Capítulo
II
A
fala das mulheres:
Contracepção, aborto, maternidade, sexualidade,
relações de gênero, cidadania e auto-estima
Auto estima
No decorrer do contato com as mulheres, principalmente
durante as oficinas, observamos que a maioria tinha uma baixa auto-estima:
valorizavam-se pouco, desconheciam seus direitos, freqüentemente não
se enxergavam como mulheres bonitas e como seres humanos de valor.
Na maioria das vezes existia um ideal do que era ser uma mulher “legal
e bonita”: próxima a uma atriz, branca, sem aids, escolarizada, com
marido, casa e dinheiro...
Entretanto, nas entrevistas dos dois grupos a totalidade
das mulheres disse que gostava de si. Esta diferença entre o que percebemos
e o que elas disseram pode ter sido influenciada por dois elementos.
Primeiro, a nossa concepção de auto-estima, na qual
o “gostar de si” incluía, por exemplo: não se sentir inferior porque
tem aids, não submeter-se ao parceiro, poder valorizar seu corpo como
é, reconhecer seus desejos e tomar sua decisões. O segundo elemento
que pode ter influenciado esta diferença refere-se à forte influência
da mídia nas representações verbalizadas pelas mulheres.
Em uma sociedade de culto ao corpo e ao indivíduo,
a auto estima é compulsória. Em programas de televisão e revistas
femininas as mulheres são incentivadas a “se amar em primeiro lugar”.
Mesmo que na prática isto não se efetive (e elas coloquem filhos,
maridos em primeiro lugar), a maioria dos depoimentos foi marcada
por este chavão:
Me adoro, em primeiro lugar eu acho que se eu não
me amar eu não amo mais ninguém...
Assim, ao menos no plano do discurso , o respeito e
amor por si estava colocado. Contudo, o aspecto mais interessante
é o quanto a auto-estima está intrinsecamente ligada às relações de
gênero.
O amor a si aparece inspirado no feminino veiculado
pela mídia, existe uma certa vergonha, um receio de afirmar que gosta
de si e reconhece seu valor. As mulheres têm uma certa dúvida se podem
afirmar seu valor, seja sua inteligência, beleza, direito, qualidade:
Gosto. Por quê? (silêncio). É umas perguntinhas
bem difíceis!... Ah! Porque eu me acho bonita, eu sou uma pessoa legal,
eu sou uma pessoa simples.
É difícil falar, mas sei lá, eu me acho uma pessoa
legal, que tenho amor próprio, a maioria das pessoas que convivem
comigo gostam de mim. Eu acho que sou uma pessoa bonita por dentro
e por fora, sou perfeitinha...
Ah! Eu gosto (...) Ah! Por que eu acho que eu sou
uma pessoa, não sou inteligente, aquela pessoa inteligente, mas no
fundo, no fundo, eu me acho uma pessoa um pouco inteligente, não muito,
mas, eu me acho inteligente em algumas coisas (...).
Para algumas mulheres soa como prepotente afirmar sua
positividade. Em nossa cultura, geralmente o homem é acostumado à
assertividade, à potência. Provavelmente a maioria dos homens diria:
sou inteligente e ponto. O feminino é considerado passivo, secundário,
inferior, para dizer da sua inteligência precisa das reticências,
como se tivesse que ocultar seu poder.
A expressão da auto-estima acaba sendo um assunto difícil
para as mulheres. Um “eu-feminino” freqüentemente não está autorizado
a expressar uma auto-aprovação. O curioso é que esta aprovação acaba
sendo mais facilmente verbalizada justamente quando a mulher percebe
que está atendendo aos principais papéis atribuídos ao feminino na
cultura: ser boa dona-de-casa, cuidar do outro, atender a expectativa
do outro:
Eu sou uma pessoa trabalhadeira, que gosta de trabalhar.
Eu me acho (não dizendo que eu sou melhor), eu me acho uma boa dona
de casa, é a minha parte. Pelo menos nesta parte eu nunca tive reclamação
do meu marido.
Gosto de mim porque eu acho que eu cuido bem das
coisas, eu acho que eu tomo conta, participo muito das coisas dos
meus filhos. Consigo, né, colocar as coisas todas no horário certo,
desde que eles são pequenos. Então eu me sinto bem por causa disto.
Eu gosto, ah! Por que eu gosto? (risos) Ai meu Deus.
Porque eu sou eu mesma, eu tenho que gostar de mim. Ah! Porque eu
acho que eu sou uma pessoa muito legal, quando a pessoa me pede pra
fazer alguma coisa eu vou e faço com bastante carinho. Porque eu gosto
de fazer .
Tivemos a impressão de que a auto-estima das mulheres
(como talvez da maioria dos humanos) está atrelada ao olhar do outro,
geralmente filho, marido, família.
Partindo do princípio de que somos seres sociais seria
quase impossível que o “outro” não tivesse nenhum tipo de influência
sobre o “eu”. O problema é que nem sempre a expectativa destes “outros”
respeita a mulher, seus direitos, desejos e possibilidades.
O aprisionamento da auto-estima feminina no olhar e
na expectativa alheia cerceia o exercício da liberdade, estimula o
submetimento e às vezes traz a infelicidade (eu deveria ser mais magra,
deveria cuidar melhor da casa, deveria deixar meu marido mais feliz
etc. ).
Assim, apesar do discurso de auto-estima, muitas das
mulheres entrevistadas não questionaram o feminino culturalmente construído
e portanto ficam encarceradas nas representações do senso comum, deixando
de reverter as proposições que diminuem o amor e o respeito que dedicam
a si mesmas (não preciso ser magra e loira, o quanto cuido da casa
está bom, a felicidade do meu marido não depende de mim, ele também
pode se preocupar comigo ...).
Atrelado às relações de gênero um outro fator que influencia
a auto-estima é a idéia de superação das dificuldades. O “gostar de
si e valorizar-se” está ligado ao fato de ter sido capaz de suportar
situações difíceis e não ter sucumbido:
(....) Mas às vezes eu olho pra mim, assim, no espelho,
e me sinto uma vencedora. Por tudo o que eu já passei. Hoje eu tô
aqui firme ainda lutando, com força pra lutar. E tem horas que a gente
tem vontade de desistir, né. Mas parece que... eu olho assim pra cima
e peço força pra Deus ( é verdade o que eu tô dizendo) e acho que
Deus tá sempre do lado aqui, dando uma força. É por isto que eu gosto
de mim (...).
(....) E já teve época na minha vida que se eu não
gostasse de mim, já tinha me suicidado. Porque já veio um época muito
difícil na minha vida. Porque eu fiquei com dois filhos para criar,
uma com um ano e sete meses, outra com três anos, sozinha, sem ninguém,
sabe, me veio pensamentos ruins mesmo. Depois eu parei, pedi pra Deus
tirar estes pensamentos ruins da cabeça. E olhei pra dentro de mim,
vi que não merecia nada daquilo e que eu ia vencer (...).
Nos depoimentos acima observamos que, se por um lado
há a afirmação da auto-estima, a valorização por todos os obstáculos
superados e o reconhecimento de si e de seus méritos, por outro, percebe-se
como a religião exerce forte influência nas representações do feminino.
Os depoimentos são perpassados por uma idéia de superação
dos obstáculos, que está mais atrelada a uma força externa (no caso,
Deus) do que à potência da própria mulher.
Associado a este fato há o pano de fundo do ideário
cristão, de que é preciso um sofrimento muito grande para se chegar
ao mérito. Algo como “quanto maior o sofrimento maior o mérito”. Uma
concepção de gênero próxima das mártiris, do feminino santificado.
Sem sofrimento existiria o reconhecimento do mérito?