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PATENTES E A TRIVIALIDADE DA VIDA
28/01/2007 - O Estado de São Paulo
O acesso aos medicamentos
Pouco mais de 25 anos depois da primeira evidência clínica da aids, esta doença se transformou no mais devastador dos agravos à saúde que a humanidade jamais enfrentou. O relatório 2006 do Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/aids (Unaids) estima que 38 milhões de pessoas em todo o mundo vivem infectadas pelo HIV, com cerca de 5 milhões de novos casos registrados a cada ano. A mortalidade anual gira em torno de 2,5 a 3 milhões de pessoas, ou seja, o equivalente a um holocausto a cada dois anos. O dado mais preocupante revelado no relatório é que tem aumentado o porcentual de crianças e jovens afetados pela doença.
Os efeitos da epidemia não se limitam aos causados diretamente pelo vírus da aids. A redução da proteção imunológica dá lugar ao aparecimento de outras infecções por diferentes vírus e bactérias oportunistas, aumentando o sofrimento das pessoas e a complexidade da atenção médica necessária. Além disso, o ônus econômico causado pela doença, em virtude do pesado custo por seu controle e sua prevenção e pela redução da força de trabalho, afeta o desenvolvimento de um punhado de nações subdesenvolvidas: a maior parte das mortes devidas à aids ocorre na faixa dos 19 aos 29 anos, ceifando no nascedouro a parcela mais produtiva da população. Afirma o relatório do Unaids que o impacto geral da aids na população mundial ainda não atingiu seu pico e seus efeitos demográficos serão sentidos até a segunda metade do século 21. As estimativas atuais sugerem que em 2015 as populações dos 60 países mais afetados pela epidemia terão 105 milhões de habitantes menos do que teriam na ausência da aids.
Em 1997, diante da enormidade da tragédia social enfrentada por seu país, o então presidente da África do Sul, Nelson Mandela, promulgou uma legislação que autorizava a emissão de licenças compulsórias para a fabricação de versões genéricas dos medicamentos contra a aids e permitia a importação paralela desses produtos. Esta última medida beneficiou países em desenvolvimento como Brasil e Índia, que então já produziam medicamentos genéricos. Imediatamente as grandes companhias farmacêuticas, por meio de sua associação norte-americana - PhRMA -, encetaram uma violenta campanha contra as medidas tomadas pelo governo sul-africano. Concomitantemente, 39 empresas instaladas no país, em sua maioria subsidiárias de grandes laboratórios transnacionais, acionaram judicialmente o governo sul-africano para derrubar aquele instrumento.
O governo norte-americano respondeu aos apelos da PhRMA: enquadrou a África do Sul na legislação norte-americana que permite sanções comerciais contra países que violem disposições relativas a propriedade intelectual e, em junho de 1998, excluiu aquele país de seu sistema de preferências tarifárias, o GSP. Ao longo de 1998 e 1999 o governo norte-americano continuou pressionando a África do Sul e só se retirou de cena por um ato do presidente Clinton, anunciado na Conferência de Seattle, da Organização Mundial do Comércio (OMC), gesto que foi interpretado como uma tentativa de destravar a Rodada Doha.
A posição da África do Sul suscitou um amplo movimento de apoio em todo o mundo, não só com manifestações e protestos, mas também com ações efetivas para a produção de anti-retrovirais - os medicamentos de combate à aids - a preços mais razoáveis. Produtores de matérias-primas e de medicamentos genéricos, sobretudo da Índia, conseguiam ofertar os principais medicamentos por uma fração muito reduzida do custo cobrado pelas multinacionais. A África do Sul, com um forte apoio da opinião pública mundial, venceu a batalha contra o privilégio absoluto das patentes, conseguiu minorar o sofrimento de milhões de indivíduos e pavimentou o caminho que conduziu à Declaração de Doha, um manifesto em favor do direito à vida.
Mas essa guerra está longe de acabar, porque embora haja muitos que defendam o instituto da patente como instrumento para a promoção do desenvolvimento nacional - objetivo que já buscava, na Inglaterra setecentista, o rei Jaime I ao incluir os privilégios para o inventor no Estatuto dos Monopólios -, há outros para quem o poder de monopólio conferido pelas patentes deve servir tão-somente aos objetivos das empresas. Para estes, o privilégio concedido pela sociedade se transformou em direito absoluto, que não deve ser afetado pela trivialidade do direito à vida.
*Marcos Oliveira é vice-presidente da Associação
Brasileira da Indústria de Química Fina (Abifina)