Capítulo
II
A
fala das mulheres:
Contracepção, aborto, maternidade, sexualidade,
relações de gênero, cidadania e auto-estima
SEXO E RELACIONAMENTOS
Negociação do preservativo
A maioria das mulheres do Mutirão não usa camisinha
e concebe o preservativo como um método contraceptivo, não como estratégia
de prevenção da infecção pelo HIV. A não utilização do preservativo
está predominantemente associada à opinião do parceiro. Claramente,
percebe-se nos depoimentos a subordinação feminina e o atrelamento
às decisões do parceiro. No entanto, um pequeno número de mulheres
declarou que, além do companheiro não querer, elas também não gostam
de usar o preservativo, reiterando representações do senso comum :
(....) Por que antes era bem freqüente, pra não
pintar a gravidez. Depois eu fiz a cirurgia (....) Aí, ficou assim
mais relaxado (....).
(....) ele não usa porque ele não gosta (....) Eu
aceito.
Não uso porque o meu companheiro, o meu marido,
ele não gosta (....) e pra falar a verdade até eu não gosto. E tem
um dizer (....) que diz assim, que transar, que fazer sexo com camisinha
é a mesma coisa que chupar bala com papel. E eu acho que é, e apesar
que eu não devia falar isto na conjuntura atual, que sei lá você nunca
sabe, mas (...) eu não gosto, nunca gostei da camisinha...
Além das razões anteriormente elencadas, a questão
da confiança da mulher no marido foi um dos argumentos mais utilizados
para a não utilização da camisinha:
não uso, porque se ele não anda com outras mulheres
como é que eu vou pegar? (....) eu confio nele, porque ele não estaria
praticando sexo fora de casa (...).
O universo da aids é algo distante para as mulheres
do Mutirão e, infelizmente, sabemos que não somente para elas, pois
os dados da epidemia revelam a assombrosa expansão do HIV entre as
mulheres.
As mulheres heterossexuais, com parceiro fixo, freqüentemente
não têm a consciência da sua vulnerabilidade. No lugar do preservativo
usam a própriafidelidade, a confiança e o conhecimento do parceiro
como uma fantasiosa forma de prevenção (Guimarães, l992 e l996; Knauth,
l997 ; Heilborn & Gouveia, l999). Os resultados que encontramos coincidem
com outros estudos, como, por exemplo, o de Guimarães que aponta:
“ (....) É importante notar que as justificativas
com base no conhecimento e na confiança não se restringem a essa população
feminina e percorrem todos os segmentos sociais. Dada a sua recorrência,
diria que o conhecer o outro é o método de prevenção mais usado para
a aids e qualquer outra doença sexualmente transmissível, merecendo
por si só um estudo mais aprofundando” (Guimarães: l996,174).
Já as mulheres infectadas pelo HIV parecem conceber
o preservativo como contraceptivo e meio para evitar as DST/aids.
No entanto, existem alguns elementos que destacam a especificidade
desta população: foram recorrentes os depoimentos sobre a consciência
da ameaça de reinfecção, o medo de contaminar o parceiro e um sentimento
de culpa frente a esta possibilidade.
Contudo, mesmo com as ameaças internas e angústias,
encontramos muitas mulheres com HIV/aids que relacionam-se sem proteção,
a maioria apresentando contradições e expondo-se aos riscos de forma
oscilante (às vezes usa, às vezes não usa).
(....) ele me engana às vezes, a camisinha está
ali e ele diz que só vai ficar brincando de namorado, então eu pergunto
se ele põe se for rolar, ele diz que põe, aí chega na hora ele fala
que não deu tempo. Eu fico puta da vida com ele, ele diz ‘Não tem
nada a ver, já está contaminado mesmo!’, eu digo que não quero saber,
que não vou ter mais relação com ele. Então, sempre tem isso, às vezes
ele me enrola, mas na maioria das vezes ele usa, porque eu já estou
esperta com esse lance dele. Mas não vou mentir não, que escapa, estou
até preocupada com isso (....) pela recontaminação.
Supomos que acontece algo semelhante à discussão que
fazemos com relação à prevenção da infecção pelo HIV: a informação
não é suficiente, e fatores afetivos e ligados a subordinações de
gênero exercem influência para a não adoção do sexo seguro. Na prática,
com ou sem HIV/aids, o uso do preservativo confronta-se com a necessidade
de negociação com o parceiro. Outros estudos já discutiram este processo
e apontaram a dificuldade feminina para lidar com a resistência masculina
para adoção da camisinha (por exemplo, Guimarães, l992; Villela, l996b;
Barbosa, l996).
As mulheres que entrevistamos utilizam algumas estratégias:
a) Convencimento:
(....) Eu carrego dentro da bolsa ou do bolso e
já ofereço na hora, e digo eu não transo sem camisinha, e ele pergunta
por quê? Eu digo que é uma segurança pra mim e pra ele. Pra ele no
começo não. Mas quando eu conversei com ele (....). Aí eu fui conversando,
explicando...ele já aceita numa boa (...).
b) Risco de Gravidez como argumento:
(....) Ah! Já teve situação que ele não queria,
mas eu falei: eu posso engravidar (...)
c) Apoio em autoridade externa:
J., a gente tem que usar camisinha, porque o doutor
disse que uma reinfecção é pior do que infecção (....).
d) Proposta de utilização do
preservativo no caso de uma relação extraconjugal.
(....) Não é que eu confie totalmente, muito. Porque
a gente pode estar correndo risco. A gente sabe o marido que tem em
casa, mas lá fora (...) Então fica negociado. (...) eu falo se você
for sair com outra mulher não esquece de usar camisinha. Ele fica
nervoso: ‘ É você não confia em mim mesmo’ (...) É, confiar eu confio,
mas de repente (...)
Percebemos então várias nuances desta problemática
nas diferentes atitudes femininas: as mulheres desconsideram sua vulnerabilidade
e se relacionam sem preservativo; negociam a ponto de conseguirem
praticar sexo seguro; utilizam a gravidez, argumento biológico que
não coloca em pauta questões como a fidelidade e a aids; fazem uma
negociação que deixa o poder decisório na mão do parceiro (se ele
sair ele usa, ela portanto, continua a mercê dele).
Podemos observar que é bastante restrito o número de
mulheres que consegue negociar a camisinha com tranqüilidade. A maioria,
com e sem HIV, tem dificuldade de reivindicar o preservativo e esta
reivindicação, em última instância, traz para ambos os grupos a ameaça
de perda do parceiro (porque ele pode ir embora, romper a relação),
por isto freqüentemente as mulheres cedem.
No que se refere ao risco de perda do parceiro, Barbosa
(l996) destaca a diferenciação do exercício da sexualidade feminina
e masculina e os diferentes níveis de poder nas relações. Ela aponta:
“....Demandar de seu parceiro o uso do condom poderá
significar colocar em risco a relação, o que pode ser particularmente
significativo para as mulheres dependentes emocional e financeiramente
do parceiro. Além disso, a convivência com um risco associado ao exercício
da sexualidade é algo tão incorporado ao cotidiano e à própria identidade
feminina, que se os custos sociais , econômicos e culturais forem
muito altos, a mulher optará ‘naturalmente’ por correr o risco” (Barbosa,
l996:157).
No entanto, novamente aqui, parece-nos haver uma especificidade
advinda da condição sorológica, pois no caso da mulher com HIV aceitar
relacionar-se sem camisinha também pode significar perda, pois existe
a possibilidade do parceiro se contaminar e morrer...
Eu sempre propus, porque eu sempre tive muito medo
de contaminar ele, porque era a única pessoa que eu posso estar contando.
Quando a mulher soropositiva consegue negociar a camisinha
existe a preocupação com um eventual acidente que ocasione a gravidez
e/ou a contaminação de um parceiro soronegativo. Muitas vezes também,
a mulher não tem coragem de falar que é portadora, com medo de perder
o parceiro.
(....) A gente conversava bastante, mas eu não tive
coragem de falar que eu era soropostiva. A gente usava camisinha,
até que eu fiquei grávida dele, a camisinha estourou, né. Então por
isso agora eu não quero arrumar outro e tenho medo também de arrumar
e a camisinha estourar. (....) Depois ele fez o exame e não deu. Graças
a Deus né. Também até hoje eu não falei nada pra ele. Não tenho coragem.
O risco para a mulher com HIV aparece acompanhado de
outros conflitos, mesmo que ela ultrapasse as subordinações de gênero
e consiga negociar com o parceiro, ela pode, por um acidente, contaminá-lo,
ou ele pode ir embora, por ter conhecimento da sua sorologia.
Fica a pergunta: será que os riscos são os mesmos
para mulheres soropositivas e soronegativas? Será que o rompimento
com o parceiro tem o mesmo significado simbólico para ambos os grupos?
A resposta talvez demande um outro estudo...
Nossa investigação mostra que mulheres com e sem HIV
relatam uma sensação de desamparo diante da vida, solidão e a falta
muito grande de um parceiro com quem possam contar. Mas mulheres HIV
positivo estão mais expostas e ficam extremamente fragilizadas quando
confrontam-se com preconceito e/ou exclusão, momentos de adoecimento
e situações (reais ou potenciais) da própria morte ou de pessoas próximas
como, por exemplo, o parceiro.