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O VATICANO E O HIV/AIDS

08/12/2003 - Folha de São Paulo

El Salvador luta contra a Aids; não conte ao papa

O papa João Paulo 2º se escandalizaria caso visitasse o hospital católico aqui, em Sonsonate, na região sudoeste de El Salvador.
O Vaticano está cada vez mais fora de contato com a realidade e exerce influência -reacionária e até mortífera, no mundo da Aids- sobre as políticas de saúde dos países em desenvolvimento. Aqui em El Salvador, os líderes da igreja ajudaram, em 1988, a proibir os abortos mesmo quando necessários para salvar a vida da mulher e, ainda pior, ajudaram a aprovar uma lei, que entrou em vigor em 2002, exigindo que as camisinhas portem alertas de que não protegem contra a Aids.
Em El Salvador, onde só 4% das mulheres usam contraceptivos na primeira vez que fazem sexo, essa lei significa mais gente morrendo de Aids. A realidade é que camisinhas não causam sexo, da mesma forma que guarda-chuvas não causam chuva.
Nos movimentos de base, a igreja salvadorenha é uma organização vibrante e flexível, enormemente diferente do distante e desinformado Vaticano. No hospital católico de Sonsonate, médicos informam mulheres sobre DIUs e pílulas anticoncepcionais e especialmente sobre o uso de camisinhas como proteção contra a Aids. O trabalho humanitário que realizam é um lembrete de que a Igreja Católica é muito maior que o Vaticano: os padres e freiras locais muitas vezes ignoram os trogloditas de Roma e discretamente fazem o que podem para salvar seus paroquianos da Aids.

"O bispo fica em El Salvador, nunca vem aqui", explica a doutora Martha Alica de Regalada. "Por isso, nunca temos problemas."

O Vaticano vem-se opondo consistentemente ao uso de camisinhas e à educação quanto ao sexo seguro, chegando a alegar, falsamente, que camisinhas não protegem contra a Aids. Essa atitude se assemelha à da Igreja sob o pontificado de Urbano 8º, que decretou a prisão domiciliar de Galileu, mas o presente caso terá resultados muito mais mortíferos.

Mas eu tiro meu chapéu para a Igreja Católica em um sentido mais amplo, pois se esforça nos "barrios" da América Latina e nos cortiços e favelas da África e da Ásia. A Catholic Relief Services, uma das mais vigorosas organizações assistenciais em operação no Terceiro Mundo, é exemplo de humanitarismo dos mais nobres.

Nas bases, os padres aplicam a doutrina católica com uma flexibilidade que deve enfurecer o papa. Em Chucita, uma aldeia desesperadamente pobre nas colinas salvadorenhas, onde os camponeses vivem em barracos sem água ou eletricidade, um professor explica como seus alunos de quinta série aprendem a lidar com a Aids.

"Uma assistente social mostra como colocar uma camisinha usando uma banana", conta o professor, Eduardo Antonio Ascensio Mata. Os padres, afirma, não têm objeções.

Na remota cidade de Coatepeque, na Guatemala, freiras dirigem uma clínica e um programa de prevenção de Aids de primeira classe, salvando vidas em larga escala. Trabalham com prostitutas e estudantes e explicam de que maneira camisinhas podem ser usadas como proteção contra a Aids.

Mas e os ensinamentos do Vaticano?

"Certamente Deus não deseja que matemos uns aos outros", explica Marlene Condon, que trabalha com pacientes de Aids. "É preciso fazer alguma coisa."

Em outras áreas de Coatepeque, alguns padres conduzem reuniões onde jovens, preparando-se para a crisma, recebem informações sobre a Aids e camisinhas.

O Vaticano indicou bispos linha dura para eviscerar a teologia da libertação e colocar as paróquias na linha. Mas, ainda assim, as conferências de bispos da França e da Alemanha instaram que o uso de camisinhas fosse permitido para combater a Aids, e o bispo Kevin Dowling, da África do Sul, está pressionando vigorosamente para que a igreja mude sua política e ajude a salvar vidas.

Ainda neste mês, o Catholics for a Free Choice e outras 20 organizações católicas conclamaram os bispos a aceitar o uso de camisinhas como forma de combate à Aids.

A ironia é que nenhuma outra organização faz tanto para ajudar as vítimas da Aids e seus órfãos quanto a Igreja Católica. Cerca de 25% das operações de assistência à Aids no mundo provêm de grupos ligados à igreja. Mas o Vaticano se opõe cegamente ao uso de camisinhas mesmo no casamento, quando o marido ou a mulher estiverem infectados com o HIV. Um membro do Parlamento do Quênia classificou a igreja como "o maior obstáculo na luta contra o HIV/Aids".
A esperança é que o Vaticano aprenda com os padres e freiras que estão nas trincheiras e combatem a doença tão heroicamente. Em Coatepeque, conversei com o padre Mario Adolfo Domingues, que suspirou ao ser interrogado sobre a teologia da camisinha.
"Não recomendamos o uso de camisinhas, mas não nos opomos a ele, porque previne a Aids", disse, parecendo nervoso ao me ver anotando suas palavras. "Não existe contradição entre o cristianismo e um pedaço de borracha."