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DECISÃO "SUI GENERIS"
12/10/2007 - Agência Aids
Justiça manda prender acusado de transmitir HIV
Condenado por homicídio intencional, motorista teve recurso negado pelo TJ, apesar de manter relacionamento com mulher que o denunciou
Fabiane Leite
Desde o dia 18 de setembro, o motorista J.L.C.M, de 47 anos, portador do vírus da aids, é procurado pela polícia. Ele mudou de casa e vive apavorado com a idéia de passar os próximos anos na cadeia. Sem antecedentes criminais, J. foi condenado em outubro de 2004 por um júri popular a 8 anos em regime fechado. A acusação: tentar matar a amante, transmitindo o HIV, em um caso que teve repercussão nacional. O motorista recorreu ao Tribunal de Justiça de São Paulo, mas perdeu: em março, o órgão confirmou a decisão dos jurados.
O advogado que defendeu J. no início do processo e o promotor que o denunciou, em 2003, dizem que não sabem de casos semelhantes no País. Como eles, outros especialistas afirmaram ao Estado não ter notícia de processos no qual um portador do HIV tenha sido condenado à prisão por homicídio doloso (com intenção) e qualificado (por uso de meio cruel) porque infectou alguém com o vírus.
Luiz Carlos Magalhães acompanhou J. durante o processo como advogado da assistência judiciária do Estado - hoje o motorista está sem defensor. Magalhães diz que o caso ficou "ainda mais sui generis" - e dramático - porque M., a mulher infectada, retomou o romance com J. Ela afirmou que já está arrependida de ter registrado boletim de ocorrência contra o companheiro. Mas não há o que fazer, porque, em casos de homicídio, a ação penal independe da vontade da vítima. M. não quis falar com a reportagem.
J. disse ter sido informado sobre a ordem de prisão há duas semanas pela própria amante, que tinha ido buscar um atestado de bons antecedentes para ele. "Foi um baque." O motorista afirma que ele e M. vivem entre "idas e vindas", mas ainda estão juntos. "Eu não sei se é gostar. É alguma coisa mais forte do que eu." Ele afirma que ambos estão em boas condições de saúde e recebem tratamento gratuito do governo.
"Este caso foi um circo", diz Magalhães. "Os dois estão vivos e saudáveis. Não houve tentativa de homicídio. Além disso, não existe essa tipificação na nossa legislação, tentar matar por meio do vírus da aids."
"Não lembro de nenhuma condenação no Brasil, um caso concreto", afirma Damásio de Jesus, professor convidado da especialização em Direito Penal da Escola Paulista de Magistratura. Em Espanha e Alemanha, no entanto, já são comuns os processos nos quais a transmissão do vírus foi classificada como tentativa de homicídio. A alegação é de que o réu sabia que tinha o HIV e mesmo assim manteve relações sexuais sem proteção. "As coisas lá acontecem antes", afirma Damásio.
O próprio Magalhães diz que há poucas chances de sucesso em recursos aos tribunais em Brasília, porque se trata de decisão de júri popular, referendada pelo Tribunal de Justiça. Depois da condenação a 8 anos de regime fechado e do recurso do réu, o TJ apenas adaptou a decisão para que J. possa pleitear a progressão da pena.
Para o professor titular de Direito Penal da Universidade Federal do Paraná, René Ariel Dotti, como J. perdeu o prazo para novo recurso ao TJ, sobram como alternativas uma revisão de pena ou um habeas-corpus ao Superior Tribunal de Justiça. Dotti diz ter dúvidas sobre a condenação. "Acho duvidoso. A tentativa de homicídio depende da probabilidade da contaminação. Se não há 100% de certeza de que em uma relação possa haver o contágio, não houve tentativa de homicídio."
"Tive culpa, mas ela também"
Entre brigas e reconciliações, o motorista J. mantém o relacionamento com M., que o acusou de tentativa de homicídio. Recentemente, deixou definitivamente a mãe dos quatro filhos para ficar com a amante. Conseguiu novo emprego e começou a se "reerguer". Mas então soube da ordem de prisão expedida contra ele, há duas semanas.
"Ela (M.) ficou abalada. E eu não acho justo. Sei que tinha minha parcela de culpa, mas ela também. Era responsabilidade do casal. Essa decisão de me prender foi um baque, quebrou minhas estruturas", afirmou J. ao Estado. O motorista está foragido e pediu à reportagem que não publicasse seu nome. Também pediu que a identidade da amante fosse preservada.
J. diz que tinha muitas parceiras e não sabe exatamente como contraiu o vírus da aids. Afirma que evitou contar a verdade para M. porque estava apaixonado. Ele garante que a ex-mulher não foi contaminada pelo HIV. Diz que seu salário é de R$ 650 e não tem dinheiro para pagar advogado. Teme procurar auxílio do poder público e ser preso. "Meu cérebro está congestionado, não sei o que fazer."
"Perdoei e amei até o fim", diz ativista de ONG
No Brasil, a maioria das mulheres com AIDS contraiu o HIV dos companheiros. Como M., que resolveu levar o caso à Justiça. Ou a telefonista Silvia Almeida, que continuou com o marido até ele morrer.
"Cada parceiro tem sua parcela de culpa. A infecção pelo HIV não é a mesma coisa que dar um tiro. E me preocupa recriminar e prender. São mais de 20 anos de AIDS no mundo e não sabemos quem são os culpados", afirma Silvia, de 43 anos. "Perdoei e amei meu marido até o fim. Ele não era só um doente de HIV, era pai, o homem que eu amava. Nenhum de nós saiu à rua querendo entrar na estatística", diz Silvia, que tem dois netos.
Ativista da organização não-governamental Grupo de Incentivo à Vida (GIV), que apóia soropositivos, ela já comandou grupos de mulheres. Silvia reconhece que na ONG não eram comuns casos de "perdão", como o seu. "Eram discussões acaloradas: 'Ele foi o culpado!' E eu dizia: 'Vamos parar com essa coisa de vítima.'"
Dos 433.067 casos registrados de portadores do HIV no País, 32,8% são de mulheres. Em 1986, para cada mulher infectada havia 15,1 homens com o vírus. A proporção mudou radicalmente: hoje é de 1,5 homem para cada mulher.
Réu atentou contra a vida, afirma promotor
Entidades temem que ordem de prisão por transmissão de HIV aumente preconceito contra portadores do vírus
Fabiane Leite
Quando denunciou o motorista J., em 2003, por tentar matar a amante ao transmitir o vírus HIV, o promotor Sérgio de Assis destacou que o acusado tinha confessado o crime e usado de meio insidioso (cruel, traiçoeiro) para praticá-lo.
"Sabendo ser portador do vírus (...), ele manteve várias relações sexuais com ela sem a devida proteção, não a informando a doença (...)", escreveu Assis na ocasião.
J. confirma que não contou a M., a vítima, sobre sua situação, mas afirma que fez isso por estar apaixonado. Ele e a amante discutiram na Justiça sobre quem teria se recusado a usar preservativo. M. disse que J. se negava. O motorista rebateu, afirmando que foi ela quem nunca quis manter relações com camisinha.
Segundo Assis, o caso na prática está encerrado. Até porque a informação de que a vítima ainda mantém o relacionamento com o motorista e teria se arrependido da acusação não pode mudar o quadro: a ação penal independe da vontade da vítima.
J. foi condenado pelo júri popular em 2004. Recorreu, mas a decisão foi mantida este ano pelo Tribunal de Justiça. "A autoria imputada ao apelante também ficou demonstrada, pois ele próprio admitiu ter mantido com a vítima relacionamento amoroso, inclusive sexual, (...) e para ela não ter contado ser portador do HIV, circunstância que era do conhecimento da esposa dele, tanto que com ele usava preservativo", anotou o relator da apelação do motorista no TJ, desembargador Mário Ferraz.
"Minha visão é de que todo ataque à vida deve ser responsabilizado. É o mesmo caso do aborto. O meu ponto de vista é o legal. Tem de haver responsabilização, porque transmitir o HIV é um meio de se atingir a morte", afirma Assis.
PERIGO
A notícia de que a Justiça determinou a prisão de J. foi considerada "perigosa" por advogados que assessoram organizações não-governamentais dedicadas à defesa dos direitos de portadores do HIV. Eles temem que a medida "ressuscite" argumentos considerados prejudiciais ao combate à epidemia de aids, como o de que os soropositivos seriam culpados ou vítimas, além de dar origem a uma "caça às bruxas" para identificar os responsáveis por infecções.
"Na verdade, as duas partes de um relacionamento têm sua responsabilidade", afirma o advogado Claudio Pereira, do comitê político do Fórum de Organizações Não-Governamentais de AIDS do Estado de São Paulo.
Pereira diz que é muito difícil provar, entre adultos, que uma determinada pessoa transmitiu o vírus a outra. "Não há como garantir", afirma. "Deixar firmar uma jurisprudência sobre isso é muito sério."
Américo Nunes, presidente do Fórum de ONGs Aids, concorda. Para ele, a decisão da Justiça no caso de J. poderá abrir espaço para mais preconceito contra portadores do HIV.
Fonte: O Estado de S.Paulo