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A TRAGÉDIA CHINESA
01/04/2004 - Revista Veja
Há lugares em que até 80%da população está contaminada pelo HIV
Localizada ao sul de Pequim, a província de Henan é famosa por ser o berço da civilização chinesa. Ali, na planície do Rio Amarelo, guarda-se um inestimável tesouro arqueológico as relíquias da dinastia Shang, que reinou no país entre 1766 e 1122 a.C. Poucos sabem, no entanto, que Henan abriga um "perigo titânico", como define a ONU. Com 110 milhões de pessoas, a província mais populosa do país é o epicentro da epidemia de aids na China e um dos mais preocupantes focos do vírus HIV em todo o mundo. "A catástrofe é iminente e pode resultar em uma devastação social, um sofrimento humano inimaginável e grandes perdas econômicas", lê-se num relatório da Unaids, o braço da ONU no combate à doença. Predominantemente rural, a população de Henan distribui-se por vilarejos de 700 a 4.000 moradores. O acesso aos cuidados básicos de saúde é muito precário. Muitos agricultores nunca ouviram falar em aids. Para eles, seus parentes e amigos morrem da "doença estranha". A falta de informações sobre prevenção e tratamento é o cenário ideal para a disseminação do HIV. Em várias cidades, 80% de seus habitantes estão infectados. Localidades como Houyang, Donghu e Wenlou, entre outras, são chamadas "vilas da aids". Nem na África, continente com o maior número de doentes, se encontram lugares com índices de contaminação tão elevados.
A tragédia em Henan era anunciada. A responsabilidade pela catástrofe tanto lá como em toda a China cabe ao governo de Pequim. Numa ditadura onde tudo é segredo de Estado, durante muito tempo a aids se espalhou sem encontrar nenhuma barreira. Para se ter uma idéia, apenas 1% dos infectados chineses sabe que tem o HIV. O ritmo de contágio pelo vírus em território chinês é assustador. De 1995 para cá, o número de contaminados cresce 40% a cada ano. No resto do mundo, a média de novos casos registrados anualmente é de 12%. O descalabro vai além em Henan. O principal vetor de contaminação na província foi a coleta de sangue coordenada pelo governo. No fim dos anos 80 e ao longo de toda a primeira metade da década de 90, os agricultores de Henan foram incentivados a vender seu sangue por quantias que variavam de 5 a 20 dólares. O objetivo da coleta era o uso do plasma sanguíneo para a fabricação de medicamentos. Em qualquer lugar decente, a coleta é feita com seringas descartáveis, e o plasma é separado dos outros componentes sanguíneos numa máquina que devolve o resto do sangue ao doador. Não há risco nenhum.
Em Henan, a coleta era feita com seringas contaminadas, o sangue de várias pessoas misturado num mesmo recipiente e só então devolvido aos doadores. Nada menos do que 75% dos habitantes de Henan que comercializaram o próprio sangue contraíram o HIV o que representa cerca de 700.000 pessoas. Muitos agricultores fizeram da venda de sangue um meio de sobrevivência. Há relatos de homens e mulheres que chegaram a doar sangue treze vezes num único mês os braços marcados pelas picadas das agulhas infectadas. Por causa disso, famílias inteiras foram dizimadas. Em algumas localidades, falta gente para enterrar os mortos. É incalculável o número de crianças órfãs da aids. Os orfanatos estão cheios de meninos e meninas portadores do HIV.
Outros quatro países preocupam as autoridades em saúde pública Rússia, Índia, Nigéria e Etiópia. Nenhum deles, porém, chama tanta atenção quanto a China. Os chineses representam um quinto da população mundial, e os dados fornecidos pelo governo não são confiáveis. Pelas estatísticas oficiais, em toda a China há "no máximo" 1 milhão de infectados. Segundo os cálculos dos especialistas, esse número pode ser de cinco a dez vezes maior. Nos rituais praticados durante a dinastia Shang era costume oferecer sangue humano aos deuses. Estima-se que, nos últimos 250 anos de seu reinado, os Shang sacrificaram mais de 13.000 pessoas. Na Henan de hoje, o sacrifício do sangue continua.