Capítulo
III
Grupo
Experimentando a existência
do eu no (des)encontro com a outra
OFICINAS Na cactus (mulheres
sem HIV/aids)
Nosso Percurso
Apoiamos a constituição desta ONG dentro de uma comunidade
de baixa renda em A.E. Carvalho, bairro da periferia da cidade de
São Paulo. Esta casa pretende atender à população em suas demandas
educacionais, socioculturais e de saúde.
Inicialmente, fizemos a divulgação na instituição,
em um bar pertencente a presidente da instituição e em pontos comerciais
dos arredores, além dos contatos pessoais. Começamos a desenvolver
a programação, e no primeiro dia, pela excelente aceitação, achamos
que as mulheres iriam se organizar ao redor do grupo4.
Mas, começamos a ter problemas com o horário, as mulheres chegavam
com mais de uma hora de atraso e, então, renegociamos os horários.
Somente duas mulheres se mantinham fixas no grupo, com as outras havia
rotatividade na presença. Até que chegou um dia em que elas não compareceram.
Ficamos com tudo pronto para a oficina e esperamos por horas, mas
não apareceu ninguém. Começamos a pensar que elas não gostavam das
oficinas, no entanto, o comentário geral eram que elas “adoravam”
e ficavam falando sobre o tema discutido na oficina por vários dias.
Percebemos então que a periodicidade mensal era um
problema5, pois a distância entre
um encontro e outro era muito grande e as mulheres do bairro têm outras
referências, não trabalham com agenda como nós, e muitas vezes esqueciam
do encontro. No entanto, não tínhamos disponibilidade de horário para
fazermos oficinas com menor intervalo de tempo. Isto implicava em
compatibilizar o horário delas com o nosso, ter mais planejamento,
verba para material etc. Então resolvemos organizar alguns horários
para divulgação e maior proximidade com a comunidade. Como a oficina
era no sábado, nos dirigíamos à comunidade na 4ª ou 5ª feira e íamos
de “porta em porta” lembrando, avisando da oficina.
Nem assim funcionou, e nós resolvemos fazer uma última
tentativa, modificando o horário da oficina para a noite. No primeiro
dia achamos que não viria ninguém, mas para nossa surpresa apareceram
doze mulheres. Achamos então que o problema era o horário e deixamos
para um dia da semana à noite, mas, no mês seguinte, apareceu somente
uma mulher!
Com as entrevistas que realizávamos para a pesquisa
também tivemos problemas, algumas marcavam e não iam, outras nunca
podiam e uma disse que não “precisava de psicóloga”. Por mais que
explicássemos a pesquisa, que tentássemos uma linguagem familiar,
algumas tiveram muita dificuldade para entender. Avaliando que não
seria possível fazer a pesquisa ali, depois de sete meses resolvemos
realizar o estudo em outra comunidade6,
mesmo assim ainda fizemos algumas tentativas (pela intervenção somente
e não mais vinculadas à nossa pesquisa-ação), mesmo assim não obtivemos
sucesso.
Apesar de ter sido bastante cansativa e frustrante,
avaliamos que esta experiência revela alguns aspectos que merecem
ser refletidos. Várias vezes pensamos que as mulheres não gostavam
do trabalho, não sentiam necessidade do mesmo, mas, até pela nossa
perspectiva educativo-política não nos contentamos em dizer que havia
um desinteresse e ponto.
Fomos mudando as estratégias, tanto em termos do convite,
como de trabalho oferecido na oficina, procurando formas de tocar
esta população. Avaliamos como um dos problemas o fato da própria
Cactus ainda não ser referência para a comunidade e à luz dos estudos
sobre grupos7 sabemos que os
mesmos demandam continuidade, sistemática, vínculo. Enfim, temos a
hipótese de que o espaço da Cactus ainda não era suficientemente estruturado8
para a organização do grupo de mulheres e que o intervalo de um mês
poderia ser muito grande.
Além desta hipótese temos outra: as mulheres não possuem
a experiência de participar de grupos, de destinar um tempo só para
elas e também participar do grupo mexeu com o status quo da relação
conjugal: Camisinha?! O meu marido?!; Acho que o marido dela não gosta
que ela venha... Se eu falar isto ele vai querer saber onde eu aprendi
estas coisas.
Temos ainda uma última hipótese: o que inicialmente
“chama” estas mulheres são demandas concretas, elementos objetivos
(um papanicolau, por exemplo). Para algumas, frente à concretude da
vida, informação e reflexão podem ser muito pouco. A rotatividade
é tema presente neste tipo de trabalho. Sabemos que alguns estudos
conseguem manter o grupo de mulheres através do oferecimento de presentes
e/ou de um pequeno pagamento.
Dois meses depois da interrupção das oficinas, a comunidade
conseguiu que um hospital enviasse um plantão ginecológico e 400 mulheres
foram atendidas pela instituição. Surge, então, um pedido para que
retomemos as oficinas: As mulheres estão querendo que você volte.
Novamente, marcamos uma oficina, mas não levamos nossa programação
habitual, fizemos apenas uma roda de conversa.
Num grupo de 9 mulheres, pelo menos cinco apresentavam
relatos de depressão. Abordamos os motivos da depressão e ficava visível
uma sobrecarga interna e externa das mulheres. Elas assumem para si
o papel que a sociedade lhes deu de resolverem tudo, dos filhos à
vida do marido.
Observamos que rapidamente começavam a falar dos filhos,
cambiando o discurso de suas angústias e dificuldades para a problemática
dos filhos. Atualmente, o trabalho com as mulheres foi suspenso pois
a comunidade resolveu priorizar o atendimento para adolescentes, o
que de alguma forma indica o deslocamento da discussão das mulheres
para a discussão dos adolescentes.
Apesar de termos elegido outra comunidade para a realização
da pesquisa, consideramos que o trabalho realizado na Cactus foi muito
importantepara avaliarmos as dificuldades na constituição do grupo,
dificuldades aliás, relatadas por várias pessoas que nos procuram
na tentativa de descobrir caminhos para a constituição dos grupos.
Apesar de ser uma afirmação muitas vezes suposta como óbvia, vale
a pena apontarmos que constituir um grupo pode ser um longo caminho
de persistência, o qual demanda sistematização e depende do contexto
e condições de vida da comunidade e da instituição em que o trabalho
vai ser desenvolvido.
4
- Um detalhe aparentemente secundário, mas importante de ser observado
é a necessidade que tivemos de realizar um trabalho com as crianças
enquanto as mães estavam na oficina. Num dos encontros tivemos um
número maior de crianças do que de mulheres! 5 - No caso da Cactus, esta é uma observação nossa, mas no
Mutirão e no GIV, as mulheres disseram várias vezes que os encontros
deveriam ter um espaço menor, quinzenalmente por exemplo. 6 - Como iniciamos antes da liberação do financiamento ainda
tínhamos prazo para tomarmos esta decisão. 7 - Sobre grupos ler por exemplo: PICHON e RIVÈRE, 1988; FREIRE
et alli, 1997; BLEGER, 1980; LAPASSADE, 1977. 8 - Se mesmo num espaço organizado, sistematizado, que já é
referência para a comunidade, temos dificuldade com a oscilação das
participantes, o que dizer de um espaço que está se constituindo.
Em outras palavras, no GIV, constituímos um grupo de mulheres que
freqüentam oficinas, já na Cactus, além do grupo de mulheres, a própria
instituição está em constituição.