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CAMPANHAS CORRETAS? SIM OU NÃO

24/11/2003 - Folha de São Paulo

A campanha nacional de prevenção à Aids é falha?

NÃO - Aids: o Brasil não a ignora

Os números não são exatos. São, antes, uma brilhante invenção humana na qual aprendemos a confiar com uma fé cega, quase fundamentalista. A subjetividade dos números teve mais um momento de glória nesta semana, com a divulgação pela empresa de comunicação britânica BBC de pesquisa, realizada em 15 países, sobre Aids e HIV. A manchete mexeu com os brios dos brasileiros, já acostumados a ouvir elogios em outras línguas ao seu programa de prevenção à Aids. O dado divulgado: "61% dos brasileiros não reconhecem a Aids como uma doença fatal". A interpretação: "Brasileiro mostrou maior nível de ignorância sobre a doença entre todos os países pesquisados".
Por uma semana, voltamos a ser o país sábio só no futebol. Em todo o resto somos muito ignorantes e ponto final.

Mas façamos uma releitura da pesquisa da BBC. Foram entrevistadas, por telefone, 1.007 pessoas nas cidades de São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Porto Alegre. Quase todos os entrevistados na pesquisa, 99%, responderam que o HIV é transmitido por meio da relação sexual desprotegida com uma pessoa infectada e com o compartilhamento de seringas contaminadas -o maior nível de conhecimento sobre as vias de transmissão do vírus entre os países pesquisados. Empatamos com os EUA. O resultado reflete o conhecimento da população sobre as principais formas de transmissão e conclui que os brasileiros sabem, sim, evitar o vírus da Aids.

Recorro à pesquisa realizada pelo Ibope no início de 2003, em amostragem aleatória representativa de todo o país, para validar minha afirmação. Quase 80% da população sexualmente ativa no Brasil relatou o uso da camisinha nos últimos seis meses com um parceiro eventual; 58% usaram o preservativo em todas as relações. Será que isso é ignorar o HIV e a Aids?

Voltemos aos números da BBC. A pesquisa fez um ranking com cinco problemas (violência e impunidade; problemas de saúde em geral; Aids; segurança financeira; e terrorismo), para mostrar quais deles mais afligem os brasileiros. A Aids ficou em terceiro lugar. Para as pessoas que foram ouvidas, Aids é um problema que preocupa mais que segurança financeira pessoal, isso falando de um país que tem 16% de desemprego. Ora, se 61% dos entrevistados não sabem que a Aids é uma doença grave, como poderiam estar tão preocupados com ela?

Acredito que aos números apresentados cabe outra interpretação. Trata-se, muito antes, de um reflexo de como o brasileiro vê a Aids. E vê de uma forma muito diferente do que via no início da epidemia. Há alguns anos, a sociedade primeiro -e em seguida o governo corrigiu o rumo de como tratavam a Aids. Paramos de falar que Aids mata, para dizer que Aids tem prevenção. Decisão pragmática.

Deixamos de estigmatizar as pessoas com o vírus e nos concentramos naquilo que poderia estar sob nosso controle, evitar novas infecções. E, mais uma vez, os números balizam o raciocínio. No final da década de 80, o Banco Mundial estimou que o Brasil teria 1,2 milhão de pessoas infectadas com o vírus. Estamos em 2003 e temos cerca de 600 mil pessoas infectadas.

Somem-se a isso os resultados da política de tratamento adotada no país desde 1996, com a distribuição de medicamentos anti-retrovirais para pacientes com Aids. Caiu muito a mortalidade por Aids no país. Acredito que seja isso o que os números dizem. Devido a essa conquista, os brasileiros sabem que a Aids é uma doença que tem tratamento no país e que é possível garantir a manutenção da qualidade de vida de seus pacientes. O estigma de doença que mata em poucos dias, comum no início da epidemia, foi trocado pelo reconhecimento dos cidadãos brasileiros de que a Aids está deixando de ser uma doença fatal, para ser uma doença crônica, passível de tratamento.

Lembro quando comecei a trabalhar no Centro de Referência em Tratamento de Aids em São Paulo (CRT), no início da década de 90. Na época, o ambulatório do CRT contava com uma sala de velórios. Quem vai lá hoje encontra pacientes circulando pelos corredores, alguns aguardando o atendimento médico, outros retirando medicamentos e muitos protestando porque os exames de carga viral e CD4, usados para monitorar a quantidade de células de defesa e de vírus no organismo, foram marcados para dali a dez dias (o de carga viral) e um dia (o CD4).

Fico particularmente feliz ao ver as pessoas protestando e saber que ainda temos muito o que fazer para melhorar a resposta que estamos construindo para essa epidemia. Feliz, sobretudo, por saber que as pessoas com Aids em nosso país podem protestar. Ainda bem que os números são subjetivos.

Alexandre Grangeiro, 38, sociólogo, é diretor do Programa Nacional de DST (doenças sexualmente transmissíveis) e Aids do Ministério da Saúde.



SIM - A doença cartão-postal

A constatação de que 61% dos brasileiros não acreditam que a Aids pode levar à morte suscitou um debate intrigante.

O Programa Nacional de DST/Aids do Ministério da Saúde apressou-se em dizer que essa e outras conclusões de recente pesquisa da rede BBC só confirmam o sucesso das campanhas e ações governamentais. A convicção nem sequer foi abalada com o dado de que 1 em cada 4 brasileiros acredita ser possível se infectar por meio do compartilhamento de objetos, passo certo para a discriminação contra as pessoas que vivem com HIV e Aids; ou com a revelação de que 28% desconhecem que as mulheres infectadas podem transmitir o vírus para seus filhos. A ignorância, neste caso, ao lado das deficiências do pré-natal na rede pública, pode estar relacionada ao fato de que, das 17 mil gestantes infectadas pelo HIV a cada ano no país, apenas 6.000 sejam tratadas.

Não é porque deixaram de chocar a população com mensagens mórbidas que as campanhas falhas. No início da epidemia, o Ministério da Saúde fez veicular peças abomináveis: "A Aids mata sem piedade. Não permita que essa seja a última viagem da sua vida" e "Se você não se cuidar, a Aids vai te pegar". Baseadas no terrorismo, não só afastaram as pessoas da prevenção, mas também propagaram a discriminação e o estereótipo do paciente terminal.

As campanhas evoluíram, popularizaram informações básicas e até fizeram aumentar o consumo de preservativos. Também as ações dirigidas, executadas pelas ONGs, mostraram resultados positivos em grupos vulneráveis, mesmo que de curto alcance e quase nunca avaliadas.

A resposta brasileira à epidemia foi construída sobre a garantia do direito à saúde e à afirmação da vida. Por isso a consciência de que a Aids pode matar não tem nenhum impacto comprovado para a prevenção, tampouco há evidências de que o acesso ao coquetel possa estar ligado às práticas de risco, como as relações sexuais desprotegidas.

Nesse aspecto, a pesquisa da BBC chama a atenção não para os erros das campanhas, mas é forte indício da banalização da epidemia. O acesso universal ao coquetel, a queda drástica do número de óbitos e de internações, a melhoria na qualidade de vida escamotearam parte da realidade: pessoas continuam morrendo por causa da Aids no Brasil, e não apenas por fatalidade do destino.

Vivem no Brasil 600 mil infectados. São 10 mil mortes e 21 mil novos casos de Aids por ano. Todos os dias, cerca de 27 pessoas morrem de Aids e outras 58 iniciam tratamento. A Aids é a segunda causa de morte entre os homens jovens e as mulheres. Mesmo quando comparadas às projeções sombrias da era pré-coquetel, as cifras não permitem comemoração nenhuma.

A infecção, o adoecimento e a morte por causa da Aids são menos visíveis para a população em geral, mas continuam presentes em nossas ONGs e casas de apoio, em nosso círculo de amizades, em nossos locais de trabalho, famílias e comunidades. A doença quase crônica permite a existência digna, mas não atenua o drama humano por trás de cada morte que poderia ser evitada.

Como no Primeiro Mundo, muitas mortes resultam da doença incurável, pois os medicamentos ainda são incapazes de erradicar o vírus, as resistências a eles são inevitáveis e seus efeitos colaterais apavoram médicos e pacientes. Mas, por aqui, a omissão também mata. Têm contribuído a situação de miséria - em que a Aids é só coadjuvante da exclusão social-, o déficit de leitos para internação (faltam mais de cem na cidade de São Paulo), a constante falta de medicamentos para tratar doenças oportunistas - obrigação de Estados e municípios que não assumem a responsabilidade-, a superlotação e a deterioração de serviços até então de excelência, a exemplo do Hospital Emílio Ribas, de São Paulo, a grande demora na realização de exames na rede pública, o início tardio do tratamento - resultado da pífia testagem precoce do HIV na população-, a falta de programas de incentivo à adesão à terapia.

O sucesso de uma política de combate à Aids não pode ser creditado apenas a medidas setoriais, à garantia do acesso ao coquetel ou à negociação de bons preços de remédios com as multinacionais. Viabilizar o Sistema Único de Saúde e implementar política de prevenção mais eficaz serão os maiores desafios na terceira década da Aids no Brasil.

A percepção de 66% dos brasileiros entrevistados na pesquisa da BBC é de que não está sendo feito o suficiente para prevenir e combater a Aids. Só temos a avançar ao admitir que, mesmo diante de recursos limitados, melhores resultados poderiam ser alcançados. Os prêmios, os elogios e a aclamação internacional elevaram o combate à Aids a cartão-postal de um país que ainda coleciona péssimos indicadores sociais e de saúde. É preciso dar um passo adiante.

Mário Scheffer, 37, comunicador social e sanitarista, é diretor do Fórum de ONGs/Aids do Estado de São Paulo e membro do Conselho Nacional de Saúde.