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MEDICAMENTOS POR DECISÃO JUDICIAL

18/03/2007 - Folha de São Paulo

Visões antagônicas

FOLHA DE S.PAULO DEBATE SE É POSITIVO QUE O ESTADO SEJA OBRIGADO A FORNECER MEDICAMENTOS POR DECISÃO JUDICIAL


NÃO

Regulamentar é o melhor caminho

LUIZ ROBERTO BARRADAS BARATA

Ao formular as propostas que norteariam a implantação do SUS (Sistema Único de Saúde), os sanitaristas incluíram, acertadamente, o direito de todos os brasileiros terem acesso universal e integral à saúde, incluindo a assistência farmacêutica. Um avanço sem precedentes, sobretudo se lembrarmos que, antes da Constituição Federal de 1988, o atendimento gratuito em saúde era garantido apenas aos que contribuíam com a Previdência Social, e a distribuição de medicamentos pela rede pública era quase nula.

No Estado de São Paulo, cerca de 350 mil pessoas recebem regularmente medicamentos de dispensação excepcional, os chamados "medicamentos de alto custo". São aqueles mais caros, para doenças específicas e de tratamento prolongado, como Aids, esclerose múltipla, hepatite, doença renal crônica.

O investimento é de R$ 80 milhões por mês. São produtos de valor elevado, que custam, mensalmente, em alguns casos, o equivalente ao valor de um automóvel zero quilômetro. O cadastramento de novos pacientes cresce ano a ano: em 2003, por exemplo, o programa atendia 100 mil paulistas.

Atualmente, cerca de 150 tipos de medicamento de alto custo em 300 apresentações são dispensados pelo SUS/SP. Todos constam de lista padronizada, estipulada pelo Ministério da Saúde. Significa que passaram por avaliação de eficácia terapêutica. Para receber um desses remédios, basta, dentro dos critérios técnicos predefinidos, solicitar o medicamento à Secretaria de Saúde de seu Estado. Nos últimos anos, o avanço da indústria farmacêutica tem sido notório. Entretanto, muitos produtos recém-lançados possuem, em maior ou menor grau, eficácia similar à de remédios já conhecidos, disponíveis no mercado e inclusos na lista de distribuição da rede pública de saúde. No entanto, os novos remédios custam muito mais que os atualmente padronizados pelo SUS.

Outros produtos, comercializados fora do Brasil ou ainda em fase de testes, não possuem registro no país e não devem ser distribuídos pelo SUS, pois podem pôr em risco a saúde de quem os consumir. São justamente esses medicamentos que o Estado mais vem sendo obrigado a fornecer por pedidos na Justiça.

É importante ressaltar que a entrega de medicamentos por decisão da Justiça compromete a dispensação gratuita regular, já que os governos precisam remanejar recursos vultosos para atender situações isoladas.

Em São Paulo, a Secretaria da Saúde gasta cerca de R$ 300 milhões por ano para cumprir ações judiciais para distribuição de remédios não padronizados de eficácia e necessidade duvidosas. Com esse valor é possível construir seis hospitais de médio porte por ano, com 200 leitos cada.

Além de medicamentos, o Estado vê-se obrigado a entregar produtos como iogurtes, requeijão cremoso, queijo fresco, biscoitos, adoçante, leite desnatado, remédio para disfunção erétil, mel e xampu, dentre outros itens. Em 2004, por exemplo, chegou a ter de custear, por força de decisão judicial, a feira semanal para morador da capital.

Nesse sentido, a recente decisão da ministra Ellen Gracie, presidente do STF (Supremo Tribunal Federal), acerca da dispensação de medicamentos exclusivamente padronizados pelo SUS, regulamenta a assistência gratuita e universal que não deve ser confundida com a distribuição indiscriminada de qualquer tipo de medicamento à população. Os Orçamentos dos governos federal, municipais e estaduais são limitados, e por isso é fundamental estabelecer critérios e condutas para que esses recursos não sejam utilizados para satisfazer o interesse de grupos e empresas preocupadas em ganhar dinheiro à custa da saúde da população.

Já tarda no país uma discussão em torno da regulamentação constitucional da assistência farmacêutica gratuita. Obviamente, o poder público não deve se furtar de fornecer medicamentos, pois isso seria inadmissível. Mas a regulamentação, com uma lista criteriosa, ampla e com protocolos definidos, é o melhor e mais saudável caminho para evitar que alguns sejam privilegiados em detrimento da maioria.

LUIZ ROBERTO BARRADAS BARATA, 53, médico sanitarista, é secretário da Saúde do Estado de São Paulo.

SIM

Garantindo o exercício dos direitos

MARCELO SEMER

DURANTE longo período, o dogmatismo estabeleceu limites ao Judiciário, como aplicador neutro e apolítico de normas positivas, afastando-o do questionamento sobre valores, como de resto a própria teoria de um direito puro. Não é preciso ir longe para ver o desatino. Bastam as atrocidades praticadas quando nazismo e fascismo vigoraram sob estruturas formalmente legais.

No pós-guerra, germinou a idéia do novo constitucionalismo, moldado à luz da dignidade humana e com a incorporação, pelo Estado de bem-estar, de pautas econômicas e sociais. As novas Constituições passaram a assegurar expressamente o direito à educação, saúde, cultura e outros.

A revanche do positivismo, expressão do conservadorismo jurídico, deu-se com a teoria das normas programáticas, segundo a qual esses novos direitos eram meras "cartas de intenção" e só seriam aplicáveis quando ou se transformados em leis. Premidos pelos conflitos da vida real, com a insuficiência dos critérios propostos pela dogmática jurídica, os juízes começam a superar armadilhas do positivismo, pelas quais estariam obrigados a aplicar todas as leis, menos as fundamentais, e apreciar todos os conflitos, exceto os políticos.

Devem fazê-lo, sobretudo, por três motivos: a) princípios também são direitos, superiores às leis, pois previstos na Constituição; b) nenhuma lesão de direito pode deixar de ser apreciada, cláusula pétrea que representa o direito aos direitos; c) a função do Judiciário é impedir o abuso de poder, limitando a atuação dos demais poderes aos termos da Constituição.

É disso que trata a obrigatoriedade que vem sendo imposta ao Executivo, em decisões judiciais, quanto ao fornecimento de remédios a pacientes com gravíssimas moléstias e sem condições de adquiri-los. Situações-limites, nas quais muitas vezes a recusa pode significar a morte. No fundo, é uma questão relativamente prosaica, que, ante o tradicionalismo jurídico, ganha ares revolucionários: tutelar os direitos é garantir o seu exercício.

Se a Constituição determina que saúde é direito de todos e dever do Estado, impõe o acesso universal igualitário às ações e serviços para sua promoção e se funda na diretriz do atendimento integral, não pode o direito ser restringido por administradores.

Se o direito ao tratamento é direito à saúde, como negar que o acesso a medicamentos indispensáveis à vida também seja obrigação pública?
Ao Estado incumbe a adoção de políticas públicas que permitam ao indivíduo o gozo desses direitos, alocando verbas suficientes para a inclusão social que determina a Constituição, em detrimento de outras despesas menos relevantes, ainda que politicamente mais recompensadoras. Em relação aos direitos humanos de primeira geração, limitar o abuso do poder é impedir mecanismos que constranjam a liberdade. Aos direitos de segunda geração, como educação e saúde, é determinar a realização da prestação pública. Nesse caso, omissão é a própria violação do direito.

O STF começa agora a analisar a questão dos remédios. Tem importante precedente sobre políticas públicas em que se ancorar. Julgando o recurso extraordinário nº 436.996, acerca da obrigatoriedade de vagas na educação infantil, a Corte Suprema já decidiu que é possível ao juiz determinar a implementação de políticas públicas sempre que órgãos estatais comprometerem, com a omissão, a eficácia de direitos sociais.

Como se vê, a discricionariedade do administrador não é absoluta. Há uma pauta de ações sociais a que está vinculado pela Constituição, formando um mínimo de exigências que asseguram a dignidade humana. Prestações sociais não são meras decisões de conveniência e oportunidade.

O ativismo judicial não é propriamente novidade, ainda que utilizado com excessiva parcimônia por aqui. Nos EUA, foram decisões da Corte Suprema que abriram espaço para o fim da segregação racial. Entre nós, vários temas saíram das lides para mudar a lei: proteção aos direitos da companheira e incorporação de crianças de seis anos ao ensino fundamental, entre outros. Quiçá o direito à saúde saia fortalecido da discussão.

MARCELO SEMER, 41, juiz de direito em São Paulo, é presidente do Conselho Executivo da Associação Juízes para a Democracia.