Capítulo
II
A
fala das mulheres:
Contracepção, aborto, maternidade, sexualidade,
relações de gênero, cidadania e auto-estima
Maternidade e HIV
Fartamente discutida na literatura sobre relações de
gênero, a maternidade parece ser, também na representação das mulheres
do GIV e do Mutirão, um elemento definidor do “feminino” e foi destacada
pelos grupos como uma das principais “coisas boas da vida de uma mulher”.
Numa das oficinas do GIV, causou polêmica uma mulher
que disse não desejar ser mãe, ela mesma disse que as pessoas passavam
a ter “suspeitas” sobre a sua sexualidade (nas entrelinhas, pensando
que era lésbica). Por meio dos relatos podemos observar que, mais
do que uma possibilidade, ter filhos parece ser um fenômeno compulsório,
que desenha a identidade da mulher heterossexual6.
Parece haver coerência entre esta valorização da maternidade
e a postura tão marcadamente contrária ao aborto. No entanto, não
podemos nos contentar com uma análise tão linear. Precisamos apreender
as nuances destas representações. Primeiro, porque apesar de valorizarem
a maternidade e se oporem ao aborto, as mulheres, como descrevemos
acima, abortam, e uma série de condições concretas interfere na decisão
de fazer o aborto ou de ter o filho (dinheiro, parceiro, desejo).
Segundo, porque quando se agrega a esta discussão o HIV, novas dimensões
surgem nesta problemática.
No decorrer do trabalho, pudemos observar que a mulher
com HIV/aids, como diz a expressão popular , fica “entre a cruz e
a espada”. Pode escolher a categoria de “pecadora e culpada” na qual
vai se inserir: ou é muito má porque aborta e tira a vida de uma criança
ou é muito má porque põe no mundo uma criança com aids.
O desejo da mulher com HIV/aids de ter ou não um filho
fica encarcerado sobre o olhar do “outro”, um outro externo e internalizado.
A imagem que ilustraria o que dizemos é a seguinte: ante à gravidez
indesejada, a mulher infectada pelo HIV confronta-se interna e externamente
com um dedo em riste e muitas advertências. Alguns depoimentos das
mulheres ilustram o que dizemos:
(....) eu uso camisinha e tomo pílula.. Morro de
medo de engravidar! Já pensou o que as pessoas vão dizer de mim: com
aids e pondo um filho no mundo. Eu tenho vergonha.
(....) eu não teria coragem de gerar um filho sendo
portadora.
De todas a mulheres com aids entrevistadas, apenas
uma declarou que, se naquele momento não quisesse o filho, faria o
aborto. O restante disse que não faria.
Parece que a maternidade tem um peso maior do que a
aids. Mas existe ainda a dimensão da história individual, isto é,
qual o significado de vir a ter um filho para cada mulher. Uma das
participantes perdeu uma filha com aids.
Por isso tem o sonho de engravidar e ter uma filha
mulher; outra participante chegou nas oficinas após três meses do
nascimento de sua filha e a cada encontro eram fotos e novidades do
crescimento com um sorriso largo: sentia-se vitoriosa por ter superado
dificuldades e ter tido um bebê.
Podemos pensar ainda que existe um significado simbólico
que perpassa a decisão das mulheres com aids por manter uma gravidez:
a possibilidade de sentir-se viva, porque carrega uma vida em si,
a sensação de estar tão bem de saúde que até pode ser mãe.
Muitas mulheres relatam que não desistiram de lutar
para viver porque tinham os filhos. A responsabilidade pelas crianças
se por um lado é peso e exigência, por outro é a possibilidade de
ainda poder cuidar de alguém, raiz que traz a mulher para o chão,
concreto, conferindo sentido para o seu viver.
Um outro aspecto bastante importante e que nos parece
muito difícil, é que neste momento histórico, com as representações
que vigoram na sociedade e inclusive entre os profissionais que prestam
atendimento, as mulheres consigam encontrar um apoio efetivo para
clarear seus desejos e tomar suas decisões.
Se por um lado, médicos, psicólogos, assistentes sociais
e instituições foram predominan-temente citados como fonte de referência,
orientação e apoio ante à temática da gravidez, ainda existem impasses
e posturas que deixam a desejar. Para exemplificar: uma mulher relatou
que percebeu o mal-estar gerado por sua posição, pois, pessoas do
serviço em que recebia apoio culpabilizaram-na por engravidar7.
Sem dúvida, este é um terreno delicado, que esbarra
em aspectos éticos, legais, de políticas públicas e direitos humanos.
No desenvolvimento de nosso trabalho, também temos
nos confrontado com esta problemática, e nossa postura tem sido apoiar
as mulheres em todas as suas decisões, inclusive no que se refere
a manter ou interromper uma gravidez. No entanto, temos observado
dois aspectos importantes:
• As mulheres que estão
diante deste impasse ficam frágeis e nem sempre têm clareza a respeito
dos seus desejos. Às vezes temos, e outras não temos, a possibilidade
de ajudá-las a pensar nesta decisão;
• Não existe um aparato social, incluindo
serviços de saúde e legislação, que apoiem amplamente as decisões
das mulheres: o aborto é proibido por lei. Portanto não existem serviços
de referência e a mulher acaba optando por soluções clandestinas.
O atendimento à gestante HIV, apesar de ter avanços,
ainda não é tão acessível às mulheres de todo o estado de São Paulo
e, freqüentemente, a própria mulher desconhece o tratamento que necessita.
Novamente, aparecem as interfaces da aids com um sistema
social, cultural e político muito mais amplo. No nosso dia-a-dia,
temos realizado ações num plano micro e macroestrutural. Envolvemo-nos
com ações sociopolíticas a favor do aborto para todas as mulheres
na luta contra a aids, e pela melhoria nos serviços de saúde e educação.
No plano microestrutural, fazemos trabalhos com as
mulheres para promover reflexões sobre as relações de gênero e a construção
sócio-histórica das representações sobre o aborto e a maternidade,
os direitos individuais, sexuais, reprodutivos e humanos.
É o que temos conseguido fazer, num contexto onde as
representações da maioria das mulheres enraizadas numa moral perversa8
são desapropriadas do sentido do exercício dos direitos, reificam
subordinações de gênero e interferem, freqüentemente de forma sofrida,
nas decisões de ter ou não um bebê, principalmente se ele tiver a
possibilidade de nascer infectado pelo HIV.
6
- Nenhuma das mulheres entrevistadas declarou ter práticas homossexuais.
7 - Com relação a este aspecto, podemos acrescentar que nossa
experiência na realização de treinamentos, palestras etc, junto a
profissionais de saúde reiteram o que as mulheres dizem. Muitos profissionais
relatam dificuldades para encaminhar estas discussões com as mulheres.
Acabam por seguir seus parâmetros frente à questão e não o das mulheres.
Isto significa, às vezes, induzir uma posição, omitir informações...
No decorrer de um treinamento, um profissional declarou: ”agora que
você está falando, estou revendo minha posição. Eu poderia ter informado
à mulher sobre o aborto, porque eu sabia como ela podia fazer, mas
mesmo sabendo que ela queria tomar esta decisão, eu não passei a informação”.
8 - Estamos denominando moral perversa, atribuir exclusivamente
ao campo individual decisões que têm inter-relações com a materialidade
da existência, incluindo as cobranças sociais sobre esta problemática
e as condições concretas de vida das mulheres.