Capítulo
II
A
fala das mulheres:
Contracepção, aborto, maternidade, sexualidade,
relações de gênero, cidadania e auto-estima
As falas das mulheres: uma
sítese
Nos dois grupos estudados observamos que as representações
sobre relações de gênero permeiam todas as temáticas abordadas pelas
mulheres, principalmente a sexualidade e a auto-estima. A noção de
masculino e feminino que surgiu na fala das mulheres, ainda arraigada
nos estereótipos culturais, é marcada por uma idealização do feminino
e cria para as mulheres um espelho que não as reflete.
E, quando não se encontram neste espelho idealizado
(corpo escultural, roupas novas, ter dinheiro, ser branca) tomam a
inadequação para si mesmas.
O conjunto destas representações (que na maioria das
vezes reafirmam o senso comum) associado ao nível de informação marca
a percepção e o exercício dos direitos sexuais e reprodutivos.
O nível de informação é pequeno e na maioria das vezes
as representações reificam o senso comum. Podemos dizer que as mulheres
com e sem HIV/aids que participaram da pesquisa não tinham acesso
ao exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos e, freqüentemente,
desconheciam a existência dos mesmos.
No entanto, por paradoxal que seja, a aids, pela exigência
e experiências que propicia, parece oportunizar para as mulheres infectadas
uma rede de apoio e acesso a informações que as mulheres soronegativas
têm mais dificuldade de acessar. Neste sentido, a aids, que contribui
para a fragilidade, tambémcontribui para o empoderamento. Observamos
que mulheres com aids têm um pouco mais de informações que mulheres
sem, principalmente no que se refere à aids/DST. Indagamo-nos se as
portadoras seriam mais empoderadas que as não-portadoras e concluímos
que não, ou seja, mais informação pode contribuir para, mas não é
sinônimo de empoderamento. Talvez o maior acesso a médicos, psicólogos,
ONG, publicações, que a entrada no universo da aids acaba oportunizando
ou exigindo, seja um elemento que gera mais momentos de confrontos
e nesta medida pode funcionar (ou não) como uma rede de apoio para
o processo de empoderamento feminino.
É uma perversidade social.
No entanto, se olharmos ainda sob outro prisma, diríamos
que as mulheres do Mutirão se diferenciam da maioria das mulheres
(inclusive as com aids), pelo seu longo histórico de participação
num grupo, o que, como vimos também, é sinônimo de maior força. Por
meio da associação dos mutirantes, construíram sua casa e a organização
viabiliza vários projetos que acontecem dentro do Mutirão, entre eles
o que desenvolvemos (de prevenção às DST e aids).
Esta constatação reforçou ainda mais nossa premissa
da relevância de investirmos para que mulheres com e sem HIV/aids
constituam e se insiram em grupos comunitários organizados.
Apesar das diferenças predominou a igualdade entre
os dois grupos de mulheres. Muitas vezes reconhecíamos em uma mulher
do Mutirão uma mulher do GIV antes da infecção pelo HIV.
Neste sentido, nosso trabalho coincide com o de Guimarães
(l996), que afirma:
“Reconheço ainda que estes recortes empíricos englobam
dois conjuntos de mulheres com características próprias, devido ao
fato de um grupo estar diretamente afetado pela infecção e o outro
não. Mas como pude notar, as suas diferenças diante da doença são
menores que as suas semelhanças diante da vida, pois o que as aproxima
é a visão de mundo com que constróem a sua identidade de mulher”.
(Guimarães: l996,173)
E esta “identidade de mulher”, como vimos nos depoimentos,
é fortemente influenciada pelas subordinações de gênero, pertencimento
socieconômico, etnia, escolaridade, acesso a serviços, cultura, moradia
etc.
No caso das mulheres que entrevistamos identificamos
um feminino em processo, constituído e constituindo-se nas tramas
da desigualdade, estigma, exclusão social. Um feminino marcado pela
pobreza e ou pela aids. Um feminino, como descrevemos no próximo capítulo,
com profundo vigor e uma força e fé na vida surpreendentes.