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O ACESSO A MEDICAMENTOS
17/11/2003 - Gazeta Mercantil
Legislação sobre produção, vendas e patentes.
Entre os desencontros da reunião da OMC em Cancún insere-se o acesso ao medicamento e a legislação sobre produção, vendas e patentes.
Emissão de licença compulsória pelo país importador e exportador, a participação da OMC na concessão de licenças e a imposição de que as exportações não tenham fins lucrativos são dificuldades que praticamente inviabilizarão o acesso a medicamentos nos países necessitados.
O Brasil tenta quebrar a patente de três medicamentos usados no tratamento de doentes de Aids. A solução ocorrerá quando a indústria farmoquímica nacional produzir o princípio ativo para produção dos medicamentos fabricados no País e, assim, reverter a situação de dependência internacional de insumos.
É importante esclarecer a diferença entre produzir o princípio ativo (o insumo) e o produto final (o remédio). Por princípio ativo entende-se a substância que exerce a ação terapêutica. O produto final é o princípio ativo agregado de substâncias farmacêuticas que o fazem passível de ser utilizado no organismo humano.
No cenário nacional há uma baixa capacidade de produção do principio ativo (90% dos fármacos são importados), onde existem poucas indústrias farmoquímicas (de seis a oito) e é pequena a capacidade de produção de medicamentos obtidos por biotecnologia. A solução definitiva fica mais evidente a partir da análise de duas variáveis:
1) Os três medicamentos que estão envolvidos com o governo em uma negociação de redução de preços, licença compulsória e/ou licença voluntária têm um período de vida média de mercado, quando se torna ultrapassado. Não tenho dúvidas de que a Merck Sharp & Dohme, a Roche e a Abbott - indústrias éticas, é bom ressaltar - estão se preparando para lançar medicamentos mais modernos para substituir os atuais, e aí estaremos frente ao problema de novas negociações, nova ameaça de quebra de patente, novo desperdício de energia, tempo e recursos.
2) A estratégia de licença compulsória (quebra de patente) ou de utilizar as brechas na legislação que permitam adquirir o princípio ativo no mercado internacional esbarra no fato de que o produtor da patente não vende tal substância para um possível futuro concorrente. Pior que isso: em 2005, a China e a Índia, maiores produtores mundiais de matéria-prima, serão também signatários da legislação sobre direitos de propriedade intelectual relacionados ao comércio (Trips), ou seja, estarão sujeitos a leis de patentes. E o Brasil perderá seus fornecedores.
A indústria nacional farmoquímica deverá se capacitar para produzir o princípio ativo, assim como uma política tecnológica que sustente os investimentos.
O Brasil é considerado o décimo maior mercado em faturamento no setor de medicamentos e o primeiro maior mercado da América Latina, Caribe e África. Esses números deveriam corresponder a uma razoável atividade de P&D, mas o que se observa é uma elevadíssima dependência tecnológica externa.
Desde a década de 60, o mercado brasileiro de medicamentos baseia-se somente na produção de formas farmacêuticas finais, isto é, com importação do princípio ativo, formulando comprimidos, cápsulas, injetáveis e pomadas.
De 1997 a 2002 o Brasil deu um salto na condução do tratamento de doenças como a Aids, na qual o custo do tratamento/ano teve queda de US$ 4.860 mil para US$ 2.510 mil (48%). Isso ocorreu porque houve redução nos preços dos medicamentos, que se deveu a fatores como melhor planejamento por parte do gestor público e ação forte nas negociações de preços. Mas o principal foi que as indústrias nacionais, públicas e privadas, desenvolveram-se tecnologicamente e passaram a produzir os medicamentos usados no coquetel diário. Em 1997 o País só produzia dois medicamentos dos 14 constituintes do coquetel. Em 2002 foram produzidos oito, avanço obtido com produção do medicamento e não do princípio ativo.
Em saúde não se pode aceitar a teoria de liberdade plena de mercado porque o produto final é a vida. A solução passa pela parceria completa e definitiva entre governo e indústria privada, e não somente pela definição de linhas de financiamento nem pela produção exclusiva dos medicamentos que dão muito lucro.
A dificuldade não está em aceitar novas idéias, mas em escapar das antigas. Serão necessárias ações vigorosas, criativas e concretas para que o País mude a lógica da dependência externa nesse setor.
Ainda é preciso considerar o tempo que o Brasil dispõe para implementar esse programa. Temos mais de três anos para que os primeiros resultados apareçam. Caso contrário, não haverá tempo para acompanhar o processo de desenvolvimento tecnológico mundial, o que fará o País mais dependente. Frágil, estará à mercê dos altos custos internacionais do medicamento, inviabilizando o acesso da população.
kicker: O que ocorre é uma elevadíssima dependência tecnológica externa
(Gazeta Mercantil/Caderno A3)(Platão Fischer-Puhler - Doutor em medicina, autor do livro "O Acesso ao Medicamento", membro da delegação oficial brasileira na reunião da OMC, em Doha, Qatar, diretor da GT&P Consultoria).