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OS ANTI-RETROVIRAIS E AS PATENTES

01/07/2004 - Jornal da Paulista

ONGs querem alterações na lei brasileira sobre patentes

Entidades apontam risco de encarecer o atendimento a portadores de HIV, mas a eventual mudança também pode afugentar o investimento privado na pesquisa de novos medicamentos

A expectativa de que o Programa Nacional de DST e Aids – que distribui gratuitamente remédios contra o HIV – seja prejudicado nos próximos anos acendeu uma polêmica sobre mudar ou não a lei brasileira de patentes. Organizações-não governamentais da área de saúde alertam para a iminente chegada de 14 novos medicamentos ao mercado. Quando eles forem incluídos no coquetel distribuído pelo Ministério da Saúde, o custo do programa de DST e Aids aumentará, e muito. Motivo: são drogas protegidas por patentes, mecanismo legal que garante aos inventores de um produto o direito de monopólio da fabricação e venda por 20 anos.
Já a iniciativa privada e a UNIFESP vêem com apreensão qualquer medida que possa desestimular o sistema de patentes. Temem que nessa disputa a pesquisa científica leve a pior. “Os laboratórios não investirão em pesquisa se não vislumbrarem nenhuma forma de lucro”, avalia a coordenadora do Núcleo de Propriedade Intelectual (Nupi) da UNIFESP, advogada Cristina Assimakopoulos.
O seminário “10 anos de Trips: Em busca da Democratização do Acesso à Saúde”, que ocorreu recentemente em São Paulo, foi o palco da discussão sobre a Lei 9279/96, que regula as patentes no país. O evento, foi promovido pela ONG Médicos Sem Fronteiras, Faculdade de Direito da USP e Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids, entre outras entidades.

AUMENTO DE CUSTO
Hoje o governo gasta R$ 600 milhões para distribuir a 140 mil brasileiros soropositivos os 15 remédios anti-retrovirais – apenas três medicamentos consomem 66% do valor. Esse custo será multiplicado com a inclusão das novas drogas. A principal razão dessas preocupações, apontada pelo deputado federal Roberto Gouveia (PT/SP), é o fato de, em 1996, o Brasil ter aprovado uma lei de patentes mais rigorosa e restritiva no acesso a medicamentos que o tratado internacional que trata do assunto. O Trips (Acordo sobre Aspectos de Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio) estabelece padrões mínimos para a proteção de patentes para todos os países membros da Organização Mundial do Comércio.
A opção adotada pelo Brasil naquela ocasião pode ter sido precipitada. Segundo o acordo Trips, países em desenvolvimento teriam até 2006 para se adequar à legislação internacional e reconhecer patentes. A Índia, por exemplo, aproveitou esse período de transição e se tornou um dos grandes produtores de genéricos, parte deles exportado para o próprio Brasil.
De acordo com documento da organização Médicos Sem Fronteiras, o preço cobrado pelos detentores de patente para um coquetel de medicamento anti-HIV continua em torno de US$ 10 mil por paciente nos mercados ricos. Nos locais onde não há patentes impedindo sua produção, empresas de genéricos colocam esses medicamentos no mercado por menos de US$ 300.
Para tentar mudar esse quadro, o deputado Roberto Gouveia apresentou um projeto para modificar a lei de patentes. O texto, em tramitação na Câmara, sugere que medicamentos para Aids sejam considerados matéria não-patenteável. Isso permitiria aos laboratórios nacionais produzir genéricos de novas drogas.
Uma outra proposta da Faculdade de Direito da USP e do Instituto de Direito do Comércio Internacional e Desenvolvimento (Idcid) , sugere que o segundo uso ou nova formulação de uma substância já conhecida não sejam mais patenteáveis, como ocorre atualmente. “O novo uso não representa nenhum passo inventivo e dificulta a compra de medicamentos que cairiam em domínio público”, afirma Maristela Basso, professora de Direito da USP e uma das autoras da proposta.
Já a coordenadora do Nupi/UNIFESP Cristina Assimakopoulos acredita que mudanças na legislação sobre patentes são inviáveis se ficarem restritas ao Brasil. Como produtora de conhecimento científico, a universidade tenta conciliar a lógica de mercado com a visão acadêmica e social. “Queremos patentear nossas descobertas e dar uso social à pesquisa”, diz. Cristina cita o exemplo de um remédio para tratar pedra nos rins que está sendo desenvolvido no Departamento de Nefrologia e cuja patente de novo uso deve ser compartilhada com um laboratório. A UNIFESP incluiu no contrato com a empresa farmacêutica que irá produzir a droga uma cláusula prevendo a doação do produto (a quantidade não foi definida) para o Hospital São Paulo. “Procuramos laboratórios idôneos para impedir que outros vendam remédios abusivos e façam mau uso das patentes”, conclui.

Entenda o Acordo Trips

O Acordo sobre Aspectos de Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (Trips) foi firmado em 1994 e estabelece os padrões mínimos para a proteção de patentes que todos os membros da OMC devem obedecer. Diferentemente do que ocorria antes do acordo, os países não podem mais rejeitar a concessão de patentes em campos específicos de tecnologia, como o setor farmacêutico.
No setor farmacêutico, uma invenção pode se referir a um produto (uma molécula específica), um processo (processo de manufatura da molécula), uma indicação médica (efeito desta molécula no corpo humano) ou uma combinação de produtos (combinação de dose fixa de duas moléculas). Por essa razão, um único medicamento pode estar protegido por várias patentes distintas, cada uma relacionada a uma invenção diferente. As formulações (incluindo pós, comprimidos e cápsulas) também podem ser patenteadas.
Fica a critério da legislação de cada estado membro da OMC a implementação das regras gerais contidas no Trips. São essas regras que formam a base para a concessão e aplicação de patentes. O acordo estabelece que “as patentes devem estar disponíveis para quaisquer invenções desde que sejam novas, envolvam um passo inventivo e sejam capazes de aplicação industrial”. Cabe aos países membros da OMC definir quais invenções se enquadram nesses critérios.