O autor da ação é o Partido Socialista Brasileiro (PSB) que entende que as normas que impedem que homossexuais doem sangue revelam-se “absurdo tratamento discriminatório por parte do Poder Público em função da orientação sexual”.
No Brasil, desde a publicação da Resolução RDC nº 343/2002 da Anvisa, foi estabelecido o período de 12 meses para abstinência. Isto permanece assim, segundo portarias do Ministério da Saúde. As portarias 2.712, de 12 de novembro de 2013, e 158, de 4 de fevereiro de 2016, em substituição à primeira, estabeleceram inaptidão por 12 meses para a doação de sangue para homens que tiveram relação sexual com outro homem:
“Art. 64. Considerar-se-á inapto temporário por 12 (doze) meses o candidato que tenha sido exposto a qualquer uma das situações abaixo:
- que tenha feito sexo em troca de dinheiro ou de drogas ou seus respectivos parceiros sexuais;
- que tenha feito sexo com um ou mais parceiros ocasionais ou desconhecidos ou seus respectivos parceiros sexuais;
- que tenha sido vítima de violência sexual ou seus respectivos parceiros sexuais;
- homens que tiveram relações sexuais com outros homens e/ou as parceiras sexuais destes;...”
Observe-se que para heterossexuais monogâmicos não há a mesma restrição do que para Homens que fazem Sexo com Homens (HSH).
Ressaltemos que no Brasil o teste utilizado para o sangue doado é o Teste de ácido nucleico (NAT, sigla em inglês), que detecta infecções ocorridas há pelo menos 15 dias, segundo o M. da Saúde.
O QUE OCORRE EM OUTROS PAÍSES DO MUNDO?
Há uma ampla gama de normas neste sentido, mas muitas estão mudando rapidamente. Em julho de 2017, o Reino Unido (exceto Irlanda do Norte) decidiu reduzir o período de abstinência entre HSH para 3 meses. A medida entrou em vigor em 2018. O Canadá passou de adiamento permanente para adiamento de 5 anos em 2013 e reduziu posteriormente o período para 12 meses em 2016. Mas em maio de 2019, este adiamento caiu para 3 meses. A Dinamarca deve começar ainda neste ano uma política semelhante. Outros países, como Argentina, Chile, Peru, Uruguai, Portugal, Espanha e Itália, definem suas restrições com base no comportamento sexual, sem distinção de práticas específicas para sexo entre homens.
O CASO DA FRANÇA
Na França, antes de 2016 e desde 1983, devido aos riscos da aids, a exclusão de HSH como doadores de sangue era por toda a vida. Em julho de 2016, foi aberta a possibilidade de doação de sangue pelos HSH, desde que não tenham tido relações sexuais com outros homens nos últimos 12 meses. Com essa restrição, o objetivo das autoridades de saúde é limitar o risco de transmissão do HIV por meio de transfusão de sangue. Os HSH são, junto a pessoas nascidas na África Subsaariana, os mais afetados pela AIDS na França.
Quando entrou em vigor, a medida foi fortemente criticada por algumas associações, que solicitaram ao Conselho de Estado o cancelamento da restrição que a acompanha. Para pessoas heterossexuais, a doação de sangue é contraindicada no caso de novo parceiro ou múltiplos parceiros sexuais nos últimos 4 meses. Mas não havia restrições se nesse período as relações fossem com um único parceiro.
O cancelamento da restrição para os HSH foi negado pelo Conselho de Estado em 2017. Uma queixa de discriminação foi apresentada à Comissão Europeia por associações LGBT contra a França, em 2018
O cancelamento da restrição para os HSH foi negado pelo Conselho de Estado em 2017. Uma queixa de discriminação foi apresentada à Comissão Europeia por associações LGBT contra a França, em 2018.
Esta abertura não aumentou o risco de transmissão do vírus da AIDS por transfusão, de acordo com um estudo publicado em 2019 pela Agência de Saúde Pública da França, que defende um relaxamento das regras.
HIV não detectado em 5,2 milhões de doações de sangue
Um estudo da Agência de Saúde Pública da França, que cobriu quase 110.000 doadores de sangue, mostra que o risco de transmissão do HIV não mudou desde a abertura da doação de sangue para homossexuais.
Mesmo se não houver risco zero, ele permanece “extremamente baixo”, de acordo com a agência francesa. Durante o período 2015-2017, estimou-se que haveria uma doação positiva não revelada de HIV entre 5,2 milhões de doações de sangue.
Os resultados mostram que as contraindicações atuais para doação de sangue nem sempre são rigorosamente respeitadas. Entre os homens que participaram da pesquisa, um pequeno número (0,73%) reconheceu que não relatou ter feito sexo com homens nos 12 meses anteriores à doação. Essa proporção cai para 0,56% se examinados os 4 meses anteriores à doação.
Várias razões são mencionadas para justificar não se ter dito tudo antes da doação: 41% usam sistematicamente preservativo, 22% tiveram o mesmo parceiro por pelo menos 12 meses e 11% tiveram apenas um relacionamento com um homem nos últimos 12 meses antes da doação.
Em julho de 2019, o Ministério da Saúde francês anunciou um “primeiro passo” para o alinhamento das condições de doação de homossexuais com as de heterossexuais, prevista para 2022.
O período de abstinência de um ano que atualmente deve ser respeitado pelos homossexuais para poder doar sangue na França será reduzido a 4 meses a partir de 1 de fevereiro de 2020
O período de abstinência de um ano que atualmente deve ser respeitado pelos homossexuais para poder doar sangue na França será reduzido a 4 meses a partir de 1 de fevereiro de 2020. Esta é uma “evolução” e um “primeiro passo” para o alinhamento das condições de doação de sangue por homossexuais com aquelas dos heterossexuais, prevista para “até 2022”. Um alinhamento que, por respeito à segurança dos receptores, só poderá acontecer após uma avaliação de risco feita “com toda transparência”, garantiu o Ministério.
Desde julho de 2016, HSH podem administrar seu plasma de acordo com os mesmos critérios de outros doadores. O plasma usado no caso de hemorragia também é usado para fabricar medicamentos como imunoglobulinas, fatores de coagulação e outros produtos para vítimas de queimaduras e pacientes em terapia intensiva.
“ELEMENTOS CIENTÍFICOS, OBJETIVOS E INDEPENDENTES”
A decisão da ministra da Saúde, Agnès Buzyn, de reduzir de 12 para 4 meses o tempo permitido para doar sangue após a última relação sexual entre homens, é no caso da avaliação regular dos critérios de seleção de doadores e “confia em elementos científicos, objetivos e independentes”.
Além disso, um estudo chamado Complidon, com 110.000 doadores, mostrou que os critérios de acesso à doação de sangue foram amplamente respeitados, mas em situações raras não foi possível fazê-lo devido a dificuldades de entendimento, observou o Ministério.
Um estudo chamado Complidon, com 110.000 doadores, mostrou que os critérios de acesso à doação de sangue foram amplamente respeitados, mas em situações raras não foi possível fazê-lo devido a dificuldades de entendimento
Duas propostas de evolução em relação aos critérios de 2016 estavam em discussão, a saber, a abertura para homens que não fizeram sexo com homens nos últimos 4 meses antes da doação ou, a abertura para a doação daqueles HSH que tiveram apenas um parceiro nos últimos 4 meses antes da doação.
A análise de risco realizada pela Agência Saúde Pública da França mostrou que “o primeiro cenário com 4 meses de abstinência não implicava modificação de risco, ao contrário do segundo, com o qual o risco teórico de infecção (N.do E.: grifo nosso) foi multiplicado por dois”, segundo assessores da ministra. Todos os dados e análises de risco dessas duas propostas foram compartilhados com representantes de doadores, receptores, e ONG como AIDES e Homodonneurs.
E NOS EUA?
Nos Estados Unidos, em 1983 a doação de sangue por HSH começou como uma proibição vitalícia. No entanto, com os avanços da prevenção e detecção do HIV, tornou-se questionável se uma proibição vitalícia de doação de sangue por HSH seria constitucional. Em 2015, a Agência de Alimentos e Medicamentos (FDA, na sigla em inglês) cedeu a ativistas e críticos, substituindo a proibição vitalícia por um período de adiamento de 12 meses. Enquanto alguns pensam que a política é um grande passo no sentido de acabar com a política discriminatória contra a comunidade gay, outros acreditam que o período de 12 meses está longe de alinhar-se à moderna tecnologia de rastreamento do HIV e perpetua estigmas sobre todos os homens gays e bissexuais.
Segundo o Instituto O’Neill para Saúde Nacional e Global, dos EUA, o período de adiamento deve ser baseado nos comportamentos individuais, em vez de orientação sexual e gênero
Um período de adiamento ainda é necessário, dadas as janelas da detecção do HIV. Mas, segundo o Instituto O’Neill para Saúde Nacional e Global, dos EUA, o período de adiamento deve ser baseado nos comportamentos individuais, em vez de orientação sexual e gênero, pelos seguintes motivos:
Primeiro, o adiamento geral sobre HSH é discriminatório. Nem todos os HSH correm maior risco de infecção pelo HIV. Os principais fatores de risco para HSH são o sexo anal sem proteção e o compartilhamento de seringas, em que nem todos os HSH se envolvem. Além disso, essas atividades também são praticadas por homens e mulheres heterossexuais. A política endossa perigosamente os estigmas contra homens gays e bissexuais, fechando os olhos aos riscos potenciais de homens e mulheres heterossexuais.
Segundo, o período de adiamento de 12 meses está cientificamente desatualizado. Os métodos de prevenção do HIV e os testes de triagem deram grandes saltos ao longo dos anos. Com as profilaxias pré e pós-exposição à infecção pelo HIV – PrEP e PEP, respectivamente –, o risco de transmissão do vírus através das relações sexuais é significativamente reduzido. Estudos demonstraram que a PrEP reduz efetivamente o risco de contrair o HIV em 99%, aproximadamente, quando tomada de forma consistente. Além disso, todo o sangue doado será enviado ao laboratório para rastreamento de doenças infecciosas, incluindo o HIV. Se alguma doença for detectada, o sangue doado será descartado. O método atual usado para a triagem do HIV é o teste de ácido nucleico (NAT), que fecha significativamente o prazo entre a infecção e a detecção para 7 a 10 dias, tornando o adiamento de 12 meses desnecessariamente longo. [N. do T.: segundo o PE-DST/AIDS-SP, o NAT é utilizado no Brasil para esta finalidade.]
O método atual usado para a triagem do HIV é o teste de ácido nucleico (NAT), que fecha significativamente o prazo entre a infecção e a detecção para 7 a 10 dias, tornando o adiamento de 12 meses desnecessariamente longo.
Terceiro, o adiamento geral para os HSH agrava a escassez de suprimento de sangue nos EUA. De acordo com a Cruz Vermelha norte-americana, que fornece aproximadamente 40% do suprimento de sangue do país, apenas cerca de 3% das pessoas com idade elegível doam sangue anualmente. Um estudo realizado em 2010 estimou que 130.150 homens adicionais seriam elegíveis para doar sangue, aumentando o suprimento anual total de sangue dos EUA de 0,6% para 1,4%. Embora ainda seja questionável se o período de restrição por 12 meses aumenta a segurança do pool nacional de sangue, com certeza não ajuda a garantir o suprimento adequado de sangue.
O atual adiamento de 12 meses nos EUA é desnecessariamente exagerado em termos de riscos reais e da tecnologia de teste de HIV. Além disso, opera às custas de homens gays e bissexuais e do suprimento nacional de sangue. Portanto, é necessária uma medida mais personalizada para a triagem de pré-doação com base no comportamento dos indivíduos, em vez do adiamento geral dos HSH.
PUBLICAÇÕES RECENTES
Segundo Zhou e Berkman (2018), há uma contradição peculiar no fato de que por um lado políticas de prevenção do HIV recomendem aos HSH a prática de sexo seguro em relacionamentos consensuais e monogâmicos, e ao mesmo tempo considerem os HSH que seguirem esta recomendação, como de alto risco para a transmissão do HIV, para a doação de sangue. Esses autores acreditam que o diferimento é um viés baseado na ideologia de que todo sexo masculino-masculino é arriscado, em vez de focar nos verdadeiros fatores de risco para a transmissão.
“Um adiamento de 12 meses para homens gay e bissexuais excede o necessário para manter a segurança do sangue”
“Um adiamento de 12 meses para homens gay e bissexuais excede o necessário para manter a segurança do sangue”, concluiu no final de 2017 uma equipe de pesquisadores australianos na revista científica Transfusion depois de analisar a literatura científica disponível. Para os autores, “essa disparidade potencialmente causa danos sociais sem nenhum benefício adicional à saúde pública” e “reduzir o período de transição para 3 meses não aumentará os riscos à saúde dos destinatários e poderá ter o benefício social de aumentar a inclusão”.
“Acreditamos que fazer perguntas sobre o sexo do parceiro de uma pessoa é uma avaliação de risco menos precisa e baseada em julgamento do que um questionário que faz perguntas sobre, por exemplo, a frequência das trocas de parceiros, uso de preservativos e triagem para o HIV”, escreveram especialistas no New England Journal of Medicine. Segundo eles, o progresso no teste de amostras de HIV alcançou uma “sensibilidade quase perfeita”, a ponto de a prevalência do vírus em determinadas populações “ter um efeito mínimo ou nulo no valor preditivo de um resultado negativo do teste de HIV”. “Portanto, o risco de infecção pelo HIV no sangue provém principalmente do risco de doação durante as primeiras semanas após a infecção”, concluem, “independentemente das práticas sexuais dos doadores”.
CONCLUSÃO
Há países que revisam suas restrições à doação baseadas no sexo do parceiro do doador. E há outros que somente restringem em termos de comportamentos, independentemente do sexo dos parceiros do doador. A sensibilidade dos exames atuais de detecção do HIV utilizados no Brasil, bem maior do que aquelas dos exames em 2002, também indica que esta revisão é necessária no País. Se por um lado a doação de sangue não se configura como um direito, por outro lado a persistência de uma norma de base técnica desatualizada torna discriminatória uma política que em outro tempo talvez não fosse.
REFERÊNCIAS:
• Brasil, Ministério da Saúde. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Manual Técnico para Investigação da Transmissão de Doenças pelo Sangue. Brasília, 2005. pg 41-46.[http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/manual_tecnico_transmissao_doencas_sangue.pdf] acessado 01/02/2017.
• Portaria Nº 158, de 04 de fevereiro de 2016 (http://portalsaude.saude.gov.br/images/pdf/2016/abril/12/PORTARIA-GM-MS-N158-2016.pdf).
• Berkman RT, Zhou L. Ban the Ban: a scientific and cultural analysis of the FDA’s ban on blood donations from men who have sex with men. Columb Med Rev. 2018;1(1):2-9.
• Transfusion (volume 58,3; March 2018, pgs. 816-822).
• New England Journal of Medicine April 13, 2017 N Engl J Med 2017; 376:1486-1487 DOI: 10.1056/NEJMc1701828.