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A AIDS DEPOIS DOS 50 ANOS
02/11/2003 - Revista Época
O HIV avança sobre os brasileiros idosos.
HIV avança sobre os brasileiros idosos que usam remédios para impotência, mas ignoram a camisinha.
Desde o início da epidemia, nos anos 80, a Aids exige dos governos competência para levar a mensagem do sexo seguro ao grupo aparentemente mais vulnerável. Foi assim com gays, prostitutas, usuários de drogas injetáveis, jovens heterossexuais e, mais recentemente, com mulheres casadas. Agora a doença avança sobre uma parcela da população fisicamente fragilizada e de abordagem mais complexa: os idosos. O número de casos confirmados de Aids com idade acima de 50 anos cresce no Brasil como em nenhuma outra faixa etária. Entre os homens, a expansão foi de 98% na última década. Sobre a parcela feminina idosa, a epidemia avança como um rolo compressor: houve um crescimento de 567% entre 1991 e 2001. Enquanto isso, as campanhas de prevenção são estreladas por celebridades quase adolescentes.
A concepção arraigada na sociedade de que sexo é prerrogativa da juventude contribui para manter desassistida essa parcela da população. Costuma ser implacável o julgamento dos filhos diante do diagnóstico de Aids no idoso: "Foi pegar isso nessa idade?". Alguns profissionais de saúde também expressam uma surpresa desconcertante: "Foi transfusão de sangue, né?".
"Peguei Aids fazendo sexo sem camisinha. Conto para quem quiser ouvir. Sou pobre, preta, mulher. Vou ter medo de mais algum preconceito?"
CORINA MARIA SILVA SANTOS, 58 ANOS, portadora do HIV
Um levantamento realizado pelo Ministério da Saúde, em janeiro, sobre o comportamento sexual dos brasileiros mostrou que 67% da população entre 50 e 59 anos se diz sexualmente ativa. No grupo acima de 60 anos, o índice também é expressivo: 39%. A média de relações na parcela acima de 50 anos é de 6,3 ao mês. A responsabilidade por isso se deve, em parte, à difusão dos remédios para disfunção erétil. "A longevidade sexual da população está aumentando e a prevenção às Doenças Sexualmente Transmissíveis precisa ser intensificada", comenta Alexandre Grangeiro, coordenador do Programa Nacional de DST/Aids.
Do total de casos confirmados de Aids no Brasil, 6% eram verificados em pessoas acima de 50 anos em 1991. Dez anos depois (última data com dados completos disponíveis), o índice havia subido para 11%. Nos Estados Unidos, o cenário é o mesmo. Os casos de Aids na população acima de 50 anos quintuplicaram na última década. "As autoridades tentam amenizar os fatos, mas o problema é concreto e alarmante", diz o médico Alberto de Macedo Soares, presidente da seção paulista da Sociedade Brasileira de Geriatria. "É preciso desmistificar a idéia de que só jovem pega o HIV".
37% dos pacientes acima de 50 anos morrem no mesmo mês em que descobrem o vírus
Soares acompanha a evolução dos idosos soropositivos que batem às portas do Hospital das Clínicas e do Emílio Ribas, em São Paulo. Nesta instituição, ainfectologista Luciana Longo Conte organiza um ambulatório de Terceira Idade que já tem cadastrados 15 pacientes. 'A maioria adquiriu o vírus depois dos 50 anos, em relações heterossexuais', diz.
Os idosos que deparam com a doença tendem ao isolamento. Enquanto podem, escondem o diagnóstico da família, dos vizinhos e dos chefes. Ainda não estão articulados em grupos de auto-ajuda nem dispõem de ambulatórios especializados em lidar com a complexa experiência de envelhecer com Aids. Raramente têm com quem dividir inseguranças e abominam ser alvo de discriminação. O preconceito, em muitos casos, brota de dentro para fora e os impede de falar a verdade.
Aos 58 anos, a carioca Corina Maria Silva Santos vai contra a corrente e não esconde que convive com o vírus. "Sou pobre, preta, mulher. Vou ter medo de mais algum preconceito?" Corina descobriu o HIV há cinco anos, quando já estava separada do marido e havia tido vários parceiros. Não sabe quem a infectou, mas tem certeza de que pegou Aids por fazer sexo sem camisinha. "Minha filha, então com 18 anos, ficou revoltada e me censurou", conta. A empregada doméstica soube se impor e procurar tratamento. Sobrevivente de um derrame cerebral e em luta contra a hipertensão, Corina coordena um grupo de apoio ä a soropositivos no Hospital dos Servidores. Mulher da minha geração vê preservativo como anticoncepcional. Quando entra na menopausa, acha que não precisa mais. Acaba infectada.
Sem o risco de gravidez, mulheres maduras abrem mão da camisinha e se expõem à Aids
Desde 1998, o lançamento de remédios que melhoram o desempenho sexual aumentou a qualidade e a freqüência das relações. Os idosos vivem mais e melhor e se sentem seguros nas investidas amorosas. O problema é que a mensagem do sexo sem limitações não veio acompanhada de educação para o uso da camisinha. "Vemos o Pelé divulgando o Viagra, mas nenhum idoso aparece na TV falando de Aids", diz o médico patologista Murilo Rezende Melo. Segundo Grangeiro, do Ministério da Saúde, parcerias com instituições como Sesc e Sesi começaram a funcionar para levar noções de sexo seguro aos grupos de Terceira Idade. "Não descartamos a idéia de criar campanhas de TV para idosos. Precisamos mobilizar essa população", diz.
As drogas contra impotência não podem ser diretamente responsabilizadas pelo avanço da epidemia na maturidade. O remédio mais antigo foi lançado há apenas cinco anos e os dados epidemiológicos referem-se a infecções que provavelmente ocorreram há mais tempo. Afinal, os sintomas da doença podem levar até oito anos para aparecer nos idosos. Mas sem dúvida o Viagra e seus sucedâneos induziram mudanças de comportamento que abrem espaço para o sexo desprotegido. Entre os idosos que se descobrem portadores do vírus, há dois perfis clássicos: o do homem casado que se contamina com uma parceira mais jovem e o das viúvas que redescobrem o sexo. "Em qualquer dos casos, o preconceito é enorme", diz a sexóloga Maria Helena Vilela, diretora do Instituto Kaplan. Ela coordena nos municípios paulistas a divulgação do jogo Cartas na Mesa, um programa de educação sexual e prevenção de doenças.
São muitos os obstáculos ao uso da camisinha: os homens temem perder a ereção e ainda acham que o cuidado só é necessário nas relações com prostitutas. As mulheres não sentem necessidade de exigir o preservativo. Fazer sexo sem camisinha é particularmente arriscado depois da menopausa, quando as paredes vaginais se tornam mais finas e ressecadas, favorecendo o surgimento de ferimentos que abrem caminho para o HIV. Os raros estudos internacionais sobre a infecção em idosos indicam que até 37% dos pacientes acima de 50 anos morrem no mesmo mês em que descobrem a doença. Entre 13 e 49 anos, esse índice é de 10%.
O diagnóstico tardio é uma das principais razões de morte precoce. Os médicos costumam associar os sintomas a outras doenças (Alzheimer, câncer, tuberculose) e passam meses em investigações infrutíferas até desconfiar de Aids. As interações do coquetel com outros medicamentos já utilizados pelos idosos também produzem reações indesejáveis. Com a imunidade enfraquecida, eles morrem por qualquer resfriado banal. Envergonhados, isolados e censurados pela família.