Capítulo
II
A
fala das mulheres:
Contracep��o, aborto, maternidade, sexualidade,
rela��es de g�nero, cidadania e auto-estima
SEXO E RELACIONAMENTOS
Sexo entre a biologia, o prazer
e o amor
Em ambos os grupos, os depoimentos sobre sexo foram
permeados por risos, sil�ncios e diminui��o do tom de voz. Muitas
mulheres deram respostas evasivas, breves, provavelmente porque este
� um assunto considerado �proibido� e que ainda desperta vergonha12:
Sexo? ... Sexo � um ....(risos) Nossa que vergonha!
Ah! Sexo � um... (deixa eu ver) Ah! Sexo � uma coisa normal.
N�o vou responder n�o (sobre com quem obteve informa��es).
O sexo foi representado como um componente biol�gico,
um elemento da natureza humana:
Sexo pra mim � que nem alimenta��o (....)
(....) � uma complementa��o, sei l� animal. Porque
voc� tem necessidade, faz parte do seu hormonal, do seu afetivo, sei
l�. N�o importa como seja, de que forma, mas faz parte, (...) significa
bastante.
Neste sentido, a justificativa para a realiza��o do
sexo parece fundamentar-se nesta necessidade biol�gica, que cria a
�normalidade� e permite que o sexo possa ser percebido como algo gostoso.
Ah! � uma coisa normal (...) � uma coisa gostosa,
� gostoso, n�. A mulher precisa e o homem tamb�m precisa (...).
Esta perspectiva, ao explicar a sexualidade somente
a partir das necessidades org�nicas, desconsidera a �natureza� social
dos humanos, inclusive as media��es sociais nos aspectos afetivos.
O prazer e o afeto apareceram como extens�es do aspecto biol�gico
e n�o como processo subjetivo que possa interferir no exerc�cio da
sexualidade. Neste sentido, algumas mulheres se abst�m de sentir culpa,
ou justificam seus prazeres a partir de sua natureza humana, biol�gica.
Apesar das mudan�as nas concep��es hist�ricas sobre
sexualidade, pouqu�ssimas mulheres associaram, expl�cita ou implicitamente,
sexo ao prazer.
(....)Sexo � bom.
(....)Sexo � prazer.
No entanto, houve um predom�nio de representa��es de
sexo como complemento e principalmente como sin�nimo de amor, como
podemos observar nestes depoimentos:
(....) Porque eu s� tive o meu marido, eu n�o tive
outro homem, ent�o eu fiz amor, eu digo fazer amor, nem falo sexo
porque eu acho que � amor. Fazer amor e fazer sexo � diferente um
do outro entendeu? Tanto que � que eu nunca fiz sexo com meu marido,
fazia amor , porque eu amei ele, era meu marido. Pra mim era muito
gostoso, era bom. � bom quando as duas pessoas se amam e se respeitam.
N�o fazer por fazer, ou por um prazer somente.
Nossa discuss�o aqui, como tamb�m as que propusemos
nas oficinas, n�o � definir se o sexo tem ou n�o que ser associado
ao amor ou, se � melhor ou pior com ou sem amor, mas sim, refletir
a respeito do porqu� no imagin�rio feminino sexo � sin�nimo de amor
e quais as conseq��ncias disto para o exerc�cio da sexualidade feminina.
Evidentemente, existe aqui uma interface entre sexualidade e rela��es
de g�nero.
Na perspectiva masculina, sexo e amor n�o necessariamente
s�o sin�nimos e as mulheres explicam esta diferen�a novamente a partir
da natureza masculina, que diferentemente da feminina � mais sexuada.
Esta vis�o controla as pr�ticas sexuais femininas e
legitima a moraliza��o das mesmas, al�m de negar a domestica��o com
a qual � socializado o desejo das mulheres. Por exemplo, atrav�s da
premissa da manuten��o da virgindade, ou do casamento como o espa�o
no qual a sexualidade pode ser exercida:
(....) � quando eu casei (....) Foi o pai das minhas
duas filhas, eu era inocente, eu n�o sabia nada. Naquele tempo os
pais, a m�e da gente n�o ensinava nada pra gente, n�. Eu vim saber
isto, qual era o significado de sexo quando eu casei. Na minha primeira
noite (....) foi tanto pra mim, que aquilo era coisa de outro mundo
(....) Na hora que eu fui pra casa, pra ficar com o meu marido em
casa, eu n�o quis ficar. Eu corri, sai de casa, porque era inocente,
mas porque eu era novinha. Casei com 16 anos. Minha m�e nunca me explicou
nada (....)
Quando eu namorava, eles ficavam na minha cabe�a
�toma cuidado!� ou �cuidado, n�o vai se entregando pro mo�o�. E eu
sempre ficava com aquele medo, achando que o sexo era um bicho de
sete cabe�as. Eles sempre me colocaram medo, porque pra eles a virgindade
era um respeito, uma honra. Se eu fosse transar com algu�m, um namorado
e perdesse a virgindade,ent�o eu estaria envergonhando e desonrando
eles.
Como percebemos, o significado do sexo � constru�do
ao longo de uma trajet�ria. Nem sempre � percebido de forma prazerosa
e muitas vezes � cercado de medos e exig�ncias. As mulheres aprendem
que um espa�o privilegiado para o relacionamento sexual � o casamento
e que relacionar-se sem o amor � quase uma heresia, �entregar-se�
� uma desonra. S�o educadas para acreditarem que sexo � igual a amor
e uma moral austera vai permeando a constru��o da sua subjetividade
e sexualidade.
Assim, no decorrer do seu desenvolvimento v�o edificando
valores e afetos que permeiam suas viv�ncias sexuais e afetivas13.
Como pudemos observar, nas entrevistas e nas oficinas,
no decorrer desta edifica��o, nem sempre a mulher se percebe como
sujeito e suas �verdades� muitas vezes oprimem, viram pesos.
Por exemplo, esta moral austera divide as mulheres
entre as �santas� e as �putas�. Mulheres �moralmente corretas�, mesmo
que n�o consigam se encaixar totalmente no primeiro grupo (pois s�
mesmo Maria, para conceber sem pecado!) far�o o poss�vel para fugir
do segundo grupo. Vejamos alguns exemplos:
� o relacionamento de duas pessoas n�, pra mim n�o
precisa estar inventando nada, � com bastante carinho, sexo pra mim
� isso, � isso a�. � carinho, � tipo beijos, car�cias, n�o � fantasias
(sexo anal, oral, isso a� n�o).
Olha � uma coisa muito boa, muito boa, bonita, quando
� feito com amor, certo? N�o � s� porque hoje eu sou portadora que
eu fa�o por fazer, n�o, tem que ter amor, tem que ter carinho, tem
que ter.
Aqui colocado, o amor como sin�nimo de sexo/sexualidade
legitima a vida correta, a moralidade da mulher, confere-lhe um lugar
de pertencimento dentro do feminino que acredita ser o melhor.
No segundo depoimento, o amor � utilizado para distanci�-la
de qualquer insinua��o fundamentada na sua sorologia. No imagin�rio
popular pessoas que t�m aids s�o prom�scuas, uma identidade que n�o
� compartilhada por esta mulher, heterossexual, monog�mica, fiel.
Portanto, o amor adquire um sentido identit�rio, apesar de ter aids,
n�o se identifica com as prom�scuas, pertence ainda ao grupo das mulheres
honestas.
Observamos veladamente no segundo depoimento, e mais
explicitamente em v�rias oficinas que sexo anal, oral e outras pr�ticas
sexuais eram veementemente negadas por muitas mulheres e consideradas
como pr�ticas de prostitutas, da outra ou de mulheres f�ceis.
Isto gera um conflito muito grande nas mulheres: se,
por um lado, negam tais pr�ticas, por outro, muitas vezes t�m curiosidade,
desejo e outras tantas vezes sofrem press�o dos parceiros14.
Em uma das oficinas, uma mulher contou que o seu marido
disse: voc� n�o me d�, por isto eu tive que buscar fora, referindo-se
ao fato de ter tido pr�ticas homossexuais. Esta mulher oscilava, vivendo
sentimentos amb�guos. Tinha uma certa curiosidade, vontade de experimentar
o sexo anal, entretanto n�o achava certo, e ainda queria atender ao
marido.
Ou seja, o seu �feminino constru�do� s� a aprisionava.
N�o podia satisfazer seu desejo, porque, sendo uma mulher correta
n�o deveria nem assumir seus desejos, que dir� este tipo de pr�tica
sexual. Queria agradar o marido e concordava com ele: achava leg�timo
mesmo, que ele tivesse ido procurar fora. Trazia a incompet�ncia para
si, ela n�o foi capaz de satisfaz�-lo. Enfim, n�o era dona do seu
desejo, n�o percebia os seus direitos: de querer, de n�o querer.
Muitas vezes, ainda se coloca outra quest�o: quando
uma mulher resolve experimentar uma pr�tica sexual, al�m do coito
vaginal, est� em meio a este conflito, repleta de valores e sentimentos.
Algumas passam tranq�ilas pela experi�ncia e podem tomar suas decis�es
(gostar, n�o gostar, querer mais, n�o querer), mas existem muitas
que se assustam ou porque gostaram (� bom!), ou porque no momento
do relacionamento ficam tensas e acabam assimilando a experi�ncia
como algo danoso.
Observamos que muito freq�entemente a forma como a
mulher resolve este e outros conflitos que surgem na esfera da sua
sexualidade � a chamada boa vontade:
(...) Eu acho que isto da� � uma coisa que a gente
tem que fazer por amor e por boa vontade (...).
A boa vontade � bem diferente de uma vontade boa, gostosa,
de fazer sexo. Muitas vezes significa atender ao parceiro, fazer o
que o parceiro quer. N�o numa rela��o de troca de boas vontades, mas
numa rela��o predominantemente de m�o �nica. Em nome deste elemento
que consideram a parte do feminino na rela��o, as mulheres se deixam
coisificar e colocam seus desejos e a si mesmas em segundo plano.
Assim, sexo, que � sin�nimo de amor, pode ser tamb�m
boa vontade... Um amor, por exemplo, que pode compreender que o parceiro
n�o gosta de camisinha, e mesmo que ele tenha outras(os) parceiras(os)
� preciso �boa vontade� para fazer �o amor� sem preservativo (veja
adiante discuss�o sobre a negocia��o do preservativo).
12 - Para uma reflex�o
sobre a quest�o da vergonha ver ARA�JO, 1998. 13 - Um aspecto curioso: nas oficinas em que o tema era sexualidade,
fizemos uma associa��o resgatando a ludicidade, a dimens�o de jogo,
brincadeira existente nesta tem�tica. Muitas mulheres se espantavam:
�nossa, eu nunca associei sexo a brincadeira, sempre pensei numa coisa
s�ria�. 14 - Algumas impress�es masculinas e femininas sobre sexo anal
podem ser encontradas no artigo de GOLDSTEIN, 1996.