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AIDS EM UGANDA
01/08/2011 - The New York Times
Uganda carece de recursos para prevenir mortes maternas
Jennifer Anguko estava sangrando lentamente até a morte na maternidade de um grande hospital público. Apenas uma parteira solitária estava em serviço, como o hospital reconheceu posteriormente, e nenhum médico a examinou por 12 horas. Um obstetra que investigou o caso disse que Anguko, mãe de três filhos pequenos, chegou a tempo de ser salva.
O marido dela, Valente Inziku, um professor, trocava freneticamente a roupa de cama ensanguentada enquanto a vida dela se esvaía.
Eu vou deixar você, ela lhe disse enquanto ele a abraçava. Ela então pediu: Cuide de nossos filhos.
Metade das 340 mil mortes a cada ano de mulheres por causas ligadas à gravidez ocorre na África, quase todas em anonimato. Mas Anguko era uma autoridade eleita popular, buscando tratamento em um hospital com 400 leitos, e um processo por sua morte pode ser o primeiro teste legal da obrigação de um governo africano em fornecer atendimento de maternidade básico.
Ele também levanta questões a respeito do impacto indesejado da ajuda estrangeira aos sistemas públicos de saúde em dificuldades da África. Enquanto os Estados Unidos e outros doadores doam aos países africanos bilhões de dólares para combate à Aids e outras doenças infecciosas, ajudando milhões de pessoas a sobreviver, a maioria dos governos africanos reduziu sua própria parcela de gastos domésticos dedicados à saúde, se concentrando em outras prioridades.
Para cada dólar de ajuda estrangeira dado aos governos dos países em desenvolvimento com destino à saúde, os governos reduzem seus próprios gastos em saúde em 43 centavos de dólar, para US$ 1,14, como apontou um estudo de 2010 do Instituto para Medidas de Saúde e Avaliação da Universidade de Washington. Segundo as estimativas atualizadas do instituto, Uganda dedicou 57 centavos de dólar a menos de seu próprio dinheiro para a saúde para cada dólar de ajuda estrangeira que recebeu.
Rogers Enyaku, um especialista em finanças do Ministério da Saúde em Uganda, contestou a afirmação, dizendo que os gastos do país em saúde aumentaram, mas não substancialmente. Mesmo assim, o governo deflagrou um amargo debate doméstico meses atrás, quando confirmou que tinha pago mais de meio bilhão de dólares por caças e outros armamentos militares quase o triplo do valor dedicado a todo o sistema público de saúde no último ano fiscal.
Os pobres tomaram o sistema público de saúde de Uganda quando o governo aboliu as taxas dos pacientes há uma década. Cada vez mais, os países africanos estão adotando políticas semelhantes, e os especialistas dizem que, em consequência, muito mais pessoas estão recebendo atendimento. Mas a experiência de Uganda ilustra os limites desse atendimento quando o sistema é mal administrado e carece de recursos para fornecer serviços decentes, dizem os especialistas.
Nos hospitais como o daqui de Arua, mais de metade das vagas para médicos está vazia, parte de uma escassez maior, que inclui parteiras e outros funcionários de saúde. A maioria das clínicas e hospitais informa ficar regularmente sem medicamentos essenciais, enquanto apenas um terço das maternidades está equipada com itens básicos como tesouras, grampos umbilicais e desinfetantes, segundo um relatório do Ministério da Saúde de 2010.
O hospital onde Anguko morreu cuida de emergências obstétricas em uma região de quase 3 milhões de pessoas, mas ele recentemente não contava com suturas em estoque para dar pontos nas barrigas das mulheres após cesarianas. O dr. Emmanuel Odar, o único obstetra do hospital, disse que mesmo em partos de emergência, as famílias precisam comprar pessoalmente os suprimentos que faltam, geralmente em farmácias próximas. Os pacientes sem dinheiro devem implorar ou pegar emprestado, disse Odar.
Nós estamos sobrecarregados de casos de pessoas à procura de serviços gratuitos, e elas esperam muito apesar da inexistência de suprimentos, da falta de recursos humanos e dos leitos serem insuficientes, ele disse.
O dr. Olive Sentumbwe-Mugisa, um obstetra ugandense e conselheiro da Organização Mundial da Saúde, participou das investigações pelo Ministério da Saúde das mortes tanto de Anguko quanto de Sylvia Nalubowa, uma segunda mulher citada no processo contra o governo, concluindo que ambas chegaram a tempo de serem salvas.
Nós estamos em um estado de emergência no que se refere aos serviços de maternidade, disse Sentumbwe-Mugisa. Nós precisamos de foco na qualidade do atendimento em nossos hospitais e tratar disso no prazo mais breve possível. Isso significa mais recursos. Nós não temos como fugir disso.
No processo impetrado em março, o Centro para Saúde, Direitos Humanos e Desenvolvimento, um grupo ugandense sem fins lucrativos, argumentou que o governo violou o direito à vida das duas mulheres, ao fracassar em fornecer a elas o atendimento básico de maternidade.
O gabinete do ministro da Justiça respondeu que os atos isolados citados no caso não podem ser usados para ofuscar os esforços incansáveis do setor de saúde. Ele também notou as prioridades concorrentes pelos parcos recursos à disposição do Estado.
Mas o governo tem sofrido um duro questionamento desde abril, quando seus gastos em caças de fabricação russa se tornaram públicos, ajudando a alimentar protestos de rua.
Funcionários do governo do presidente Yoweri Museveni dizem que os jatos são fundamentais para proteção de Uganda em uma região com histórico de conflito, especialmente enquanto o país desenvolve seus campos de petróleo.
Os inimigos de Uganda não querem que tenhamos esses caças, disse Tamale Mirundi, um porta-voz de Museveni.
Mas os líderes da oposição condenaram os gastos em uma nação em paz, com imensas necessidades sociais.
Você está falando em investir em caças? Qualé! disse Christine Bako, uma parlamentar pelo distrito de Anguko, durante um debate no Parlamento. Isto agora é uma questão de consciência.
Com a proximidade da data do parto, Anguko deixou sua aldeia para morar com parentes perto do grande hospital de Arua, a 480 quilômetros a noroeste da capital, Campala. Nos preparativos, ela e seu marido compraram os suprimentos que sabiam que o hospital não tinha: luvas de látex, algodão, lâmina para corte do cortão umbilical.
Em uma manhã de domingo no ano passado, após rezar na igreja, Anguko sentiu dores abdominais e foi para o hospital. Naquela tarde, seu marido, aguardando do lado de fora da ala, ouviu o chamado urgente dela. Ela lhe disse que estava sangrando e que ninguém estava cuidando dela, ele contou. Ele e uma prima de sua esposa, Jane Adiru, 33 anos, disseram que abordaram repetidamente as enfermeiras pedindo ajuda nas horas que se seguiram, mas foram ignorados.
O próprio relato por escrito do hospital descreveu um dia de pesadelo de emergências complicadas, com apenas uma parteira em serviço tanto no turno diurno quanto noturno. Mulheres chegavam com úteros rompidos, um natimorto, parto obstruído, um aborto incompleto e um sangramento de câncer no colo do útero. Nenhum médico examinou Anguko até aproximadamente 12 horas após sua entrada, segundo o próprio relato do hospital. Outra hora se passou até ela finalmente ser levada para cirurgia. Mas já era tarde demais. Ela e o bebê morreram.
O Hospital Arua não está contente com o que aconteceu e lamenta a coisa toda, escreveu o superintendente médico do hospital aos líderes irados do conselho distrital no qual Anguko servia.
À medida que cresce a população africana, o mesmo acontece com a demanda por atendimento de emergência obstétrica. A ONU estimou recentemente que a população de Uganda provavelmente quase triplicará para 94 milhões até 2050, o que significa o parto de dezenas de milhões de bebês a mais.
No momento, aproximadamente 80% das mortes maternas do mundo ocorrem em apenas 21 países, 15 deles localizados na África sub-Saara, segundo o estudo da Universidade de Washington. Uganda estava entre eles. Aproximadamente 5.200 mulheres morreram de causas ligadas à gravidez no país em 2008, estimaram os pesquisadores.
O dr. Rafael Lozano, um professor de saúde global da universidade, disse que com exceção dos recentes ganhos no salvamento de vidas de mulheres grávidas portadoras do HIV, com o uso de tratamentos antirretrovirais em grande parte financiados por doadores, basicamente não há nenhum progresso nas mortes maternas em Uganda.
Quando Nalubowa, 40 anos, uma camponesa pobre e mãe de sete, chegou ao decrépito hospital distrital em Mityana, como disse sua sogra, Rhoda Kukkiriza, os enfermeiros exigiram um suborno de aproximadamente US$ 24 ou mais para compra de crédito para celular, para chamarem o médico, acusações negadas pelos enfermeiros. Kukkiriza disse que lhe restava menos de US$ 1 após gastar US$ 2,40 para compra da lâmina, luvas e outros itens que o hospital não tinha. Incapaz de pagar o suborno, Nalubowa foi levada para a maternidade e abandonada sem atendimento, disse sua sogra.
Enquanto sofria as dores de parto, tudo o que saía dela era sangue, disse Kukkiriza. Sylvia disse: Eu vendo todos meus porcos, todas as minhas galinhas, todas as minhas cabras, mas por favor, enfermeiros, venham me ajudar.
Mesmo se um médico tivesse chegado prontamente, o hospital teria dificuldade em salvar Nalubowa, que sangrou até a morte. O dr. Vincent Kawooya, o superintendente médico do hospital, disse que havia apenas uma pequena bolsa de sangue para uma criança em estoque naquela noite.
O próprio ministro da Saúde visitou o hospital após a morte de Nalubowa ter provocado protestos públicos, mas Kawooya disse que o ministro se recusou a botar os pés dentro da sala de operações, com suas paredes mofadas e teto com vazamento, dizendo que deveria ser condenada. O forro da maternidade era lar de morcegos e fezes escorriam por suas paredes internas.
Vincent Nyanzi, um membro do partido do governo no Parlamento pelo distrito, disse que apresentou a sogra e marido de Nalubowa a Museveni quando ele fez uma aparição pública em um distrito próximo.
O secretário particular do presidente lhes deu um envelope contendo aproximadamente US$ 190, disse a família. Na breve audiência deles com o presidente, disse Kukkiriza, ele lhes disse: Sinto muito. É realmente uma pena.