Capítulo
II
A
fala das mulheres:
Contracepção, aborto, maternidade, sexualidade,
relações de gênero, cidadania e auto-estima
Ser mulher em tempos de aids
Ser mulher em tempos de aids, para as mulheres soronegativas,
significa ter medo:
Ah! Não sei! Acho que é uma coisa que a gente tá
sempre com medo ,né? A mulher tá sempre com medo. É insegurança (...).
Um medo ora aceito, ora negado, ora transposto para
os filhos, ou para alguém muito próximo, um medo que às vezes gera
vergonha e evita a pergunta:
(....) então no meu caso, eu não tenho muito esta
preocupação, neste sentido da aids. Agora, me preocupa muito é com
as minhas filhas, porque eu não sei como elas vão estar vendo isto,
mas comigo... (Depoimento de uma mulher que não usa camisinha com
o marido).
(....)acho que eu, fica até difícil de conversar
sobre isto, porque está tão avançado, que a gente só em conversar
já traumatiza, né (....) este tipo de doença, porque é terrível (....)
Olha, tem doenças que a gente até sente vergonha de falar, só diz
assim, quando está numa palestra, numa entrevista, uma coisa assim.
Porque é muito difícil de falar.
Os medos e a vergonha entrelaçam-se com a desinformação
e com questões de gênero que fazem, por exemplo, a mulher supor que
o casamento é garantia de proteção:
(....) Mas se eu fosse solteira eu acho que teria
mais medo do que agora, que eu conheço o meu marido. Mas acho que
dá medo quando é solteira (...).
Nas falas, observa-se que a informação subordina-se
ao estereótipo. Algumas mulheres, no decorrer da própria entrevista,
faziam afirmações, contrapunham-se, como que percebendo o preconceito
e o lugar que ocupam:
Ah! Ser mulher. Acho que as mulheres que vivem na
vida assim é perigoso. Para nós todas, é um risco porque a gente não
sabe o que acontece lá fora, e a gente tem medo também: falta diálogo,
conversa com o companheiro. O meu mesmo né. Ele disse que quando soube
dessa doenças, assim, porque eu acho que de vez em quando ele dava
umas puladinhas de cerca (risos).Daí uma vez que aconteceu isto, mas
daí disse que nunca mais não quis caso, não.
Por outro lado, algumas mulheres com aids também estão
presas a estas representações, e por isto sentem-se culpadas por estarem
infectadas pelo HIV, lamentando a condição atual:
Eu, olha só, eu tinha tudo pra ser uma garota sortuda,
e hoje eu sou uma garota azarada. Tive bastante namorado, tive ex-namorado
que era formado, que tinha dinheiro. E, enfim, acabei escolhendo uma
pessoa que era soropositivo, e agora estou aí com aids, moro com meus
pais. (....) Eu me culpo bastante. Porque se eu tivesse escutado minhas
amigas, porque elas eram contra meu namoro, minha mãe. Eu me culpo
bastante porque hoje com certeza eu estaria casada, com filho, eu
estaria mais feliz é claro, sem a aids. (....) Eu nunca pensei que
ia pegar. Não. O primeiro cara que eu transo (...).
As mulheres com aids também se sentem inseguras e administram,
com sofrimento, o resultado do exame, a perda do parceiro, os filhos,
a casa, o trabalho e a vida. Tudo parece adquirir um significado diferente.
O impacto inicial é vivido concomitantemente com a demanda de respostas.
É como se um dia estivesse nascendo, chamando para a vida, antes que
a mulher tivesse tido tempo de chorar a noite :
(....)Uma mulher em tempos de aids... a gente se
sente insegura e ao mesmo tempo a gente tem que ser segura, tem que
sentir um lado e sentir o outro, porque a gente tem que estar preparada
em todos os momentos.
(....)É muito difícil porque é como se estivesse
andando na corda bamba, tem que ter um equilíbrio pra você poder vencer
a doença, vencer os problemas de casa, dos filhos, então é muito difícil.
(....)Eu me contaminei através do meu marido. Eu
não sei quanto tempo eu tenho de vírus, ele morreu já faz cinco anos.
Ele ficou sabendo e logo morreu. Eu é quem fiquei com tudo pra mim,
eu que tive que segurar a barra de saber o resultado dele, fazer o
teste em mim, nas crianças, só ficou tudo pra mim, sozinha.
Dentre tantas dificuldades, as mulheres parecem destacar
a perda do parceiro como um dos aspectos mais difíceis de ser superado.
A morte, do companheiro ou dos filhos, ligada à aids é uma das experiências
mais impactantes e mobilizadoras de profunda dor. O luto, mesmo que
aparentemente superado, é recorrente na subjetividade da mulher com
HIV/aids. Esquecer esta dor é difícil e o lembrar é tão profundo que
muitas mulheres descrevem com precisão a data da morte do parceiro.
Quando à data da morte está associada alguma data importante seu relato
é ainda mais sofrido.
Porque aí ele foi internado num outro hospital,
e eu peguei, falei ‘meu Deus do céu! Ele morreu no dia do meu aniversário’,
no dia 20 de maio de 1992.
Para a maioria das pessoas em nossa cultura a morte
é um tema difícil de ser abordado com tranqüilidade e, no confronto
com a possibilidade de término da vida, freqüentemente surge a questão
sobre o sentido do existir. A sensação da maioria das mulheres é que
a herança deixada pelo parceiro é a aids, os problemas a resolver
e a solidão.
É ela ficar sozinha. A solidão. É difícil, tem luta,
neste mundo a gente está aqui mesmo pra lutar, pra aprender. Então,
quando eu tinha meu marido, eu trabalhava, tinha a minha filha, a
casa minha, eu sempre conseguia dar volta, enfrentar e sempre alegre,
porque tinha ele do meu lado. Pra mim é dificil ficar sozinha. A solidão
não me faz bem, eu sinto falta de uma pessoa, de um alguém.
A temática da solidão é muito freqüente na vida das
pessoas de um modo geral, e mais intensamente aparece no cotidiano
de pessoas com aids, seja pelo preconceito que leva à exclusão, pela
morte de pessoas próximas ou por um sentimento de estar vivendo uma
experiência profundamente significativa, difícil de compartilhar.
Este assunto talvez gerasse outra pesquisa. Para nós,
fica a reflexão de que o enfrentamento da solidão também é perpassado
pelas relações de gênero. Será que a solidão para as mulheres tem
o mesmo sentido que para os homens?
As mulheres são socializadas para viver em função de
e para um homem. Parece que o existir feminino está atrelado a presença
de um homem... Tirando este pilar de sustentação (mesmo que imaginário)
como se reestrutura a representação que a mulher tem do próprio feminino?
Estas questões são complexas e difíceis de responder.
Independentemente da aids, parece que quando uma mulher está sem um
homem ao seu lado seus sentimentos a respeito do que seja o “masculino”
e do seu próprio feminino são fragmentados17.
Talvez seja por isto que muitas mulheres descrevem
a felicidade como algo principalmente atrelado à presença de um homem.
Mais do que isto, a própria totalidade feminina para algumas mulheres
depende da presença masculina ao seu lado.
Pra mim é ter sua casa, seu cantinho sossegada,
seu marido bonzinho, ter filhos, filhos, eu acho muito importante.
Assim se vive bem, tendo esse conjunto, casa, marido e filhos, eu
acho muito bom.
Ah! Ter um marido bem bom, que compreenda ela em
tudo, dividir essa vida de hoje, dividir tudo. É sair, conversar e
contar tudo o que aconteceu (...). Pra ver se eu consigo uma pessoa
assim, que me ajude a tocar a minha família, a minha casa, o meu lar,
a minha vida. Eu sou, eu acho que eu sou, pela metade (...).
Às vezes, a aids adquire um peso tão grande na vida
de uma mulher que subtrai a percepção das coisas boas da existência.
17
- Para a ampliação das reflexões do leitor sobre a subjetividade e
o relacionamento de mulheres soropositivas com seu parceiro sugerimos
a leitura do artigo de KNAUTH,1999.