O caso foi relatado com muito alarde na Conferência Internacional de AIDS 2020 (AIDS 2020), com alegações de que o homem poderia ser a primeira pessoa a alcançar uma cura funcional sem um transplante de células-tronco.
ANTECEDENTES
Até agora, duas pessoas parecem ter sido curadas do HIV após receberem transplantes de medula óssea para tratar um câncer avançado. Ambos receberam células-tronco de um doador com uma rara mutação genética conhecida como CCR5-delta-32, que impede a maioria dos tipos de HIV de entrar nas células.
Timothy Ray Brown, anteriormente conhecido como o ‘Paciente de Berlim’, não teve evidência alguma de HIV competente para replicação em qualquer parte de seu corpo por mais de 13 anos. Mas Brown morreu em setembro de 2020 devido a uma recaída de leucemia. No último relatório, o segundo homem, Adam Castillejo, apelidado de ‘Paciente de Londres’, ainda não tinha vírus detectável depois de mais de três anos sem terapia antirretroviral.
A intervenção intensiva e cara provavelmente não poderia ser ampliada o suficiente para torná-la viável para milhões de pessoas vivendo com HIV em todo o mundo
Mas, os transplantes de células-tronco são muito perigosos. Por isso, são realizados de forma restrita; por exemplo, em pessoas que precisam deles para tratar de um câncer que ameaça a vida. Além disso, a intervenção intensiva é cara e provavelmente não poderia ser ampliada o suficiente para torná-la viável para milhões de pessoas vivendo com HIV em todo o mundo.
O PACIENTE
O ‘Paciente de São Paulo’, de 35 anos, participou de um ensaio clínico que avaliou vários regimes de fármacos intensificados em um esforço para reduzir o tamanho do reservatório do HIV. Esta redução é considerada a chave para uma cura funcional, ou seja, a capacidade de permanecer sem antirretrovirais por longo prazo sem rebote viral.
O homem foi diagnosticado com HIV em outubro de 2012. Em um ponto, sua carga viral atingiu mais de 20.000 cópias/ml, indicando que ele não era um controlador de elite natural. Quando entrou no estudo em setembro de 2015, ele tinha supressão viral e estava em tratamento havia mais de dois anos.
Dois antirretrovirais adicionais – o inibidor da integrase e dolutegravir e o inibidor de entrada do HIV maraviroc – foram incluídos ao seu esquema de três medicamentos padrão (isto é a intensificação) junto a nicotinamida, uma forma de niacina, ou vitamina B3. Ele permaneceu nesta combinação de cinco fármacos por 48 semanas e, em seguida, voltou à terapia padrão.
Em março de 2019, o paciente iniciou uma interrupção do tratamento monitorada de perto. Durante a AIDS 2020, o Dr. Ricardo Diaz, da Universidade Federal de São Paulo, relatou que mais de 15 meses depois, o homem continuava a ter o RNA do HIV indetectável (a forma de material genético viral medido em um teste de carga viral típico), bem como DNA do HIV indetectável (a forma que em grande parte constitui o reservatório viral). Além disso, o nível de anticorpos do homem diminuiu continuamente, caindo o suficiente para que um teste rápido de anticorpos se tornasse negativo.
Esse homem era o único dos cinco participantes do ensaio tratado com esse esquema intensificado que ainda apresentava supressão viral após interromper o tratamento.
Na época, esse homem era o único dos cinco participantes do ensaio tratado com esse esquema intensificado que ainda apresentava supressão viral após interromper o tratamento.
“O fato de ser um único caso sugere que isso pode não ser real [N. do Tradutor: ou seja, devido ao tratamento recebido no estudo]”, disse o Dr. Steven Deeks, da Universidade da Califórnia em San Francisco, a aidsmap.com à época. “Sabemos que algumas pessoas podem alcançar o que parece ser a remissão apenas com os antirretrovirais. Pode ser simplesmente uma pessoa que teve sorte com os antirretrovirais.”
Infelizmente, a sorte do paciente de São Paulo acabou pouco tempo depois.
O RELATO NA CROI 2021
Como Díaz relatou na CROI, a equipe de pesquisa continuou a monitorar a carga viral do homem e examinou amostras de sangue armazenadas para analisar respostas imunológicas mediadas por células e outros parâmetros.
Enquanto o paciente esteve no esquema intensificado, ele mostrou respostas crescentes de células T contra as proteínas do envelope do HIV e Gag, a principal proteína estrutural do HIV. Mas essas respostas mediadas por células “desapareceram progressivamente” em paralelo com o declínio dos anticorpos específicos para o HIV após a interrupção do tratamento.
Em setembro de 2020, o homem foi diagnosticado com sífilis secundária. Naquela época, sua carga viral ainda estava abaixo do limite de detecção. Mas em 10 de novembro – 72 semanas após a interrupção do tratamento – ele apresentou sintomas como febre, calafrios, dor de cabeça e diarreia, e descobriu-se que ele tinha uma carga viral superior a 6.300 cópias. Seus anticorpos contra o HIV também começaram a aumentar nessa época. No início de dezembro, ele iniciou um esquema padrão baseado em dolutegravir e, em 1º de janeiro, sua carga viral estava novamente indetectável.
A cepa emergente de HIV tinha diferenças genéticas no envelope e nas proteínas Gag em comparação com a cepa de linha de base, e a razão para isso ainda não está clara.
A cepa emergente de HIV tinha diferenças genéticas no envelope e nas proteínas Gag em comparação com a cepa de linha de base, e a razão para isso ainda não está clara. As possibilidades incluem evolução viral dentro do corpo do paciente, reinfecção com uma nova cepa ou ressurgimento de “cepas antigas” de infecção dupla anterior, sugeriu Diaz, embora tenha acrescentado que pessoalmente não acredita que a mudança se deva à evolução.
Estão em andamento um sequenciamento genético adicional e uma análise de respostas de anticorpos em um esforço para determinar se o homem experimentou um verdadeiro rebote viral ou uma reinfecção.
No ano passado, Díaz relatou o caso na 23ª Conferência Internacional de AIDS, ainda em remissão. Na ocasião, Sharon Lewin, pesquisadora de cura do HIV, diretora do Instituto Peter Doherty para Infecção e Imunidade, na Austrália, ressaltou que este não é um experimento controlado e convincente. “Precisamos ir além dos relatos de casos de remissão do HIV”, disse Lewin. “Eu ficaria superempolgada em ver remissão a longo prazo em vários participantes de um ensaio clínico. É disso que o campo precisa para realmente avançar.”