Capítulo
I
Rede
Paulista de Mulheres com HIV/Aids:
Lugar poss�vel de tecer solidariedade, empoderamento e cidadania
Gays, mulheres, crian�as,
negro, heteros: tantos outros no espa�o do eu
Os homossexuais foram os primeiros, tanto no que se
refere � infec��o pelo HIV, quanto ao desenho de a��es preventivas
e de apoio realizadas pelas ONG. Organizaram grupos, buscaram respostas,
conseguiram criar e oferecer alicerces para o enfrentamento da epidemia7.
A expans�o da aids entre as mulheres foi marcada por
um sil�ncio, fazendo com que as a��es de enfrentamento, tanto de preven��o,
quanto de assist�ncia fossem basicamente voltadas para a popula��o
gay. No momento inicial, em que as mulheres confrontaram-se com a
epidemia, os grupos gays eram os atores sociais mais instrumentalizados
e organizados para lidar com a aids. Com rela��o �s mulheres, n�o
existia nenhum movimento que pudesse acolh�-las, pois, inclusive o
movimento feminista respondeu vagarosa e gradualmente � epidemia8.
Foi neste contexto que o Toque de Mulher surgiu no GIV.
A inser��o das mulheres no GIV significou que um espa�o
predominantemente gay passou a ser compartilhado por mulheres heterossexuais
e, tamb�m, como extens�o desta inser��o, por outros atores sociais,
como por exemplo, as crian�as.
Observamos que, de uma maneira geral, o espa�o para
mulheres e crian�as nas ONG/aids fica restrito, pois culturalmente
na nossa sociedade as mulheres e homossexuais possuem pr�ticas de
conv�vio diferenciada, dificultando a perman�ncia das primeiras nas
ONG j� existentes.
Assim, a maioria das mulheres que nos procuravam, como
as que buscam ajuda atualmente, n�o t�m um hist�rico de participa��o
em grupos (comunit�rios, pol�ticos etc.). Entre os dois universos
existem muitos contrapontos: a casa X a boate; o dia X a noite; os
filhos e a sexualidade contida X a sexualidade explicitada e sem reprodu��o;
a novela X o cinema. Essas diferen�as originaram algumas tens�es na
esfera das rela��es de g�nero9.
Neste sentido, um gay � um �outro� em rela��o � mulher, e uma mulher
� um(a) outro(a) em rela��o ao gay.
Com o desenvolvimento do trabalho, outros segmentos
foram se constituindo dentro do grupo num movimento, nem sempre consciente,
de maior ou menor aceita��o/rejei��o ou maior /menor espa�o e apoio.
Apesar disto, o grupo cada vez mais se abre � diversidade.
Temos alguns homens heterossexuais, que apesar de n�o constitu�rem
um subgrupo organizado continuam freq�entando o GIV e, desde 1998,
acontecem discuss�es sobre a quest�o �tnica, mais especificamente
dos negros em rela��o � aids.
Enfim, aglutinamos v�rias pessoas diferentes, e neste
sentido existem v�rios �outros�, que t�m em comum a infec��o pelo
HIV e o enfrentamento da pandemia. Em fun��o da aids, aquele que �
outro, tamb�m tem uma dimens�o de �um�, configurando a identifica��o
e a partilha da identidade de pessoa soropositiva10
,11.
Esta identidade em comum tem permitido o conv�vio das
diferentes especificidades e se configura como a mola propulsora dos
v�nculos que se estabelecem no grupo.
Aquelas pessoas (homens e mulheres) que por meio desta
identifica��o com o outro conseguem permanecer no grupo, acabam passando
por um processo de enriquecimento. Se, por um lado, �s vezes existem
tens�es com as diferen�as individuais, por outro, estes v�nculos tamb�m
permitem o aprendizado do relacionamento com pessoas diferentes de
si. A experi�ncia da diversidade oportuniza, pelo menos para as pessoas
mais envolvidas com o grupo, a possibilidade de reconstruir a representa��o
inicial sobre o outro 12.
Mais do que isto, o contato com a aids, e com todos
estes �outros� oferece a possibilidade de metamorfoses13
contribuindo para a (re) constru��o das identidades dos participantes
do grupo.
Dentro deste contexto, um dos aspectos mais importantes
� o fato do GIV ser um espa�o de socializa��o, onde se constr�i uma
parcela da hist�ria da aids e tamb�m das hist�rias individuais. Experi�ncias
importantes s�o compartilhadas, desde uma a��o pol�tica, at� a decis�o
de iniciar o tratamento, introdu��o de novos medicamentos, ou seus
efeitos colaterais. E ainda, a recupera��o ou o adoecimento e perda
de algum membro querido.
Certa vez, um visitante indagou por que n�o constitu�mos
uma outra ONG, um grupo s� para mulheres. Por que dever�amos? Afinal,
juntos n�o somos mais fortes no enfrentamento da aids? N�o � o fim
do preconceito e o respeito � diversidade o que propomos?
Nossa conviv�ncia tem sido o espa�o para exercitarmos
aquilo que acreditamos e neste tempo juntos temos nos apoiado mutuamente,
tanto nas lutas de cada subgrupo, como na luta coletiva pela melhoria
da qualidade de vida das pessoas vivendo com HIV/aids.
E foi assim, neste caminho onde o pr�prio GIV constr�i
e reconfigura sua identidade, que se instalou o trabalho com as mulheres.
Pensando um pouco nesta trajet�ria percebemos que um
primeiro momento da Rede, exclusivamente para mulheres, funcionando
quase como um ap�ndice do grupo, foi necess�rio para �abrir� um espa�o.
O trabalho das e com as mulheres � reconhecido pelos
homossexuais do grupo como importante n�o somente para o combate da
epidemia, mas para o fortalecimento e a estrutura��o do pr�prio GIV.
E a rec�proca tamb�m � verdadeira.
Enfim, como em todos os grupos, temos momentos de tens�o
e acolhimento, mas conseguimos caminhar integrados . Os gays do grupo
t�m sido nossos interlocutores, amigos e parceiros de trabalho. Assim,
temos compartilhado este caminho, para o enfrentamento da aids e para
a constru��o de uma sociedade onde a dignidade, os direitos humanos
e a felicidade possam ser uma realidade.
7 - Ver por exemplo PARKER,
1994; MANN, 1993; TERTO JR., 1999. 8 - Ver BARBOSA, 1996. 9 - Gays e mulheres n�o s�o massas homog�neas, estamos nos
referindo ao perfil de grande parte do grupo, o que n�o significa
em hip�tese alguma a totalidade. 10 - Ver TERTO JR., 1999, em importante artigo no qual discute
a constru��o da identidade da pessoa soropositiva. 11 - No caso do GIV, esta din�mica eu-outro se processa na
rela��o portador/portador e portador/profissional/volunt�rio. Profissionais
e volunt�rios, quando soronegativos, s�o um �outro� para todos do
grupo, mas incluem-se na categoria do �eu� quando demonstram solidariedade
e comprometimento com a �causa�. 12 - Por exemplo, uma mulher que acha que os gays n�o se apaixonam
pode ficar amiga de um homem que esteja profundamente apaixonado por
outro homem. Ou, um gay que sempre achou as mulheres �fracas e �burras�,
pode conhecer mulheres �fortes e inteligentes�. 13 - Sobre a identidade concebida como metamorfose ver CIAMPA,
1986.