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DESCOBRIDOR DA AIDS NEGA QUE BRASIL SEJA

01/12/2007 - Folha Online

Brasil não é referência na questão da Aids

O programa brasileiro de combate à Aids integra a lista de itens que compõem o "orgulho nacional". O governo e até membros da comunidade científica costumam ressaltar o "sucesso" da luta brasileira contra o HIV - fato que não se repete para outras doenças. Entretanto, isso não faz do país uma referência mundial ("Talvez para a África do Sul"), segundo o virologista Robert Gallo, 69, co-descobridor da doença.

Em entrevista exclusiva à Folha Online, por telefone, de Baltimore (EUA), Gallo afirma que distribuir remédios gratuitamente e oferecer tratamento são uma obrigação do Brasil, assim como de outros países.

Apesar de seu trabalho notável, Gallo está longe de ser uma unanimidade na comunidade científica. Ele é acusado de ser representante dos interesses das grandes empresas farmacêuticas e de ter "roubado" os estudos do outro descobridor da Aids, o francês Luc Montagnier.

Entre 1983 e 1984, Montagnier teria sido o primeiro a isolar o vírus HIV e enviado amostras para Gallo. A partir disso, o norte-americano teria descoberto que aquele vírus era o causador da Aids, a doença desconhecida que alarmava o mundo na primeira metade da década de 80.

A história, ainda nebulosa, terminou apenas na década seguinte, após um acordo entre os governos dos dois países.

Gallo nega isso, afirmando que "nunca recebeu um centavo de qualquer empresa farmacêutica" e que Montagnie e ele "sabem quem fez o quê".
Nessa entrevista, o cientista, que atualmente é diretor do Instituto de Virologia Humana da Universidade de Maryland, nos Estados Unidos, conta que está desenvolvendo uma vacina contra a Aids.

Ele promete divulgar os resultados dos testes com macacos - que ele considera "interessantes"-- no primeiro semestre do ano que vem. Confira abaixo a íntegra da entrevista.

Folha Online - O programa brasileiro de combate à Aids é visto como um modelo nessa área...
Robert Gallo - Não fique tão orgulhoso. Vocês não são um modelo.

Folha Online - Por quê?
Gallo - O que vocês estão liderando, que caminho estão apontando? O Brasil trata seu povo, assim como os Estados Unidos. Qual é o modelo? Modelo para quem? Eu não entendo...

Folha Online - Talvez porque o tratamento é gratuito e atinge um grande número de pessoas, além de a epidemia estar razoavelmente controlada aqui.
Gallo - Todos são tratados na Suíça, na Alemanha, na Itália, na Inglaterra, no Canadá. Por que vocês seriam um modelo?

Folha Online - Então o senhor não concorda com isso?
Gallo - A realidade é o seguinte: quando você diz que é um modelo, está implícito que todo mundo deve seguir você. Mas a maioria dos países já faz isso [tratar gratuitamente os pacientes com Aids]. Apenas países que são muito, muito pobres não fazem isso. Vocês são modelos para quem? Se você quer saber se o Brasil está fazendo um bom trabalho com respeito ao tratamento contra a Aids, eu digo que sim. E isso é ótimo, maravilhoso. Mas se você diz que o Brasil é um modelo, isso significa que vocês são uma lição para mim. Por que vocês seriam uma referência para mim? Talvez sejam um modelo para a África do Sul, para alguns países, mas não para o mundo inteiro, já que a maioria dos países realmente trata seus pacientes com Aids.

Folha Online - Quando esteve no Brasil há dois anos, o senhor criticou o programa brasileiro de combate à Aids, principalmente a questão da quebra das patentes dos remédios do coquetel. O senhor ainda é contra a produção de genéricos?
Gallo - Isso é um exagero. Eu não critiquei o programa brasileiro contra Aids. Não foi o que eu disse. Eu não sou contra os genéricos. Coloque a coisa dessa forma: se o governo achar que eles [a indústria farmacêutica] estão cobrando muito dinheiro [pelos remédios], o Brasil deve brigar. Lutar até onde puder, se tiver certeza que os preços estão muito altos. Eu concordo com isso. Mas aí surge uma questão: se eles baixarem os preços demais, e você continuar brigando, isso pode gerar mais problemas. Os laboratórios se desinteressariam pela Aids, ou pelo Brasil, e iriam embora. Eu falei - e falo - nisso como uma possibilidade.

Folha Online - Então o senhor concorda com o modelo dos genéricos?
Gallo - As empresas farmacêuticas concordam com esse modelo e nem reclamam muito do uso dos genéricos. Tem funcionado bem. Eu alerto apenas para duas coisas: se você usa os genéricos por muito tempo, alguns podem ficar não tão bons quanto à droga original, porque quem os produz pode não fazê-lo com a mesma qualidade. Além disso, se você não trabalhar com os genéricos de um modo com que as indústrias de remédios concordem, elas podem ir embora [do país]. Aí o governo pode dizer: "Está tudo certo porque eu tenho o genérico". Mas, e quando você precisar de uma nova droga? Isso não é a minha posição. É apenas uma possibilidade que eu levanto.

Folha Online - O que você está pesquisando agora? Quais são seus interesses científicos no momento?
Gallo - Eu dirijo o Instituto de Virologia Humana da Universidade de Maryland [em Baltimore, nos Estados Unidos]. Como diretor de um instituto, meus interesses são amplos. HIV e Aids são prioridades é claro, mas também estamos interessados em vírus que causam câncer, por exemplo. Em pesquisa nós estamos envolvidos em tentar criar novas drogas para o tratamento de Aids, porque terapia significa fazer as pessoas viverem mais. No entanto, elas podem ter efeitos colaterais por causa da utilização dos remédios por longos períodos ou podem ficar resistentes às drogas. Então, nós precisamos sempre de novas idéias, novas abordagens para a terapia. Por último, nós também temos um grande programa de pesquisa para tentar desenvolver uma vacina preventiva para a Aids.

Folha Online - Em que estágio está a pesquisa sobre a vacina que o seu instituto está desenvolvendo?
Gallo - O que temos até agora é que os resultados da utilização em macacos foram muito interessantes, tão bons quanto nos testes preliminares. Nós teremos os resultados finais na primavera [no hemisfério norte, de março a junho] de 2008. Se esses resultados confirmarem as prévias, poderemos ir para a fase 1 em 2009, o que significa fazer testes clínicos em humanos. Leva muito, muito tempo para produzir vacinas para qualquer vírus. Mas no caso do HIV é mais complicado porque ele integra seus genes às células do infectado, então isso aumenta a barreira que você tem de ultrapassar. É um processo muito mais difícil que em vacinas anteriores. É muito complicado para que os cientistas possam prever os resultados.

Folha Online - O que o senhor chama de "resultados interessantes"?
Gallo - Significa que nós tivemos respostas imunológicas muito positivas e o vírus foi até mesmo retirado dos animais --não encontramos sinais do vírus no corpo. Mas o estudo foi muito pequeno, com apenas quatro animais. Isso precisa ser confirmado e nós queremos fazer ainda melhor: nós não barramos o vírus no começo do processo de infecção, mas conseguimos retirar o vírus. Nós queremos impedir que o vírus entre na célula. Obter resultados interessantes significa que, comparado a outros projetos de vacina, nós conseguimos nos animais algo que é melhor do que tudo que você tem na literatura [científica]. Mas eu quero enfatizar que nós não podemos garantir nada. Não podemos ter certeza sobre os resultados finais.

Folha Online - E qual a principal diferença entre essa vacina e as anteriores?
Gallo - Essa vacina é baseada na ação dos anticorpos. Eles tentam brecar a infecção bem no começo, em vez de tentar eliminar as células infectadas depois que o vírus já entrou. Isso é um problema, porque animais eventualmente desenvolvem variantes do vírus, que escapam das células T [tipo de linfócito, presente no sistema imunológico, que "ataca as infecções"]. Essa vacina é baseada em anticorpos, que tentam bloquear a infecção logo no começo. Esses anticorpos têm de ser amplos em sua atuação, porque o HIV tem muitas variantes. É um método para gerar uma ampla reação contra o vírus.

Folha Online - Você acha que uma vacina pode ser o melhor modo de conter a epidemia de Aids?
Gallo - Claro, obviamente. Se você conseguir a vacina certa, que funcione...

Folha Online - Existe outro modo efetivo?
Gallo - Claro. Existe o comportamento humano adequado e um mundo perfeito em que não exista prostituição, promiscuidade sexual, as pessoas utilizem preservativos em 100% de suas relações sexuais e todo mundo faça um exame de HIV para assegurar que não foi infectado. Tudo isso, com o decorrer do tempo, poderia conter a epidemia no mundo todo. A outra idéia é o uso de microbicidas, em que você coloca algo na vagina da mulher [que impeça o contágio]. Mas as pesquisas estão andando de maneira lenta e os resultados são ainda piores, porque o método aumentou a infecção. O certo é que nós precisamos de uma vacina preventiva e ponto final --nós não conseguiremos vencer de nenhum outro modo.

Folha Online - A respeito dos remédios de tratamento da Aids. O que precisamos melhorar?
Gallo - Precisamos encontrar novas abordagens para o tratamento contra o vírus e é nisso que os cientistas estão focados. Nós temos que impedir o HIV de entrar na célula e as drogas que fazem isso são de outra classe, trabalham de um outro modo. Então, uma nova classe de drogas deve surgir nessa base. Uma outra droga está focada em impedir a ação de uma enzima chamada integrase, que catalisa a junção dos genes do vírus ao DNA das nossas células. E os resultados são muito positivos, em termos de tratamento. Entretanto, nenhuma delas traz cura. No nosso instituto, temos uma estratégia de tentar entender quais são as necessidades do vírus na célula, as moléculas que o vírus precisa para se reproduzir. A intenção gerar o impedimento desse processo. Nós temos um programa nessa direção. Há também pesquisas sendo feitas, em outros institutos, para tentar curar, tirar o vírus da célula infectada, mas isso é extremamente difícil. É uma tarefa árdua porque vai demorar tanto e vai custar tanto dinheiro que quando der certo eu nem estarei mais na Terra (risos).

Folha Online - Por que o senhor começou a estudar a Aids? Como entrou nessa história?
Gallo - Eu fui convencido por doutor James Curran, do CDC [Centro de Controle de Doenças, na sigla em inglês], de que este era um problema importante e precisava da ajuda de um virologista, porque era provável que fosse uma doença viral. Eu já tinha experiência em células T. Já tinha descoberto como cultivar células T no laboratório, em 1976. Na época os exames clínicos mostravam que aquela poderia ser uma doença causada por problemas nas células T. Finalmente, eu tinha descoberto alguns tipos de retrovírus [vírus constituídos de RNA em vez de DNA] em 1981 e 1982, que causavam um tipo específico de leucemia, que inclusive ocorre no Brasil. Eu chamei esses vírus de HTLV 1 e HTLV 2. Na época eu tive a idéia de que Aids poderia ser causada por um outro retrovírus.

Folha Online - Quando o senhor começou a pesquisa, tinha idéia do tamanho do problema?
Gallo Sim. Nós não tínhamos idéia do que acontecia na África, mas já sabíamos antes de fazer o anúncio oficial sobre a doença de que aquilo estava se tornando global. Porque nós tínhamos amostras de vários países, que estavam sendo testadas por nós e dando positivo para o vírus que nós estávamos prestes a anunciar. E nós sabíamos que todos os infectados estavam prestes a morrer -
quase todos.

Folha Online - Houve um dia em que o senhor percebeu que tinha descoberto a Aids?
Gallo - Não houve um momento de "eureca". Não houve porque a cada semana nós íamos aprendendo um pouco mais, um pouco mais, até acharmos as evidências que permitiam dizer que aquela era a causa da Aids. Pense assim: e se eu examinasse você e achasse um novo vírus? Eu poderia concluir que esse vírus tornou você um jornalista? Não... você tem que provar, encontrar muitas e muitas ocorrências. Mostrar que não há outros fatores... Nós tivemos que acumular muitos dados antes que provar que aquela era a causa da Aids.

Folha Online - Durante anos o senhor foi acusado de ter roubado as idéias do cientista francês Luc Montagnier a respeito da Aids. O assunto se resolveu apenas com um acordo entre a França e os Estados Unidos. O senhor ainda conversa com Montagnier?
Gallo - Nós éramos amigos antes da controvérsia e voltamos às boas desde que o problema foi resolvido em 1988. Nós dois sabemos o que cada um fez. No período entre 1986 e 1988 houve uma briga internacional [sobre a patente do exame anti-HIV] e eu fiquei bravo quando nós fomos postos dentro daquilo. As pessoas pensam que aquilo eram dois cientistas brigando por quem descobriu o quê, mas isso não é verdade. Não há dúvida de que o trabalho de Montagnier sobre o vírus foi publicado antes. Não há dúvida que eu forneci a idéia e a maior parte da tecnologia que ele utilizou. Eu tive a idéia para o retrovírus, eu tinha a tecnologia para as células T e eu forneci isso para ele. Não há dúvida de que aquele vírus que ele estava vendo era a causa da Aids. Na época, eu publiquei cinco artigos, quatro na [revista] "Science" e um no "The Lancet", ao mesmo tempo, mostrando que essa era a causa da Aids. O Montagnier não disse isso, não poderia ter dito, porque não tinha esses dados. Nós [os cientistas norte-americanos] demos a idéia, grande parte da tecnologia, mostramos que aquela era a causa da Aids e desenvolvemos o exame de sangue. Ele havia tentado criar o exame e tinha algumas pistas sobre isso, mas não há dúvida de que nós fizemos isso primeiro.

Folha Online - Alguns de seus críticos acusam o senhor de ser representante dos interesses das grandes companhias farmacêuticas. O que acha disso?
Gallo - É bobagem falar de mim como um representante da indústria farmacêutica. Eu não trabalho para nenhum laboratório, eu nunca ganhei um centavo de nenhuma empresa farmacêutica, o que é mais do que qualquer pessoa no mundo poderia dizer, inclusive no Brasil. Nada me deixa mais bravo do que esse tipo de coisa.

Folha Online - Qual é o próximo passo que precisamos dar em relação à Aids? O que você espera para a doença no curto prazo?
Gallo - Meu maior desejo é criar uma vacina. No imediato, quero que esses experimentos preliminares [da vacina desenvolvida pelo instituto de Gallo] em animais sejam confirmados pela Wyeth, a companhia farmacêutica que apóia o projeto, e que os testes sejam estendidos e consigamos resultados positivos, para que possamos ir para a fase 1 clínica em 2009. Estamos esperando pela primavera [no hemisfério norte] de 2008, daqui a bem pouco tempo, para que a Wyeth confirme os resultados preliminares que obtivemos. É o que eu espero.

Fonte: Folha Online