Capítulo
III
Grupo
Experimentando a existência
do eu no (des)encontro com a outra
OFICINAS NO MUTIRÃO
Nosso percurso
Realizamos o programa de oficinas na Associação dos
Mutirantes da Vila Mara, ou simplesmente Mutirão. O Mutirão fica na
periferia da cidade de São Paulo, num bairro pobre denominado Vila
Mara. É formado por famílias que não dispunham de moradia (a maioria
morava em favelas) e que há mais dez anos estão organizadas em uma
associação comunitária construindo prédios de apartamentos.
Há um predomínio de mulheres chefiando famílias, e
é impressionante a persistência e resistência ante às dificuldades,
pois, inicialmente, o material para a construção era subsidiado pela
prefeitura e nos últimos oito anos, face às mudanças de prefeito,
o material já não é mais subsidiado e o grupo enfrentou grandes empecilhos
para a construção dos apartamentos. Hoje a comunidade dispõe, ainda
que em condições precárias, de uma creche que funciona enquanto as
mulheres estão trabalhando na obra, uma biblioteca e uma cantina.
As oficinas realizadas nesta comunidade tinham algumas
peculiaridades, pois, quando chegávamos as mulheres estavam trabalhando
na obra e a coordenação do Mutirão liberou-as uma vez por mês para
participarem (seguindo a dinâmica de que quando chegávamos, a coordenação
avisa no microfone, as mulheres se comunicam entre si e depois vão
para a sede da associação de moradores, onde realizamos as oficinas).
Fizemos uma primeira reunião onde apareceram quarenta
mulheres e resolvemos cadastrar todas elas porque sabíamos da desistência
de um grande número. A primeira oficina foi tranqüila e bem sucedida.
Como foi previsto, o número de mulheres que compareceu foi muito mais
baixo do que aquele presente na primeira reunião. Já na segunda oficina,
confrontamo-nos com a especificidade do trabalho. Neste dia levamos
seis estudantes de psicologia para fazermos as entrevistas não realizadas
anteriormente.
Quando chegamos lá, nenhuma das mulheres queria conceder
a entrevista, muito menos participar das oficinas. Foi uma experiência
e tanto. Várias mulheres falando alto ao mesmo tempo, diziam que tinham
o tanque cheio de roupa pra lavar e muita coisa pra fazer, e que não
iriam para a oficina!
Diante da surpresa, convocamos uma mini-assembléia
para discutir o problema e descobrimos que na manhã seguinte (um domingo),
era o dia da mudança, ou seja, depois de dez anos construindo suas
casas, algumas famílias finalmente iriam se mudar. As mulheres só
estavam interessadas nos azulejos que faltavam serem colocados, nos
fios da luz, na limpeza...
Avaliamos que não teríamos nenhuma condição de fazer
a oficina naquele dia e colocamos em debate se as mulheres teriam
ou não interesse de continuar o trabalho conosco.
Procuramos ser bem abertas e mostrar a elas que, se
não quisessem participar das oficinas, tinham o direito de não participar,
poderíamos deixar os encontros para uma outra oportunidade. Mas também
mostramos a elas que precisávamos saber disto com antecedência, pois,
assim não nos organizaríamos para ir até a comunidade9.
Depois de muita conversa fizemos uma votação e a maioria absoluta
decidiu que queria continuar com as oficinas.
Conseguimos ainda negociar que elas não participariam
da oficina naquele dia, mas concederiam as entrevistas. Este acontecimento
foi muito importante, pois ressaltou a relevância e inter-relação
do contexto de vida da comunidade com as oficinas. As mulheres estavam
absolutamente excitadas, agitadas e ansiosas com a mudança, naquele
momento não tinham o menor interesse em conversar sobre DST. Não tínhamos
o direito de invadir um momento esperado por longos dez anos. Marcamos
então a oficina para o mês seguinte e concluímos que fizemos muito
bem, pois realmente o problema era a agitação da mudança e depois
deste episódio as oficinas ocorreram normalmente.
No entanto, continuamos com o problema da rotatividade,
de uma média de 38 mulheres atendidas tivemos uma freqüência mais
contínua e estável de 2 ou 3 mulheres (as quais participaram de quase
todos os encontros). Fizemos um agendamento para os nove meses de
oficinas e não tivemos como controlar fatores sociais que no decorrer
do processo interferiram com as mesmas.
Assim aconteceu com o dia da mudança e também na 4ªoficina,
quando tivemos um número menor de participantes porque o governo do
Estado realizou uma vacinação coletiva para crianças neste dia e como
muitas mulheres têm filhos, tiveram que levá-los para tomar vacina.
O término do programa de oficinas também foi bastante
emocionante. As mulheres preparam uma festa, com apresentação de dança
do ventre por um grupo de adolescentes do Mutirão. Na ocasião, inauguraram
sua melhor sala para nos receber, presentearam-nos com flores repletas
de purpurina10 . Todas estavam
bonitas, arrumadas e com batom. Disseram obrigada e fizeram um pedido
para que continuássemos o trabalho. Como choveu muito naquele dia,
ficamos cheias de barro e purpurina! Saímos muito animadas, carregando
as flores e a certeza de que alguma coisa muito importante do nosso
trabalho tinha ficado ali.
9
- Demorávamos de 2 a 3 horas para chegar à comunidade. 10 - A purpurina era sinal de atenção especial. Compraram vasos
de flores do campo e tiveram o trabalho de colar purpurina flor por
flor. Interpretamos que este presente, repleto de brilho era uma forma
de nos contarem que elas tinham “brilho”, uma luz (re)descoberta,
reavivada com as oficinas.