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A AIDS NOS ESTADOS UNIDOS

24/11/2003 - The New York Times

Uma visão de especialistas de saúde

Com o avanço do tratamento médico do HIV nos últimos dez anos, o número de relações sexuais de risco aumentou e os esforços para evitar a infecção deixaram de progredir.

E, quando se trata de ser infectado pelo HIV, a verdade ainda continua envolta em mistério. Atualmente, muitos especialistas em saúde pública dizem que o fato de indivíduos infectados não revelarem a sua condição aos parceiros, intencionalmente ou não, é um fator significativo, mas pouco divulgado, para a constante disseminação do vírus nos Estados Unidos.

O Centro para o Controle e Prevenção de Doenças calcula que até 33% dos 900 mil norte-americanos infectados com o vírus podem não saber que estão doentes.

Robert Klitzman, psiquiatra, e Robald Bayer, especialista em ética, ambos professores da Universidade Colúmbia, exploram os pontos de vista e práticas relativos ao fato de os indivíduos divulgarem ou não que são portadores do HIV em um livro recém-publicado: "Mortal Secrets: Truth and Lies in the Age of Aids" ("Segredos Mortais: Verdades e Mentiras na Idade da Aids").

Utilizando entrevistas orais, o livro analisa as práticas sexuais de 49 homens e 28 mulheres na cidade de Nova York. Sessenta desses indivíduos são HIV positivos, e há uma representação diversificada de gays, lésbicas, heterossexuais, asiáticos, latinos, brancos e negros.

Klitzman afirma que uma das descobertas mais perturbadoras foi a de que cerca de um terço dos gays entrevistados admitiram que, em algum momento, mentiram quanto à sua condição de infectados, mas que essa proporção é provavelmente maior.

"Fiquei horrorizado com algumas das coisas que essas pessoas me contaram", diz Klitzman. "Ao fim de cada entrevista falamos com os entrevistados sobre as práticas sexuais seguras e a importância de revelar ao parceiro que se é portador do vírus. Mas isso nos levou a pensar sobre a importância de um código de ética sexual".

Embora as entrevistas tenham sido realizadas entre 1993 e 1996, antes do advento da terapia antiretroviral altamente ativa, os especialistas acreditam que o quadro pouco tenha mudado.

Sharon Boyd, do Departamento de Saúde da Comunidade de Michigan, disse que a sua atual pesquisa sugere que talvez apenas 20% das pessoas infectadas que moram em Detroit tenham falado aos seus parceiros sobre a sua condição de HIV positivas. "Muitos temem que, se falarem a verdade, não terão mais parceiros sexuais", relata. "Vários mudam de parceiros com freqüência e mantêm relações sexuais sem proteção".

É claro que, em situações na vida real, a prática da ética sexual é complicada por diversos fatores. "As pessoas lutam o tempo todo com escolhas morais", afirma Bayer.

"Muitos dos indivíduos que entrevistamos disseram que, para eles, importa bastante a possibilidade de serem agredidos ou rejeitados caso revelem que são portadores do vírus. Eles não sabem se o mundo manifestará ou não hostilidade quando disserem que são HIV positivos. O medo e o terror freqüentemente determinam as suas decisões".

Uns poucos estudos contidos na pesquisa de Klitzman e Bayer revelaram uma rede complexa de sexo, segredos e mentiras. Os entrevistados são identificados apenas por pseudônimos.

Ginger afirma que revela rotineiramente a sua condição de HIV positiva aos parceiros, mas admite que o simples fato de pensar nessas conversas lhe causa ansiedade.

"Houve noites em que eu tinha decidido falar a verdade a ele, e acabei não o fazendo. Mas eu me conheço e sei que, se tivesse relações sexuais com meu parceiro sem avisá-lo, me sentiria horrível pelo resto da minha vida. Já a rejeição não me incomodaria tanto", explica.

Craig, que é gay, sentiu que o fato de saber se o parceiro é portador ou não do vírus não tem importância, contanto que pratiquem sexo com proteção. "Não chegamos exatamente a revelar", diz ele. "Não é de fato uma afirmação verbal. É uma ação. Uma camisinha está sobre a mesa. Não discutimos realmente o fato. As coisas simplesmente acontecem".

Um outro entrevistado, Patrick, ocultou da sua namorada, durante dois anos, a sua bissexualidade e o fato de estar infectado pelo HIV. "Finalmente comecei a concluir que mentiria para ela", conta. "Decidi dizer que acabei de descobrir. Achei que ficar escondendo a verdade acabaria me matando". Quando Patrick contou tudo à namorada, ficou surpreso ao constatar que o maior temor dela era a possibilidade de a sua infecção impedir que se casassem. Embora a namorada já tenha feito quatro exames de HIV, todos com resultado negativo, Patrick diz que ainda se preocupa.

As coisas ficam ainda mais complicadas quando se tenta contar a verdade a ex-parceiros sexuais. É o que Nancy, de 32 anos, conta no livro: "As pessoas se mudam, especialmente quando se tem entre 20 e 30 anos. Eu estava na faculdade e eles também; as coisas e os números telefônicos também mudam".

Ela acrescenta: "Nem sempre é fácil falar com um ex-namorado. Por que rompemos o relacionamento? Sempre há problemas envolvendo esse tipo de situação".

Mark Barnes, advogado e ex-comissário do Departamento de Saúde da Cidade de Nova York no início da década de 90 lembra-se de ter sido xingado em reuniões nas quais rogou que as pessoas portadoras de HIV não fizessem segredo sobre a sua condição.

"Houve muitas falhas nos nossos esforços pela prevenção, embora tenha havido uma iniciativa renovada por parte dos departamentos locais no sentido encorajar as pessoas a revelarem que têm a o vírus", relata Barnes. "Acho triste que tenhamos levado duas décadas para chegar a este ponto".

Nos últimos anos, programas de notificação dos parceiros, patrocinados por departamentos locais de saúde, demonstraram ser eficientes, segundo alguns especialistas.

"Se alguém do departamento de saúde vier até a sua porta e lhe disser que uma pessoa com quem você manteve relações sexuais ou compartilhou agulhas é HIV positivo, a mensagem enviada é bem forte", afirma Eve Mokotoff, chefe de epidemiologia do Departamento de Saúde Comunitária de Michigan.

A revelação pode também estar vinculada à aceitação social do fato de um indivíduo ser HIV positivo em determinado local e época. Em 2000, Gugu Khlamini, uma sul-africana, foi apedrejada até a morte pelos moradores da sua cidade, após ter revelado publicamente que era portadora do HIV, conta Quarraisha Abdool Karim, diretora de um programa de pesquisa sobre a Aids com mulheres da África do Sul.

Mais de cinco milhões de sul-africanos estão infectados com o HIV, mas menos de 10% têm consciência disso. "Com o acesso limitado a intervenções médicas e os riscos reais que o indivíduo corre ao revelar que é portador do vírus, os sul-africanos se sentem pouco estimulados a sequer fazer um exame de HIV", lamenta Karim.

No Brasil, no entanto, parece haver uma abertura bem maior sobre a questão da sexualidade e do HIV, encorajada parcialmente pelos esforços do governo para patrocinar o tratamento precoce e as campanhas de prevenção, afirma Jennifer Kates, diretora de política para o HIV da Fundação Henry J. Kaiser para a Família. "O Brasil se constitui em uma história real de sucesso, tanto quanto à prevenção quanto ao tratamento do HIV", afirma Kates.

"Esses esforços representam uma determinação de verdade por parte do governo brasileiro em lidar de frente com o problema da Aids como ele existe, em trabalhar com a forma como as pessoas realmente se comportam, e não com aquela como as autoridades acham que elas deveriam se comportar", opina Cohn.

Nos Estados Unidos, vários especialistas em saúde pública e profissionais de direito acreditam que o aconselhamento individual e as campanhas educacionais que encorajam o portador do vírus a revelar a sua condição são mais efetivas do que as leis punitivas que procuram prevenir a transmissão. Trinta e cinco Estados norte-americanos possuem leis que prevêem penas criminais para aqueles portadores do HIV que deixarem de informar aos seus parceiros que estão infectados.

O que essas leis freqüentemente não distinguem, observa Lawrence O. Gostin, professor de saúde pública da Universidade Georgetown, é se a pessoa infectada usou camisinha ou se realmente quis infectar o parceiro.

Segundo ele, tais leis podem ainda se constituir em um incentivo para que os indivíduos não se submetam a exames.

As políticas públicas que se propõe a controlar as doenças sexualmente transmissíveis são freqüentemente atrapalhadas pelo comportamento humano, afirmam Klitzman e Bayer, autores do novo livro. Ainda assim, revelar que se está infectado é essencial para a contenção da doença, acrescentam.

"Dizer que todos devem revelar o fato todas as vezes é difícil, já que certas pessoas podem ser rejeitadas, chutadas para fora de suas casas, espancadas ou coisa pior, como resultado de tal revelação", argumenta Klitzman. "Portanto, nós, profissionais de saúde, precisamos encorajar aqueles indivíduos que escolhem não revelar que são portadores do vírus a pensar cuidadosamente nas conseqüências de suas decisões".