BOLETIM
VACINAS
ANTI HIV/AIDS - NÚMERO 35
PUBLICAÇÃO DO GIV - GRUPO DE INCENTIVO À VIDA - Julho - 2024

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Boletim Vacinas Anti-HIV/AIDS - GIV

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PREVENÇÃO
DoxiPEP
DoxiPEP: onde estamos e para onde vamos?
Rico Vascocellos*

O controle de uma epidemia nunca é algo fácil. A depender então das características da doença, do agente infeccioso em questão e das suas vias de transmissão, isso pode ficar ainda mais difícil.

Na ciência, o impacto de medidas comportamentais de controle de epidemias historicamente sempre foi limitado. Incluem-se nessa categoria medidas que envolvem mudança em atitudes, comportamentos ou hábitos de vida dos indivíduos, com o fim de reduzir o risco de se infectarem com um determinado agente infeccioso.

São exemplos de medidas comportamentais de controle de epidemias a recomendação do uso de máscaras e do isolamento social no contexto da pandemia de covid-19. Como sabemos, enquanto tivemos disponíveis apenas tais medidas, os resultados no controle de casos foram insuficientes e temporários para permitirem uma retomada da normalidade

Com a chegada das vacinas contra o coronavírus, medida de controle classificada como biomédica, e com a alta cobertura vacinal da população, os casos de covid-19 puderam finalmente ser controlados e as medidas de restrição de circulação suspensas.

Isso também foi verificado no caso da epidemia de HIV. Enquanto tivemos disponíveis medidas comportamentais de controle, tais como a abstinência sexual, a redução do número de parcerias sexuais e o uso de preservativo durante as relações, o impacto na redução de novos casos de infecção por HIV foi insuficiente.

Enquanto tivemos disponíveis medidas comportamentais de controle, o impacto da redução de novos casos de infecção por HIV foi insuficiente.

No entanto, com a chegada do tratamento antirretroviral e com a constatação de que ao se tratar uma pessoa com HIV estávamos também tornando-a não transmissora dos seus vírus para suas parcerias sexuais, pudemos ver a curva de incidência parar de crescer de forma explosiva. Em seguida, com a chegada das profilaxias pré e pós-exposição ao HIV, PrEP e PEP respectivamente, passamos a ver o número de novos casos cair nas localidades em que a implementação de tais medidas de prevenção foi bem-sucedida.

Em resumo, a associação de medidas comportamentais e biomédicas de controle de epidemias sempre terá um impacto muito mais satisfatório do que o emprego delas isoladamente.

EPIDEMIAS DE IST BACTERIANAS

No caso das epidemias de infecções sexualmente transmissíveis (IST) bacterianas, como a sífilis, gonorreia e clamídia, a situação mundial atual é motivo de preocupação. Nas últimas décadas, globalmente presenciamos um aumento progressivo da curva de incidência com diferentes perfis de distribuição populacional a depender da região do planeta.

Nas últimas décadas, globalmente presenciamos um aumento progressivo da curva de incidência com diferentes perfis de distribuição populacional, a depender da região do planeta.

No Brasil, por exemplo, só passamos a notificar de forma compulsória os casos de sífilis adquirida, nomenclatura dada aos casos de transmissão sexual entre adultos, a partir de 2010. Desde então, a taxa de detecção de casos desse agravo aumentou em mais de 700%, segundo o Boletim Epidemiológico de Sífilis de 2023(1).

Apesar de não notificarmos no Brasil os casos de gonorreia e de clamídia, nos países que fazem essa notificação, como Estados Unidos e Reino Unido, um aumento semelhante na curva de incidência dessas infecções tem sido visualizado a partir da virada do século, com especial concentração dos casos entre homens que fazem sexo com outros homens e outras minorias étnicas e sexuais.

Nas últimas décadas, as medidas de controle adotadas para controle da disseminação das IST bacterianas foram quase todas baseadas em abordagens comportamentais, como a recomendação do uso de preservativo nas relações sexuais e a redução do número de parcerias.

Em alguns países foi recomendado também o rastreamento periódico de IST em subgrupos específicos independentemente da presença de sintomas, com o objetivo de tratar as infecções assintomáticas; no entanto essa medida teve um alcance bastante limitado, especialmente em países de renda média ou baixa, uma vez que os exames envolvidos requerem investimento elevado.

No caso da epidemia de gonorreia, é preciso apontar uma preocupação adicional relacionada à capacidade de seleção de resistência bacteriana aos antibióticos utilizados para o seu tratamento.

Especificamente no caso da epidemia de gonorreia, é preciso apontar uma preocupação adicional relacionada à capacidade de seleção de resistência bacteriana aos antibióticos utilizados para o seu tratamento. Ao longo das últimas décadas, o gonococo se tornou resistente sequencialmente às penicilinas, às tetraciclinas, aos macrolídeos às quinolonas e, mais recentemente em países da Ásia e Europa, às cefalosporinas como a Ceftriaxona, atualmente antibiótico de escolha para seu tratamento na maior parte do planeta.

MULTIRRESISTÊNCIA BACTERIANA

O crescimento explosivo dos casos de uma bactéria que vem se tornando multirresistente é motivo de especial preocupação pela possibilidade de em breve ela se tornar intratável com os antibióticos disponíveis e por suas potenciais complicações para a saúde sexual e reprodutiva dos indivíduos

Diante deste cenário e sob a perspectiva da necessidade de medidas de prevenção biomédicas para potencializar o controle das IST bacterianas, uma linha de pesquisa que começou a ser conduzida na última década foi a do uso de profilaxias medicamentosas com antibióticos para a prevenção dessas infecções.

O uso de antibióticos de forma profilática não é uma novidade e já é empregado há décadas para a prevenção de infecções como malária ou leptospirose. Para a prevenção de IST, o antibiótico escolhido para ser pesquisado foi a doxiciclina, uma tetraciclina de segunda geração lançada na década de 1960, utilizada desde então para o tratamento de IST como a sífilis e a clamídia sem relatos na história de casos de seleção de resistência antimicrobiana.

ESTUDOS COM DOXICICLINA

O primeiro estudo conduzido nessa linha foi um pequeno ensaio clínico aberto realizado no início da década de 2010 nos Estados Unidos com 30 homens gays vivendo com HIV, para os quais foi dado ou não uma dose diária de 100 mg de doxiciclina (DoxiPrEP). Ao final do período de acompanhamento, o braço que recebeu a intervenção medicamentosa teve 73% menos casos incidentes de sífilis, gonorreia e clamídia(2).

Ao final do período de acompanhamento, o braço que recebeu a intervenção medicamentosa teve 73% menos casos incidentes de sífilis, gonorreia e clamídia

Em seguida, em um estudo aberto (IPERGAY) com 232 homens gays e mulheres transexuais em PrEP, um grupo de pesquisadores franceses avaliou o efeito do uso de uma dose única de 200 mg de doxiciclina até 72 horas após as relações sexuais (DoxiPEP). Os resultados demonstraram de forma geral a redução de 47% na incidência de IST bacterianas, sendo que não houve redução para gonorreia, mas houve redução significativa de cerca de 70% para os casos de sífilis e clamídia(3).

Em outro estudo aberto (DoxyPEP), a DoxiPEP foi investigada nos Estados Unidos, agora incluindo 501 homens gays em dois grupos, aqueles que faziam uso de PrEP e os que viviam com HIV em terapia antirretroviral. Ao fim de um ano de acompanhamento com a realização de rastreamento periódico de IST, o braço que recebeu o antibiótico teve proteção significativa para todas as três IST avaliadas nos dois grupos estudados. A redução para a gonorreia foi de cerca de 55% e para sífilis e clamídia de aproximadamente 80%(4).

Em um segundo estudo aberto realizado na França (DoxyVac), foram incluídos 502 homens gays em PrEP para uma nova avaliação do impacto do uso da DoxiPEP. Em geral, o grupo que recebeu a intervenção teve 84% menos IST bacterianas incidentes.

Em um segundo estudo aberto realizado na França (DoxyVac), foram incluídos 502 homens gays em PrEP para uma nova avaliação do impacto do uso da DoxiPEP. Em geral, o grupo que recebeu a intervenção teve 84% menos IST bacterianas incidentes. A proteção contra sífilis (79%) e clamídia (89%) foi maior que a encontrada para gonorreia (51%); no entanto, houve significância estatística para todas elas(5).

Em seguida, foram divulgados os resultados do primeiro estudo de DoxiPEP que incluiu mulheres cisgênero. O estudo aberto dPEP foi conduzido no Quênia e incluiu 449 mulheres cis para receberem ou não a doxiciclina em dose única até 72 horas após as relações sexuais.

Segundo os resultados, não houve mudança na incidência de IST bacterianas no grupo que recebeu o antibiótico. Inicialmente foi levantada a hipótese de que dadas as diferenças corporais e hormonais entre homens e mulheres, a doxiciclina poderia se distribuir de forma diferente em mucosas, prejudicando a sua eficácia.

No entanto, a dosagem de doxiciclina em 50 amostras aleatórias de cabelo de participantes do grupo que recebeu DoxiPEP encontrou níveis detectáveis de antibiótico em apenas 29% delas, apontando para a baixa adesão aos comprimidos prescritos(6).

Com a convergência dos resultados publicados até o momento podemos afirmar que a DoxiPEP é uma medida biomédica eficaz para a prevenção de IST bacterianas, mais potente contra sífilis e clamídia do que contra a gonorreia.

A DoxiPEP é uma medida biomédica eficaz para a prevenção de IST bacterianas, mais potente contra sífilis e clamídia do que contra a gonorreia.

Uma explicação para essa menor proteção contra a infecção por gonorreia está no fato de já existirem cepas resistentes de gonococos às tetraciclinas. Na França, por exemplo, 56% dos gonococos já são resistentes, enquanto nos Estados Unidos esse número é de cerca de 20%.

TEMORES CIENTÍFICOS

Se por um lado existe uma convergência de eficácia nos resultados dos estudos em que se obteve boa adesão aos comprimidos de DoxiPEP, há uma preocupação com uma eventual seleção de cepas bacterianas multirresistentes sempre presentes desde que essa linha de pesquisa começou a ser conduzida

De fato, o uso disseminado de antibióticos e a sua pressão seletiva na ecologia bacteriana de uma comunidade é sabidamente um fator que pode promover a seleção de cepas de bactérias com mutações genéticas que conferem a elas mecanismos de resistência a esses ou outros antimicrobianos. Um exemplo disso são as bactérias hospitalares que se tornaram multirresistentes devido ao uso intensivo dessas drogas nos pacientes internados.

O medo da comunidade científica nesse tema seriam dois: primeiro o de com o tempo surgirem IST multirresistentes e o efeito protetor da DoxiPEP ser apenas passageiro; e em segundo, de o uso indiscriminado da estratégia de prevenção inadvertidamente causar uma alteração da flora bacteriana das pessoas que a utilizam, tornando essas bactérias resistentes às tetraciclinas e a outras classes de antibióticos.

Dos estudos realizados até agora, apenas o DoxyPEP, feito nos Estados Unidos, e o DoxyVac, na França, fizeram análises de resistência a antimicrobianos tanto de flora bacteriana quando de bactérias causadoras de IST.

Dos estudos realizados até agora, apenas o DoxyPEP, feito nos Estados Unidos, e o DoxyVac, na França, fizeram análises de resistência a antimicrobianos tanto de flora bacteriana quando de bactérias causadoras de IST e em nenhum dos dois estudos foi demonstrada a seleção de bactérias resistentes. Esse dado foi recebido com cautela pela comunidade científica, uma vez que o número de participantes incluídos nos estudos e o tempo de acompanhamento deles pode ter sido pequeno e curto demais para se evidenciar uma tendência como essa.

Dessa forma, temos como lacunas ainda a serem respondidas em relação à DoxiPEP em dois pontos. Primeiro, sobre a eficácia protetora contra IST bacterianas na população de mulheres cisgênero e em segundo sobre uma eventual seleção de resistência a antimicrobianos induzida pelo seu uso prolongado e disseminado.

Nesse sentido, sabendo que a eficácia já foi comprovada, pesquisadores começaram a se dedicar a estudar quais seriam os melhores critérios de indicação de uso da DoxiPEP para que fosse prescrito o menor número possível de comprimidos de doxiciclina obtendo-se a máxima redução de incidência de IST bacterianas.

Um estudo que se tornou um divisor de águas nesse sentido foi realizado nos Estados Unidos com a análise de um enorme banco de dados de uma clínica de saúde sexual situada na cidade de Boston, no nordeste daquele país.

Os pesquisadores analisaram as informações coletadas referentes ao acompanhamento de mais de 10.000 pacientes entre 2015 e 2020 e fizeram diferentes simulações de indicação de DoxiPEP para encontrar aquela em que de forma mais precisa seriam utilizadas menos doses de antibiótico com a maior redução de IST. O resultado foi a indicação da DoxiPEP para indivíduos que tinham tido o diagnóstico de uma IST bacteriana no ano anterior(7).

Com esse resultado, o Centro de Controle de Doenças dos Estados Unidos passou a recomendar a implementação monitorizada da DoxiPEP em todo o país indicada para homens gays e mulheres transexuais que tiverem o diagnóstico de uma IST bacteriana durante o seu acompanhamento de saúde.

Com esse resultado, o Centro de Controle de Doenças dos Estados Unidos passou a recomendar a implementação monitorizada da DoxiPEP em todo o país indicada para homens gays e mulheres transexuais que tiverem o diagnóstico de uma IST bacteriana durante o seu acompanhamento de saúde. Nessa implementação a vigilância de resistência bacteriana continuará sendo feita para detectar precocemente qualquer tendência na seleção de bactérias multirresistentes.

É importante pontuar que lá, todas as pessoas em uso de DoxiPEP devem realizar o seu rastreamento periódico de IST bacterianas assintomáticas; também não é recomendada nenhuma alteração do tratamento habitual para aquelas diagnosticadas durante o seguimento.

Até o momento, os Estados Unidos são o único país que já recomendam oficialmente esta medida de prevenção biomédica, mas a Austrália e a Alemanha já emitiram pareceres favoráveis a uma implementação futura.

No Brasil, apesar de não termos nenhuma recomendação oficial do Ministério da Saúde para a adoção da DoxiPEP como estratégia de prevenção de IST bacterianas, uma vez que a doxiciclina é um antibiótico amplamente disponível e barato, sabemos que há diversos profissionais da saúde prescrevendo o seu uso.

Aguardamos que as lacunas de informação sobre esta promissora medida de prevenção biomédica sejam logo preenchidas e que possamos contar com ela para conseguir enfim reduzir as curvas de incidência de sífilis, gonorreia e clamídia.

Até lá, é importante que sigamos pautados pelo conhecimento científico construído até aqui.

(*) Rico Vasconcelos é Médico Infectologista e Pesquisador do Hospital das Clínicas da FMUSP

REFERÊNCIAS:
1 Ministério da Saúde, 2023. Boletins Epidemiológico de Sífilis. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/boletins/epidemiologicos/especiais/2023/boletim-epidemiologico-de-sifilis-numero-especial-out.2023/view. Acesso em 21fev2024.
2 Bolan, R.K., et al. Doxycycline prophylaxis to reduce incident syphilis among HIV-infected men who have sex with men who continue to engage in high-risk sex: a randomized, controlled pilot study. Sex Transm Dis, 2015. 42(2): p. 98-103.
3 Molina, J.M., et al. Post-exposure prophylaxis with doxycycline to prevent sexually transmitted infections in men who have sex with men: an open-label randomised substudy of the ANRS IPERGAY trial. Lancet Infect Dis, 2018. 18(3): p. 308-317.
4 Luetkemeyer, A.F., et al. Postexposure Doxycycline to Prevent Bacterial Sexually Transmitted Infections. N Engl J Med, 2023. 388(14): p. 1296-1306.
5 Molina, J.-M., et al. ANRS 174 DOXYVAC: An Open-Label Randomonized Trial to Prevent STIs in MSM on PrEP [Abstract 119], in 30th Conference on Retroviruses and Opportunistic Infections (CROI) 2023: Seattle, Washington.
6 Stewart, J., et al. Doxycycline Prophylaxis to Prevent Sexually Transmitted Infections in Women. N Engl J Med, 2023. 389(25): p. 2331-2340.
7 Traeger, M.W., et al. Potential impact of doxycycline post-exposure prophylaxis prescribing strategies on incidence of bacterial sexually transmitted infections. Clin Infect Dis, 2023.

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Fevereiro de 2019

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