por fim conseguiram
uma parceria com o Programa Estadual de DST e Aids22
para implantar um projeto de prevenção junto a mulheres, adolescentes
e homens! Criaram asas e saíram voando!
Reconhecer a influência de nossa intervenção foi um
retorno muito importante do nosso trabalho. Mas também percebemos
que “entramos em uma comunidade” que já tinha uma certa estrutura,
de algum modo já havia trilhado um caminho que contribuía para que
pudessem ouvir o que estávamos dizendo. Temos o distanciamento necessário,
sabemos estar tudo tão além de nós, mas investimos verdadeiramente
naquilo que está em nossas mãos...
Concluindo, as oficinas são fundamentais como estratégia
de apoio, prevenção e emponderamento. Valem a pena, são um espaço-continente,
revigorante, um espaço de identificação, de renovação que é apropriado
por cada mulher, dependendo do seu momento de vida.
Uma das mulheres do GIV participou de todos os encontros.
No primeiro dia ela recortou de uma revista a foto de um bebê engatinhando,
afirmando ter ficado de cama, depois na cadeira de rodas, e que agora
andava com uma bengala, estava reaprendendo a andar. No último encontro
ela disse: Nossa! Ficamos nove meses aqui! Lembra quando eu cheguei?!
(E como poderíamos esquecer?). Na avaliação final ela disse: quando
eu cheguei aqui, todo mundo mandava na minha vida, dizia o que eu
tinha que fazer...Hoje não! Eu digo, enquanto eu estiver viva, eu
cuido de mim e da minha filha! Eu não morri!.
Eu sou sujeito, conta-nos ela, orgulhosa!.....
Encerramos os dois grupos com o Álbúm de Clara23.
Devolvemos para elas o que nos deram inicialmente... Uma vida com
dor e alegria, a história de quem pega a vida com as mãos e apesar
de tudo, cria, refaz, vive. Assim é a Clara, assim são as mulheres
do GIV e do Mutirão, que passaram nove meses conosco. De uma forma
ou de outra, entre tropeços, estão tentando... Talvez seja por isso
a afirmação de uma delas: é tão difícil acreditar que a Clara é uma
personagem... Ela é tão real.
Nosso trabalho é este, contribuir para que as “Claras”,
com ou sem aids, escolham os fios, persistam em tecer as tramas da
própria vida... É uma responsabilidade... É um privilégio... Com elas
também tecemos nossos próprios fios... Aprendemos a olhar para a vida
com encantamento...
Olhar a vida como ela é. E ela é bonita...
22
- As lideranças do Mutirão contataram a Secretaria Estadual de Saúde
e o GIV foi convidado para assessorar o projeto por meio de uma parceria
técnica com o CRT em DST e aids. 23 - O Álbum de Clara é um material que produzimos para trabalhar
em oficinas. Ele contém uma série de fotos e no final uma carta da
“Clara” contando sua história de vida. Mostra uma mulher comemorando
dez anos de vida com aids e repassando as dificuldades e alegrias
de sua trajetória, incluindo sua participação em grupos de ajuda mútua
e a reestruturação de sua vida.