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Preconceito fardado

13/10/2003 - Jornal do Brasil

Militares afastados acusam Marinha de não cumprir decisão judicia

Na batalha diária que travam contra a morte, dezenas de militares da Marinha portadores do vírus HIV vêm enfrentando um inimigo tão cruel quanto a própria doença: o preconceito. Uma decisão judicial de 2000, fruto de uma ação civil pública impetrada pelo Ministério Público Federal, determinou que a Marinha pare de reformar compulsoriamente os portadores assintomáticos do HIV - aqueles que não desenvolveram Aids - no Estado do Rio e reintegre os que tenham sido dispensados.
O retorno dos militares deve ser feito sem prejuízo para as carreiras. Apesar de o Serviço de Relações Públicas da Marinha afirmar que cumpre essa decisão desde julho de 2000, vários funcionários contestam o órgão e cobram seus direitos na Justiça. De acordo com informações de oficiais e praças infectados, mais de 80 pessoas sofrem com o problema no Rio - em todo o país, seriam mais de 500.
O terceiro-sargento Hibernon Costa Guerreiro, 41 anos, foi reformado em 1992, depois de dois anos de licença para tratamento. Um exame feito na Marinha, em setembro de 1990, detectou que ele é portador do vírus da Aids. Até hoje, não desenvolveu a doença. Apesar disso, o militar não conseguiu a reintegração, como determinou a decisão do juiz Washington Juarez de Brito Filho, em 2000. Hibernon também tenta receber adicionais por invalidez e insalubridade.
- Pior do que a doença é o preconceito. Quando descobri que tinha o HIV, perdi meu trabalho porque a Marinha me colocou para fora, fazendo com que eu corra atrás do que é meu até hoje. Estou brigando. Tem uma decisão do juiz mandando a gente voltar, mas a Marinha não cumpre a determinação. Volta um e não volta outro, ou voltam alguns e são obrigados a entrar de férias - conta.
O terceiro-sargento já apresentou um projeto de reinserção dos portadores do HIV à Marinha. Ele propõe que os afastados sejam reintegrados e utilizados num trabalho interno de orientação e prevenção sobre a própria doença.
- O projeto foi aprovado, mas até agora eles não falaram nada. O fato de um juiz decidir em nosso favor não significa que a Marinha vá cumprir essa decisão. Há 13 anos eu brigo para trabalhar. Não estou pedindo dinheiro a ninguém. Estou apenas lutando pelo meu direito de poder trabalhar e de colocar minha farda. E essa luta não é só minha, não. Tem muito marinheiro excluído por ser soropositivo - desabafou Hibernon.
Vivendo o mesmo drama e hoje sem salário, um soropositivo, que preferiu não se identificar, luta na Justiça pela reintegração imediata. Quando era soldado, ele descobriu que era portador do vírus e, em seguida, foi demitido.
- Descobri que era portador do vírus em 1998 e, por isso, fiquei três anos e quatro meses de licença médica. Na ocasião, perdi a oportunidade de ser promovido a cabo, porque tive que interromper o curso de especialização, no qual fui aprovado em 40º lugar entre 600 candidatos, seis meses antes de terminar. Um médico do Centro de Instrução Almirante Alexandrino, da Marinha, chegou a dizer que não me deixaria terminar o curso porque, como soropositivo, eu representava um perigo para a tropa - relata.
O soldado não foi reformado, apesar de ter ficado mais de três anos de licença, o que lhe dá esse direito, segundo o artigo 106 da Lei 6.880 do Estatuto dos Militares. Depois da decisão judicial, ele retornou ao serviço em 2001 e, com muita briga, conseguiu terminar o curso para ser promovido a cabo no fim do ano passado.
- Sete meses depois de ser promovido a cabo, me mandaram uma portaria de desligamento, me demitindo da Marinha. A alegação deles era de que eu havia completado nove anos de trabalho sem ter passado na prova para sargento. O regimento interno de lá, no entanto, diz que a pessoa só pode fazer provas de promoção com um intervalo mínimo de um ano. Então, como poderia ter feito a prova de sargento se só havia passado na de cabo há cinco meses? É um desrespeito. Afinal, fico impedido de fazer a prova por estar de licença e ainda sou mandado embora por isso - critica o militar, que entrou na Justiça com um pedido de reintegração e, como ficou três anos de licença, pediu para ser reformado.
- É muito ruim ficar em casa. Quando a gente está trabalhando, se sente bem mais humano. Mas a discriminação lá dentro também é muito grande e, muitas vezes, estar lá é bastante humilhante. Já cheguei a ouvir piadinhas como ''fala aí, sangue bom'', dos meus próprios colegas. Por isso, estou pedindo para ser reformado. Tem uma música do cantor e compositor Sergio Pimenta que expressa muito o que eu sinto: ''Só quem sofreu pode avaliar quem sofreu; pode se identificar; pode ter o mesmo sentir'' - concluiu, emocionado.