Jorge Beloqui e Mário Scheffer
[30 de março de 2003]
ARTIGO - OPINIÃO
Está aceso um debate que merece a atenção de todos
aqueles que atuam na luta contra a Aids. As ações judiciais
para garantir às pessoas vivendo com HIV e Aids medicamentos
que ainda não estão disponíveis na rede pública
de saúde foi tema, no dia 31 de março, de artigo do jornalista
Josias de Souza, colunista da Folha de S. Paulo. Em seguida, no dia
2 de abril, o jornal publicou resposta do Dr. Paulo Teixeira, da Coordenação
Nacional de DST/Aids.
Não se trata aqui de esgotar o comentário sobre os dois
textos, ricos em afirmações que mereciam ser aprofundadas,
mas de comentar algumas das questões levantadas.
No artigo " Saúde pública vira doi-codi pós-moderno"
Josias de Souza, antes de criticar um aspecto da política de
medicamentos anti-Aids, denuncia do que é capaz o " jogo
de empurra" entre as três esferas de governo. Mais preocupados
em dizer " não é comigo", e menos interessados
na saúde dos pacientes, muitas vezes o governo federal, os estados
e municípios, descumprem a lei, "batem cabeça"
e tratam como tríplice o Sistema Único de Saúde.
Em 2002, durante a epidemia da dengue no Rio de Janeiro e em outras
cidades, chegou a ser caricata a discussão sobre a "jurisdição"
do mosquito, se era federal, estadual ou municipal. Outro exemplo vem
do próprio combate à Aids: a responsabilidade no fornecimento
de medicamentos para doenças oportunistas, muitas vezes não
sai do campo da "pactuação", jargão da
moda nas instâncias do SUS, que na prática evitaria o "empurra-empurra".
O problema é que muitos municípios não cumprem
o pacto, os estados e a União fazem vistas grossas e o paciente
é quem sai prejudicado.
As decisões da Justiça para garantia de medicamentos
fora do consenso terapêutico realmente não podem ser validadas
para todos os pacientes. Mas não podemos admitir que as ações
sejam genericamente desqualificadas e taxadas de irresponsáveis,
como pretende a Coordenação Nacional de DST/Aids.
Foram estas ações judiciais individuais, movidas pelas
ONGs em nome dos pacientes, que garantiram ou pelo menos "apressaram"
a chegada de diversos medicamentos. São Paulo foi o primeiro
estado a introduzir o coquetel na rede pública, antes mesmo do
governo federal. Foram decisivas para o início dessa política
cerca de 2500 ações impetradas no estado, apenas em julho
e agosto de 1996.
Infelizmente, a falência terapêutica de parte dos pacientes
e a velocidade das novas descobertas que poderiam beneficiá-los
são mais rápidas que a convocação periódica
do Consenso Terapêutico do Ministério da Saúde.
O medicamento Kaletra é o exemplo mais recente: antes de estar
disponível no SUS foi objeto de ações judiciais
que se multiplicaram no país. Possivelmente, será o mesmo
caminho dos novos anti-retrovirais.
Jamais abriremos mão de recorrer ao Ministério Público
e à Justiça. As ações judiciais são
instrumentos de ativismo e de exercício de cidadania; ao lado
da garantia de legislações específicas; dos espaços
de controle social; da defesa da produção de genéricos
e da quebra das patentes; das manifestações públicas
e outras formas legítimas de pressão.
O acesso gratuito e universal ao coquetel anti-Aids, é sempre
bom que se diga, não é uma dádiva do governo. É
uma conquista árdua do movimento organizado de luta contra a
Aids.
Vale também esclarecer o óbvio. A origem de toda ação
por medicamento novo é uma prescrição médica,
que não é feita apenas por desinformados, como faz divulgar
a Coordenação Nacional de DST/Aids. A responsabilidade
pela receita é exclusiva do médico , geralmente infectologista,
que tem autonomia profissional para tanto.
Josias de Souza escreveu : " Paulo Roberto Teixeira, chefe do
programa de Aids desde FHC, diz que a demanda por novas medicações
tornou-se problema grave. Em muitos casos, reconhece, são vitais.
A única forma de obtê-los é mesmo a via judicial.
'Seguimos a política de garantir os direitos dos pacientes.'
Por que, então, os recursos protelatórios? 'Na maioria
dos casos a prescrição imposta por sentença não
é a mais adequada. Há lobby dos laboratórios.'
"
Ora, existem instâncias, como os Conselhos Regionais de Medicina,
que podem ser acionados pelo Ministério da Saúde, diante
de tão séria constatação, uma vez que a
ligação escusa de médicos com a indústria
farmacêutica é incompatível com a prática
profissional e a ética.
Dr. Paulo Teixeira, por sua vez, escreveu: "ao recorrer de ações
civis públicas que querem forçar a Coordenação
Nacional de DST/Aids a disponibilizar a todos os pacientes com Aids
esse novo medicamento, o Ministério da Saúde não
está pensando nos gastos que isso acarretaria. Está protegendo
a vida desses pacientes e trazendo a discussão do problema de
volta para o campo médico".
Contudo, conforme relata Josias, o presidente do TRF-4 revogou a sentença
que impusera o fornecimento dos remédios com base em outros argumentos.
Aceitou-se a tese de que a decisão imporia transtornos econômicos
incontornáveis ao governo.
Afinal, o recurso movido pelo governo federal se deu por causa da saúde
dos pacientes ou por causa dos supostos "transtornos econômicos"?
Outro fato é que o Ministério da Saúde reivindica
só para si a proteção da vida dos pacientes, e
sugere que o médico que receita tratamento fora do consenso está
prejudicando seu paciente. Também neste caso estamos diante de
infração ética imperdoável, que deveria
gerar firme atitude por parte de quem constatou o problema.
Quando o Dr. Paulo Teixeira afirma que na maioria das sentenças
a prescrição não é a mais adequada, ceertamente
quer dizer que, em algumas, mesmo em menor proporção,
a receita está correta. Dessas, supõe-se, o governo não
deveria recorrer. Aqui cabe um esclarecimento: o governo recorre de
todas as sentenças ou somente daquelas que acha inadequadas?
Nenhuma ação ou argumento, mesmo que implícito,
baseado em prejuízo econômico aos cofres públicos,
encontra sustentação moral na atual conjuntura. O governo
federal acaba de promover cortes na Saúde e pode não cumprir
a parte que lhe cabe no cumprimento da Emenda Constitucional 29, conforme
tem demonstado os relatórios financeiros do Conselho Nacional
de Saúde. Ao rasgar a Constituição isso , sim,
caracteriza "transtorno econômico incontornável à
saúde".
Esperamos que o debate público seja capaz de gerar uma solução
urgente. O primeiro passo é que as paixões, a vaidade,
a arrogância e a prepotência sejam deixadas de lado por
todos os envolvidos: governo, mídia, justiça e sociedade
civil. Afinal, essa discussão diz respeito à saúde
e à vida de algumas milhares de pessoas que vivem com HIV e Aids.
Jorge Beloqui é membro do Grupo de Incentivo á Vida (GIV)
e Mário Scheffer é membro do Grupo Pela Vidda/SP.