Capítulo
II
A
fala das mulheres:
Contracepção, aborto, maternidade, sexualidade,
relações de gênero, cidadania e auto-estima
Aborto
A grande maioria das mulheres tem uma representação
negativa do aborto, posiciona-se contra e considera-o como um crime,
uma coisa errada e um pecado. No decorrer das entrevistas e das oficinas
esta temática foi permeada por silêncios e lágrimas. Apesar das representações
acima descritas, pelo menos 30% das mulheres entrevistadas já adotaram
esta prática e sentem-se muito mal em relação ao processo que viveram.
As mulheres não percebem o aborto como um direito,
e a gravidez indesejada freqüentemente está associada a dificuldades
econômicas, desinformação sobre métodos contraceptivos e/ou à dificuldade
para negociação de preservativo com o parceiro.
Este quadro resulta, além do sentimento de culpabilidade,
em maus tratos e na exposição das mulheres a risco de vida. Os dois
exemplos a seguir (um do GIV e outro do Mutirão) ilustram de maneira
contundente a realidade:
Foi terrível, porque na minha adolescência eu não
sabia sobre sexo, fazia sem saber. Então eu fiquei grávida (...) e
não sabia que estava grávida, e ele muito cachorro me levou numa mulher(...)
Então eu fiz um aborto, só que eu já estava de três meses.Foi horrível,
é uma coisa que até hoje eu tenho remorso. O outro que eu fiz já foi
consciente, deu o atraso, já fiz o teste deu que eu estava, eu não
queria e fiz. Mas tudo era mesmo uma falta de experiência de saber
como evitar uma gravidez (...) Ele me deixou na mulher, disse pra
minha mãe que eu estava na casa de uma amiga dele, aí a mulher pois
uma sonda e deixou lá, eu passei a noite lá, no outro dia eu lembro
que ela me mandou deitar na cama, puxou a sonda e eu vi aquele sangueiro
todo, eu sentia que ele enfiava um negocio em mim, enfiava e puxava.
Quando eu levantei para ir no banheiro eu lembro que tinha uma bacia
enorme cheia de sangue que tinha saído de mim.
....eu não sabia que estava grávida, porque descia
pra mim, e eu estava trabalhando em casa de família recentemente,
(estava grávida de gêmeos). E minha barriga crescendo e minha barriga
crescendo (....) eu sei que eu fui no médico fiz exame de urina e
deu gravidez. (....) Eu falei: estou sem nada aqui dentro de casa,
me deram... ele tinha me dado a prestação de uma televisão e eu vendi
um colchão lá, a vizinha e peguei a caixinha que as meninas me deram
aqui e fiz um aborto (....)
Colocaram uma sonda, arrancou uma e colocou uma...
aí eu fui pro hospital. Mas eu apanhei tanto dos médicos (mostrando
com a mão o gestodo médico batendo em seu rosto), acorda sua bandida,
sua criminosa, aí quase que eu morro e eu fiz esse aborto porque eu
trabalhava em cinco casas na época, cada dia uma, e elas me ajudaram
muito, davam comida pra os meus filhos (....) e nas casas que eu trabalho
são tudo famílias.... tudo é casa de médico, tudo é casa de gente
mesmo que eu nem sei como hoje eu analfabeta, estou lá dentro daquelas
casas, hoje é que eu dou valor ao meu serviço, que eu sei que é um
pessoal tudo.... formado, tudo um pessoal que trabalha aqui e lá fora
também.... Então não podia de maneira nenhuma dizer pra esse povo
que eu estava com quatro meses de barriga. Talvez se eu tivesse dito,
elas tinham me ajudado no aborto, mas como que eu dizia?
(....)tirou pedacinho por pedacinho. Até hoje eu
não gosto nem de pensar nisso. Até hoje eu tenho que pagar isso porque
uma morte é um crime. Um só não, dois, né? Cada bracinho e perninha
que o médico tirava.... (novamente o gesto bater no rosto) ‘acorda
sua bandida, sua safada, você tem coragem de fazer uma coisa... você
é uma criminosa eu queria te chamar na cadeia’, (....) (depois relata
que as patroas descobriram) (....) Mas passou, né? Nenhuma me mandou
embora, me socorreram muito bem, pagaram os dezoito dias que eu fiquei
no Pronto Socorro, pagaram direitinho e foi isso esse aborto. Além
da minha vida ser dura e ser minha.... ainda mais esse aborto pra
mim pagar, porque dizem que é uma dívida com Deus, é uma coisa que
a gente não termina de pagar nunca. Eu sei que é duro, né.
Esses relatos revelam diferentes fios que se entrelaçam
na ocasião do aborto: o desejo de não ter o filho, a impossibilidade
de tê-lo, a desinformação, a submissão ao homem, os problemas com
o trabalho, a subordinação e supervalorização dos patrões, a baixa
auto-estima atrelada à escolaridade e classe social, a influência
religiosa. Uma sensação de culpa perpassa os depoimentos, mesmo quando
há lampejos de consciência como no primeiro relato.
O que chama a atenção nos dois relatos é que apesar
de ser o sujeito que toma a iniciativa de procurar o aborto, a mulher
também ocupa o lugar de objeto, de alguém que diante da fragilidade
se deixa levar e acaba a mercê de situações que não são felizes para
ela.
Evidentemente que a ilegalidade e a preponderância
de representações sociais contrárias ao aborto têm um peso importante
nestas experiências, mas cabe destacar que em nenhum momento a segunda
mulher questionou o procedimento do médico ou disse que ele estava
errado ou deveria ter seu CRM5
cassado por falta de ética. Esta mulher acreditava que se jogasse
água quente após a relação sexual mataria os espermatozóides e impediria
uma gravidez! E ainda apanha do médico!
As mulheres reproduzem o discurso do senso comum e
apesar da vida ser dura, e ser minha as mulheres assumem uma dívida
com Deus (pecado) e com a Justiça (crime), mas não cobram a dívida
que a sociedade tem com elas de garantir-lhes seus direitos, sejam
sexuais e reprodutivos (incluindo o aborto), ou aqueles referentes
à saúde, educação e trabalho.
Neste sentido, as mulheres são desapropriadas e desapropriam-se
não somente do seu corpo e de seus direitos, mas também de sua vida.
Em tempos de aids, isto é sinônimo de vulnerabilidade. Uma vulnerabilidade
que nossas ações têm dificuldade de superar pois depois de todo o
trabalho, esta mulher continuava guardando a sua dívida e sentindo-se
duplamente culpada e pecadora pelo aborto dos gêmeos.
5 - A expressão refere-se
ao registro no CRM (Conselho Regional de Medicina).