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PROCURANDO QUALIDADE DE VIDA
01/12/2003 - Folha de São Paulo
Soropositivo vai à academia para combater danos do HIV
Com exercícios, pacientes revertem deslocamentos de gordura pelo corpo
Antes, os pacientes de Aids queriam viver. Agora querem mais: estão se organizando e "malhando" para recuperar os corpos que tinham antes da doença. Hoje, nas manifestações que marcam o Dia Mundial de Luta contra a Aids, milhares deles estarão exibindo as formas e a energia que costumavam mostrar antes de caírem vítimas da doença.
Para recuperar a forma dos corpos deformados pelos remédios e pelo HIV, vários serviços e ONGs montaram "academias" experimentais onde professores de educação física ensinam exercícios especialmente para portadores do vírus ou da doença.
O objetivo é fazer com que a gordura que migrou para a barriga, o peito e a corcova volte em forma de músculos para os braços e a barriga. Fonoaudiólogos estão tentando, com exercícios faciais, fortalecer os músculos dos rostos que ficaram murchos.
Pode parecer apenas vaidade. Não é. A deformação do organismo, efeito colateral dos remédios ou do próprio HIV, baixa a auto-estima, isola-os do ambiente social e leva muitos deles a tentar abandonar o tratamento.
O principal efeito colateral do coquetel é a lipodistrofia -o deslocamento de gorduras pelo corpo. "Antes, a cara da Aids era um emagrecimento profundo de todo o corpo, que marcava os casos graves e terminais. Hoje, a cara da Aids é identificada pela face magra, o rosto murcho, a barriga grande e os braços finos", diz o infectologista José Valdez Ramalho Madruga, do Centro de Referência e Tratamento (CRT-Aids) da Secretaria de Estado da Saúde. O CRT é um dos que oferecem a "academia" para pacientes.
"Antes, ninguém sabia se o HIV corria no meu sangue. Hoje todo mundo nota que não tenho mais bumbum, que minhas pernas afinaram e que minha barriga cresceu", diz Fausto, 40, fisioterapeuta, que está voltando a atender clientes. Fausto, que soube estar com o vírus há 11 anos, começou a frequentar a "academia" há quatro meses. Diz que já perdeu peso, se sente mais confiante e seu corpo está voltando ao que era antes.
Fausto é um dos 13 "malhadores" presentes no final da última quarta-feira na "academia" instalada no Ambulatório de Especialidades da prefeitura, no Jabaquara (zona sul). Ele faz parte do projeto "Corpo e Mente", cujas primeiras turmas começaram em 2002, com financiamento da Unesco e do Ministério da Saúde, em parceria com as ONGs Grupo de Incentivo à Vida (GIV) e Lutando Pela Vida, de Diadema (Grande SP). No total, são 120 "malhadores", 60 em Diadema e 60 no Jabaquara.
Parcerias para os anos seguintes já estão sendo renovadas e muitas ONGs do interior e de outros Estados estão procurando o projeto "para aprender a fazer a mesma coisa", diz Hugo Hagstrom, 43, técnico em contabilidade, portador do HIV e um dos coordenadores do projeto "Corpo e Mente". Foi a professora de educação física Ana Lúcia Câmara Garcia, junto com Hagstrom, quem percebeu as queixas dos pacientes e passou a desenhar um projeto que acabou sendo aprovado.
No Brasil inteiro, são cerca de 140 mil pacientes que recebem o coquetel. Entre 40% e 80% deles estariam sofrendo as consequências do uso do medicamento. Uma estimativa vaga, que só agora começa a ser estudada numa pesquisa envolvendo serviços de São Paulo e de outras capitais.
Na sala simples do ambulatório Ceci, na última quarta-feira, o entusiasmo dos "malhadores" lembrava reportagem que a Folha publicou há 11 anos, na contracorrente dos que achavam que não havia mais esperanças para as vítimas da epidemia- na época sem medicação e sem expectativas. Um salão cedido pelo CRT-Aids era usado para "exercícios de expressão corporal".
Muitos dos que participaram daquela iniciativa pela sobrevivência estão hoje nas "academias" especiais e comemorando uma melhor qualidade de vida.
Já conseguem substituir as gorduras localizadas por músculos, mas perda de gordura da face não tem solução simples. "O exercício facial pode reforçar os músculos do rosto, mas nenhum exercício pode recuperar a gordura perdida", diz Marina Stagni, fonoaudióloga do ambulatório Ceci.
Stagni diz que especialistas têm empregado em sulcos mais profundos da face uma técnica de preenchimento com uma substância específica: o metacrilato, injetado como se fosse um silicone. A aplicação é simples, mas a mão de obra e o custo do material podem chegar a R$ 3.000.
Na última conferência estadual de saúde, há uma semana, os participantes conseguiram aprovar uma moção que obrigaria o Estado a bancar esses cuidados. "É um direito do paciente se sentir melhor com seu corpo, e o preço pode ser muito reduzido", diz Eduardo Barbosa, presidente do Fórum de ONGs de São Paulo.