Capítulo
II
A
fala das mulheres:
Contracepção, aborto, maternidade, sexualidade,
relações de gênero, cidadania e auto-estima
RELAÇÕES DO GÊNERO
O papel
Eu acho que o papel do homem é ser o esteio da casa,
ter a responsabilidade pela família e pelos filhos, por tudo numa
casa. Acho que o papel dele tem que ser autoritário, saber resolver
os problemas, saber cumprir os deveres dele. O papel mais principal
que eu acho de um homem dentro de uma casa é ter responsabilidade
pelos filhos.
O papel da mulher eu acho que é deixar as coisas
sempre em ordem dentro de casa, quando o marido chegar a comida estar
pronta em cima da mesa, não ter coisa pra ele falar, as crianças já
tomada banho, tudo arrumado, tudo sempre limpinho. (....) se precisar
- só o marido trabalha e está vendo que não está dando – então vai
trabalhar, põe as crianças na creche, arruma um serviço e dentro de
casa cuida de tudo pra não ter falação.
Tanto nas entrevistas como no decorrer das oficinas,
observamos que, para a maioria das mulheres, existia uma visão dicotomizada
do que é ser masculino ou feminino e dos papéis que cabem a ambos
os gêneros.
Até pela falta de espaço para crítica e reflexão, as
mulheres apropriam-se dos componentes culturais dominantes16,
tomando-os como verdades.
A hipótese de um feminino ou masculino um pouco diferente
da média (ou da maioria) já conduzia à discussão de homossexualidade.
Assim, como o exemplo relativo aos homens nas citações
acima, particularmente interessante foi uma discussão sobre gênero
em uma das oficinas do GIV, que causou bastante polêmica. As mulheres
supunham que trabalhar em construções era coisa de homem ou de sapatão.
Causou estranhamento quando dizíamos que fazíamos oficinas com mulheres
que trabalhavam numa obra e que erguiam a própria casa. Ah!, mas é
só porque elas precisam, isto não é trabalho de mulher.
A questão de serem homossexuais não existia para as
mulheres do Mutirão, evidentemente porque a experiência pessoal colocava
as mulheres diante da certeza de que trabalhavam na obra e não eram
lésbicas.
No entanto, comparecer na oficina com a roupa da obra,
sem tomar banho era algo que causava um certo mal-estar, uma sensação
de inadequação (às vezes, quando não dava tempo de tomar banho, algumas
preferiam até perder a oficina). Num certo sentido, isto também fala
de um sentimento de inadequação em relação ao feminino.
Esta forma dicotomizada de encarar o que é e o que
faz cada um dos gêneros, num certo sentido, funciona como uma forma
de preservar a própria identidade. Se uma mulher se enquadra nos papéis
e componentes externos do feminino, isto lhe confere um sentimento
de pertencimento, de estar dentro do conjunto das mulheres. Preserva-se
assim a idéia de sou mulher.
Esta forma de conceber o feminino é pouco flexível
às mudanças, às vezes cria um ideal fantasioso e quando a mulher não
se enquadra no padrão tem sua auto-estima ferida. Mais do que isto,
é como se comprometesse a própria identidade feminina.
(....) Feminino. Acho que eu to perdendo, já perdi
um pouco isto. Pelo fato de eu estar vivendo um pouco os dois lados
(...).
Esta mulher dizia que estava perdendo o feminino. Como
não tinha marido e era provedora de sua casa (na sua lógica fazendo
o papel do homem: eu faço o papel dos dois), tinha pouco tempo e estava
perdendo a vaidade, (atributo feminino, sinônimo de se cuidar, andar
bem vestida, usar roupas femininas).
Assim, não se percebia como um feminino diferente da
média, mais autônomo e nem conseguia ver que a vaidade não era o único
atributo definidor de sua feminilidade.
Neste sentido, ocorre um paradoxo (quase ousaríamos
dizer, uma armadilha) nas representações de gênero da maioria das
mulheres entrevistadas: por um lado concebem o feminino predominantemente
a partir de elementos do concreto, que definem o ser e o papel do
feminino. Por outro, estes elementos do concreto são idealizados e
tornam-se freqüentemente irreais (a roupa sempre nova, a juventude
eterna, o corpo perfeito, a delicadeza constante, o homem provedor
como parceiro etc.)
No confronto com a realidade surgem muitas vezes a
insatisfação e o questionamento da própria identidade feminina.
Bom, o papel do homem. Ah! Como é que eu vou te
responder meu Deus, faz tanto tempo que eu não tenho o papel do homem
na minha vida. Eu sou o homem e a mulher. E eu não sei. Eu não sei
explicar assim (...)
O enfrentamento da vida de forma ativa faz com que
algumas mulheres sintam-se menos femininas, porque esta atividade
é tida como característica masculina e a passividade como feminina.
Talvez se as mulheres “flexibilizassem” suas representações
de gênero e pudessem trilhar com mais liberdade a linha entre o masculino
e o feminino, fossem mais felizes com o seu feminino. Sim, porque
este ideário cria um “feminino” quase nunca compatível com a realidade
e portanto a mulher sempre está aquém da expectativa idealizada que
criou para si.
Mesmo quando é muito forte, bonita e tudo o mais que
almeja freqüentemente não consegue se perceber assim.
Diante destas representações de gênero observamos que
as mulheres entrevistadas assumem basicamente dois tipos de posição:
a vítima ou a superior. A primeira traz a queixa, a segunda o menosprezo
pela “fraqueza” masculina. Vejamos:
16
- Referimo-nos por exemplo às informações veiculadas pela mídia que
geralmente informam a respeito dos gêneros de forma dicotomizada e
cristalizada. Um exemplo ainda mais específico seriam as novelas.