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A AIDS NO CONTINENTE AFRICANO
24/12/2003 - Thr New York Times
Uma geração de órfãos da Aids espera pela morte na África
No dia em julho que ele e sua esposa morreram de Aids, Samossoni Nhambo, 36, debruçou-se dna cama do hospital, a poucos quilômetros de sua aldeia de terra batida e cabanas, e fez ao padre uma pergunta desesperada: quem tomaria conta de seus filhos? Cinco meses depois, a resposta é evidente: ninguém.
Fátima, de cinco anos, morreu no início de dezembro, talvez de Aids, ou de desnutrição. João, de cinco anos, infestado de vermes que reduziram os dedos de seus pés a bolinhas vermelhas, só consegue andar nos calcanhares. Seus irmãos de 7 e 9 anos, Ricardo e Samsoan, estão cobertos de feridas de sarna, que afligem toda a família.
Maria, de 16 anos, que deixou a escola para cuidar de seus pais, ficou grávida de um homem que se recusa a dar o nome. No início de dezembro, deu a luz a um menino.
Isso faz do mais velho, José, um menino magro e pequeno de 17 anos que acaba de concluir a sétima série, o guardião. Em seu abrigo de pedras e paus, sem paredes, no lado ruim de uma aldeia pobre e com uma única cadeira como mobília, as crianças Nhambo arrastam-se de crise em crise.
"A vida é muito difícil", disse Jose. "Sem comida, sem roupas, sem lençóis. Temos que lutar."
E assim fazem milhões de outros como eles. O sul da África, cada vez mais, abriga crianças como os filhos de Samossoni Nhambo, roubados de sua infância pela Aids e vacilando diante das durezas da vida adulta.
O Fundo para as Crianças da ONU estima em novo relatório que 11 milhões de crianças com menos de 15 anos na África sub-saariana perderam ao menos um dos pais com Aids. Cerca de um terço dessas perderam ambos os pais. Em 2010, segundo a Unicef, a Aids terá tomado ao menos um dos pais de 15% das crianças da região -20 milhões no total.
As implicações sociais são enormes, dizem a Unicef e outras organizações humanitárias. As probabilidades dos órfãos deixarem a escola são muito maiores, assim como de sofrerem de desnutrição crônica, viverem nas ruas, serem explorados por adultos, voltarem-se para a prostituição e outras formas de crime e contaminarem-se com o HIV, vírus que causa a Aids.
As tradições sociais africanas ditam que os parentes devem cuidar deles. Mas a Aids já destruiu tantas famílias que os adultos sobreviventes estão começando a dar as costas aos seus jovens parentes. Os filhos de Nhambo têm uma tia e um avô ali perto, mas ao avô diz que nenhum dos dois tem como ajudá-los.
Até agora, o governo também não fez muito: dos 40 países sub-saarianos atingidos pela epidemia da Aids, apenas seis têm planos para lidar com os órfãos, segundo a Unicef. Os altos números de órfãos e o estado da burocracia africana dificultam tudo. O simples ato de registrar os órfãos para que não precisem pagar as tarifas escolares torna-se uma tarefa gigantesca. Em países como a Zâmbia, apenas 1 em cada 10 nascimentos é documentado.
Em Moçambique, que tem quase o dobro do tamanho da Califórnia e se estende pela costa do Oceano Índico, os órfãos não são um fenômeno novo. Em 1992, quando terminaram 17 anos de guerra civil, centenas de milhares de crianças estavam seu um ou dois pais.
Mas a Aids multiplicou muito suas fileiras. Agora, na nação de 18 milhões de habitantes, 16% das crianças -mais de 1,2 milhão- não têm um dos pais. Aids é responsável por um terço das mortes, de acordo com a Unicef.
Maria Cemedo, funcionária de uma agência que presta serviços a mulheres e crianças em Sofala, região onde vivem os Nhambo, disse que toda uma geração estava se perdendo. "Talvez nos tornemos uma sociedade de velhos e crianças", disse ela.
Sofala, no centro de Moçambique, foi particularmente atingida porque tem um porto e uma importante auto-estrada para o Zimbábue. A combinação de mulheres atingidas pela pobreza e caminhoneiros solitários espalha o vírus da Aids ao longo de todo o corredor. Hoje, um em cada quatro adultos na província está infectado.
Dos 46.000 órfãos registrados na província, poucos recebem ajuda do governo, disse Antonia Charre, diretora da agência. Menos de 5% recebem comida do Programa Mundial de Alimentos, disse ela.
"É uma situação chocante", disse ela. "Não dá para entender como algumas dessas crianças sobrevivem de um dia para o outro."
Uma solução possível são as casas comunitárias. No entanto, até agora, existem poucas aqui. O único orfanato do governo -de longe o maior da região- abriga apenas 78 meninos e meninas. O orfanato tem dois andares, é ventilado e próximo ao mar em Beira, a segunda maior cidade do país. Paula Salgado, sua enérgica coordenadora, disse que 16 crianças infectadas com o HIV foram hospedadas este ano no centro. Somente quatro estão vivas hoje.
Uma delas é Mavis, 5, que foi levada ao centro por funcionários do governo, no final de outubro. Ele pesava apenas 10 kg e sofria de tuberculose. Seus pais estavam mortos, aparentemente de Aids, e seu irmão de 15 anos estava mendigando comida entre os vizinhos, disse Salgado.
Apesar da instituição não ter recursos para comprar as drogas anti-retrovirais necessárias para prorrogar a vida de Mavis, sua saúde melhorou em suas seis semanas no orfanato. No entanto, ela ainda não sorri, disse Salgado. Durante a visita, ela se recusou a aceitar uma boneca de pano ou falar com um convidado que parou para abotoar seu vestido amarelo.
Tais histórias de separação e sofrimento parecem tão comuns quanto as mangueiras aqui. A 95 km de distância, na aldeia de Nhamatanda, Jorge Danielle, 15, disse que tinha cuidado de suas duas irmãs durante quatro anos, depois que sua mãe morreu de Aids.
Depois, recentemente, um casal que disse ser amigo dos seus pais mortos levou as meninas de 9 e 12 anos, disse ele. Hoje, ele mora sozinho em um barraco de 5 metros quadrados e sobrevive com doações de arroz e os centavos que ganha carregando pacotes no mercado local.
"Eles me disseram: 'Não podemos alimentar você também. Então, você precisa se cuidar sozinho'" , disse ele. "Estou muito triste porque elas estão longe de mim. Agora estou sempre sozinho."
Amador Ernesto Luis, voluntário do grupo Asvimo, financiado pela Unicef, disse temer que as duas meninas tenham sido levadas para serem exploradas com trabalho ou prostituição. No entanto, sem parentes para cuidar das crianças e na ausência de ajuda do governo, ele não pôde deter o casal, disse.
Os filhos de Nhambo permanecem juntos. Mesmo assim, há poucas coisas boas em suas vidas.
Sempre viveram no lado ruim de Cemento, longe da estrada e do único poço que serve 600 pessoas. Os Nhambo davam aos filhos arroz e batatas doce, que plantavam em um quintal minúsculo.
Nhambo nunca teve um emprego fixo. Sua esposa, Caterina Tole, segurava a família com seu trabalho e amor por seus filhos, disse Jose Missasse, pastor evangélico cristão que conhecia bem a família. "Ela tinha grande amor pelos filhos" disse ele. "Ela tinha muito cuidado. A casa era limpa, limpa, limpa -até o dia em que não pôde mais se mexer."
A família começou a desmoronar cinco anos atrás, quando Samossoni Nhambo deixou-a para viver com a mulher de um tio que morrera. Quando ele voltou, em 1999, disse Jose, ele e Maria, as crianças mais velhas, não ficaram felizes em vê-lo. Nem sua mãe, disse ele. "Eles quase nunca se falavam", disse. "Minha mãe cozinhava para nós, e meu pai tinha que fazer sua própria refeição."
Na cultura africana, as mulheres são obrigadas a satisfazer as necessidades sexuais dos maridos. Então, Fátima nasceu depois de um ano. Mais tarde, disse Missasse, ele reconheceu os sintomas de Aids nos pais e no neném.
Ele disse que tinha visto Caterina Tole um mês antes de sua morte. "Ela nunca perdoou seu marido", disse ele. "Ela disse: 'Vou morrer por causa dele e deixar meus filhos sozinhos'. Ela estava furiosa. E eu dizia para ela: 'deus talvez envie alguém para cuidar de seus filhos'. Mas isso não fazia ela parar de chorar."
Tole morreu em uma manhã de julho, deitada no chão de terra da cabana de seu vizinho. Missasse contou ao seu marido sobre sua morte, enquanto ele estava deitado em uma cama em uma clínica de janelas quebradas e corredores escuros que serve de hospital para a região.
Afligido de remorsos, Nhambo disse a Missasse: "Teria sido melhor se eu morresse antes." Seis horas depois, ele parou de respirar.
Os vizinhos construíram para as crianças o abrigo sem paredes que substituiu sua minúscula cabana de palha, que desmoronara. Eles usaram pedras, paus e ferro doado pela Asvimo. Mas ninguém se ofereceu para alimentar as crianças -nem a irmã de sua mãe, que mora com seus sete filhos a 50 passos de distância, nem seu avô viúvo, um frágil senhor esfarrapado de 70 anos.
As crianças comem uma refeição de mingau de milho por dia, junto com outras 70 crianças necessitadas, na igreja de Missasse, a meia hora a pé. Elas também recebem uma sacola de arroz de 50 kg por mês, do Programa Mundial de Alimentos. No verão, elas catam manga da árvore que cobre seu barraco.
Os meninos menores dividem um brinquedo -um carro de metal que montaram com pedaços de arame e latas de cerveja. Suas poucas roupas estão imundas. Missasse disse que não havia esperanças para os pés cobertos de moscas de João, porque as crianças não têm condições de comprar remédios nem de viver com mais higiene.
Jose disse que tinha planejado carregar Fátima 3 km a pé até o médico mais próximo. Mas no dia 10 de dezembro, acordou surpreso por não ter sido despertado, como de costume, por seu choro. Os vizinhos a enterraram em uma cova não marcada, entre seus pais.
Exatamente uma semana depois, Maria teve um menino, e a luta para alimentar outra boca começou.
Tradução: Deborah Weinberg