Capítulo
III
Grupo
Experimentando a existência
do eu no (des)encontro com a outra
Apoio, prevenção e empoderamento:
as oficinas cumprem seu papel?
Nesta seção, discutiremos a análise do processo das
oficinas e de sua relevância como estratégia de emponderamento feminino,
prevenção às DST e aids e apoio às mulheres infectadas11.
Uma primeira grande observação do processo é que as
mulheres dos dois grupos não tinham o hábito de falar de si, nem de
reservar um tempo para pensar na sua vida, nos seus valores, na sua
sexualidade. Também não tinham a experiência de participar deste tipo
de grupo. Somente uma mulher, liderança do Mutirão, relatou já ter
participado deste tipo de oficina. Uma mulher do GIV disse já ter
participado de grupos de oração, e outra do Mutirão freqüentou grupos
de culinária e costura.
Assim, as oficinas eram uma novidade para as mulheres,
e aquelas que se arriscaram a participar, saíram levando, no mínimo,
uma nova experiência. Utilizamos a palavra arriscar, mas podemos dizer
também ousar, se permitir a entrada nas oficinas. Sim, porque nos
dois grupos existiram mulheres que souberam da realização das reuniões,
tiveram vontade e curiosidade de participar, mas não deram o passo
inicial para entrar no processo, pelo menos para conhecer a proposta.
Temos algumas hipóteses sobre esta não inserção das
mulheres no grupo. No caso do GIV, acreditamos que, para algumas mulheres,
é muito difícil ter contato com a própria realidade e entrar nas oficinas
significava ver no espelho que a outra representava, sua condição
de portadora do HIV/aids. Também achamos que nos dois grupos existia
vergonha de falar, principalmente sobre sexo.
O depoimento de uma mulher do Mutirão nos dá pistas a este respeito:
(....) é uma pena que muitas mulheres daqui não
participou, acho que ainda tem aquele preconceito (...) acha que é
feio falar de sexo, que é uma coisa tão bonita que todo mundo faz
e gosta, e tem vergonha, às vezes, de falar para as próprias colegas
(...).
Fomos procuradas por uma mulher que disse que era homossexual
e por isso não queria se expor num grupo onde todas eram heterossexuais.
Propusemo-nos a apoiar sua entrada, afinal, tínhamos como princípio
o respeito às diferenças individuais e à diversidade, mas ela não
quis entrar no grupo. Apesar de não ter participado de nenhuma oficina,
percebemos que éramos uma referência, também para ela.
Fizemos uma análise procurando entender quais os fatores
que fazem as mulheres desistir ou ter uma participação intermitente
no grupo e também compreender a rotatividade. Procuramos investigar
o porquê das desistências (telefonando, conversando diretamente com
as mulheres, perguntando para o grupo e através de nossas observações).
No decorrer do processo chegamos a levantar a hipótese
de que o problema poderia ser a programação das oficinas, ou com as
estratégias que estávamos utilizando, mas descartamos esta possibilidade
porque as mulheres, de um modo geral, avaliavam muito positivamente
os encontros, informavam gostar e aprender muito em cada contato.
No que se refere à desistência, tentamos perceber inclusive
se existia alguma relação com as entrevistas ou com o fato de junto
com o trabalho estarmos fazendo uma pesquisa. Seguramente descartamos
esta hipótese, por três razões: as mulheres que concederam entrevistas
continuavam no grupo; mulheres que aparentavam uma certa dúvida em
querer participar das oficinas, após a entrevista se “animavam” muito
para vir12. O contato mais individual aumenta
o vínculo entrevistadora/entrevistada; a maioria dizia estar satisfeita
por contar a sua história e de certo modo utilizava este momento para
elaborar suas vivências.
Principais motivos para desistência ou falta:
• doença (GIV);
• dificuldade de acesso (GIV);
• falta de agendamento (a maioria das
mulheres têm outra relação com o tempo e compro-missos. Quase nenhuma
usa agenda por exemplo, o que é claramente uma referência nossa, da
classe média);
• distância entre uma oficina e outra;
• dificuldade de lidar com a temática;
• problemas de ordem diversa (filhos,
família etc.);
• resistência do parceiro (Mutirão);
• dificuldade de participar de grupos/relacionamento
coletivo;
• data da oficina coincidindo com plantões
de trabalho, vacinação das crianças.
Motivos que levam à permanência, mesmo que rotativa:
• porque aprendem “coisas”
novas e têm muito interesse na temática;
• avaliam como é importante a convivência
entre pares, identificando-se com a problemática e vivência das outras
mulheres;
• descobrem a relevância de participar
das discussões em grupo;
• sentirem-se acolhidas;
• têm um espaço para obter informações;
• “renovar” forças, aumentar a auto-estima
e se valorizar como mulher.
No início do trabalho começamos a achar que a rotatividade
do grupo era sinônimo da falta de vínculo13
conosco, que coordenávamos o trabalho, e desinteresse pela proposta
ou pelos temas.
No entanto, no decorrer do processo fomos reavaliando
esta visão. Quando fazemos uma proposta de intervenção criamos expectativas
e tendemos a esperar que as coisas saiam exatamente como planejamos.
No nosso caso, “sabíamos” que dificilmente uma intervenção e uma pesquisa
saem exatamente do modo como a desenhamos no papel. Mas no fundo,
nosso desejo era esse, que tivéssemos dez mulheres de cada grupo,
que no decorrer de nove meses acompanhassem “direitinho” nosso programa
de oficinas.
Somente quando abrimos mão da nossa pretensão, encontramos
as mulheres. Não as mulheres idealizadas, mas aquelas reais. E este
encontro foi muito enriquecedor, para nós e para elas.
A realização da pesquisa e o desejo por resultados
(que sempre está presente, mesmo quando não fazemos pesquisas), muitas
vezes não nos deixa ver o outro, no caso, a outra.
Um dos aspectos onde esta reflexão se fez mais presente,
foi na concepção de vínculo. No início, imaginávamos que as mulheres
estariam vinculadas ao trabalho, se comparecessem pelo menos em 70%
das oficinas.
Quando confrontamo-nos com a rotatividade dizíamos:
“elas não estão se vinculando”. Quando invertemos nossa análise e
perguntamos: o que é se vincular para elas, ou como elas se vinculam,
descobrimos que elas estavam se vinculando. Do modo delas. Por exemplo,
uma mulher apareceu na primeira e depois na última oficina, e se sentia
participante do trabalho. Como ela não apareceu no decorrer do processo
inteiro, achávamos que ela não estava vinculada ao processo, mas ela
se sentia estando! Para nós, a temática da vinculação das mulheres
com o trabalho, para nós, foi fundamental porque pensávamos que, quanto
mais a mulher comparecesse, mais poderia se fortalecer e ampliar seu
nível de reflexão e valores. Esta visão tem um conteúdo de verdade,
porém desconsiderava, por exemplo, que as mulheres são diferentes
entre si, e também colocava um “poder” transformador muito grande
nas oficinas.
Para algumas mulheres, comparecer a um, dois encontros,
era suficiente ante às suas necessidades e possibilidades. A expectativa
de que participassem dos nove encontros era nossa. Assim, recebemos
mulheres que participaram de dois encontros e continuaram levando
sua vida, desapropriadas de si mesmas. Também tivemos mulheres que
participaram pouco das oficinas, empolgaram-se, multiplicaram informações
e repensaram suas vidas.
Mesmo quando não iam à oficina, as mulheres consideravam
importante saber que estávamos lá. Éramos referência importante, elas
nos procuravam quando tinham problemas. Por exemplo, ao término do
processo, duas mulheres, uma de cada grupo, não havendo participado
de nenhuma oficina, vieram nos pedir orientações sobre aborto.
Com relação ao programa, consideramos que foi muito
importante a forma como o estruturamos. Apesar do encadeamento entre
as oficinas, cada uma delas possuía um começo, um meio e um fim. Assim,
quanto mais a mulher participasse, maiores eram as chances de aumentar
o nível de informação e refletir sobre suas representações. Se a mulher
participasse apenas de um dia de uma oficina, podia ter um aprendizado
e uma troca em relação à temática abordada14.
Avaliamos que a periodicidade deveria ter sido menor
(quinzenal, por exemplo)15, mas
a constância16 das oficinas foi
fundamental, porque apesar da rotatividade, criamos referências e
pequenos núcleos se formaram nos dois grupos17.
Cumprimos rigorosamente o cronograma que previa a realização
de uma oficina mensal e isto aumentou a possibilidade de confiança
entre a coordenação e o grupo. Uma mulher do Mutirão, referindo-se
à coordenação, disse: tava mó chuva, sol ela vinha de qualquer jeito.
Mas que eu me lembro só teve um dia que ela não pode vir. Ela mandou
a moça18 que faz com ela vir...
Outro indicador do forte vínculo estabelecido com o
trabalho é que desde o meio do processo já perguntavam se continuaríamos
a realizar as oficinas e que não gostariam que as interrompêssemos.
Além disto, como descrevemos anteriormente, o fechamento do programa
de oficinas foi um momento muito afetivo e significativo para nós
e para as mulheres.
E cabe destacar: afinal descobrimos que o vínculo se
formou, não somente na relação coordenação/participantes, mas também
na relação participante/participante19.
Uma mulher do Mutirão, falando sobre o seu desejo de
continuidade das oficinas, afirmou: porque aí a gente não perdia este
elo entre a gente que participou.
A atenção que receberam acabou sendo uma experiência
diferenciada dentro do contexto de exclusão e desamparo social, em
que vive a maioria das mulheres.
Além disto, apesar de todas as razões “oficiais” para
a rotatividade e também para a presença, achamos que o fator mais
desafiante para as mulheres foi o que denominamos de “desconhecido”.
O que propusemos foi muito, mas muito novo mesmo, para as mulheres
com as quais trabalhamos. Deixar panelas, casa, filhos, marido, família,
para ir “brincar”, “relaxar” e “conversar”... e ainda por cima, falar
de sexo, de aids, pensar no que é feminino! Criar, no cotidiano da
vida, um espaço para ir na oficina era simbolicamente criar um espaço
interno para si e mexer com estruturas cristalizadas, como por exemplo
a permanência no espaço da casa. Olhar a outra no grupo significava
espelhar-se, questionar-se. Talvez por isto as interjeições de espanto,
de descoberta, de dúvida, curiosidade permearam todas as oficinas.
Percebemos o medo e prazer do toque, a falta e o encontro
de chão, a escuta e a não escuta para o que a outra dizia, portas
abertas e portas fechadas para as discussões das oficinas...
Descobriram o corpo por dentro! A maioria não havia
tocado a própria vagina! Por isso a pelve acrílica foi um sucesso,
desmanchando inclusive fantasias de que a camisinha iria perder-se
por dentro do corpo...
Descobriram a camisinha feminina, o corpo, o prazer...
Numa dinâmica que envolvia tocar o próprio corpo, uma mulher falou:
nossa como é bom tocar o meu seio, deve ser por isso que meu marido
gosta!
Outra disse que estava casada há seis anos e não tinha
orgasmo, mas que desejava ter e que começava a perceber que poderia
reivindicar este prazer.
Algumas participantes vieram pedir material e auxílio
porque queriam fazer palestras. Outra nunca tinha associado sexualidade
à brincadeira.... Será que pode se masturbar? O pastor diz que não...
É gostoso!. Descobriram o pé na massagem com óleo! Que experiência!
Quem não tinha “um amor” fez massagem no filho, em si mesma! Eu me
dei carinho!.
Sexo anal, sexo oral, DST, doenças oportunistas, amor,
namoro, gravidez, aborto, filho, negociação de camisinha, homens,
solidão, dores, doenças, falta de dinheiro, relações extra-conjugais,
homossexualidade, vários parceiros, medo, feminino.
Elas puderam falar de igual para igual, com a médica
(convidada para uma oficina), com a psicóloga e entre si. Sentiram-se
respeitadas...
O bom é que aqui podemos falar de tudo.
Abaixo destacamos depoimentos que mostram alguns resultados
deste (des)encontro das mulheres nas oficinas.
11
- Inicialmente tínhamos a intenção de realizar entrevistas antes do
início e após o termino do conjunto de oficinas, mas em função de
vários problemas, entre eles a rotatividade, optamos por utilizar
como subsídio para a análise nossas observações e os depoimentos que
colhemos nas entrevistas e no decorrer dos grupos. 12 - Uma mulher do Mutirão que estava oscilante em relação
à sua participação, após conceder a entrevista, não faltou em nenhum
encontro e foi uma grande incentivadora e articuladora, constantemente
chamando as mulheres e participando ativamente das oficinas. 13 - Pichon-Rivière define vínculo como “uma estrutura complexa
que inclui um sujeito, um objeto, e sua mútua inter-relação com processo
de comunicação e aprendizagem” (PICHON-RIVIÈRE, l988). 14 - Esperávamos a presença na maioria dos encontros, mas estruturamos
o programa, contando com a possibilidade da rotatividade. 15 - A peridiocidade com certeza foi uma questão que pode ter
influenciado a rotatividade, mas continuamos sustentando que não a
justifica, pois temos conhecimento de outros grupos, que mesmo se
reunindo semanalmente ou quinzenalmente têm problemas com a rotatividade.
16 - A constância é um dos elementos fundamentais para a constituição
do grupo (Riviere, 1988). 17 - Tivemos 3 ou 4 mulheres que “rodavam” mais fixamente,
se podemos dizer assim.Apesar de intermitentes, vinha com mais freqüência.
18 - Referia-se a Elaine, psicóloga que trabalhou conosco em
muitas oficinas. 19 - No Mutirão, entre a maioria das mulheres esta relação
já existia, mas no GIV não foi criada no processo.