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LICENÇA COMPULSÓRIA NA TAILÂNDIA

07/01/2007 - MSF

Carta solicita não interferência do governo norte-americano

Carta à Condoleezza Rice, Secretária de Estado e Embaixadora Susan Schwab, Representante do Comércio dos Estados Unidos (USTR)

29 de dezembro de 2006

Honorável Condoleezza Rice, Secretária de Estado
Departamento de Estado dos Estados Unidos
2201 C Street NW
Washington, DC 20520
Embaixadora Susan Schwab, Representante do Comércio dos Estados Unidos(USTR)
600 17th Street, N.W.
Washington, DC 20508
Estados Unidos da América

Nova York, 29 de dezembro de 2006

Exma. Secretária Rice e Exma. Embaixadora Schwab:

Escrevemos para expressar a preocupação de Médicos Sem Fronteiras (MSF) frente à intervenção do Departamento de Estado dos Estados Unidos e do Representante de Comércio dos Estados Unidos na decisão de o governo tailandês emitir uma licença compulsória das patentes do medicamento efavirenz, utilizado no tratamento da Aids. Além disso, gostaríamos de explicar por que o governo dos Estados Unidos deve abster-se de tais ações.

O governo dos Estados Unidos vem constantemente reivindicando que o governo tailandês realize negociações com os detentores das patentes antes de emitir licenças compulsórias. Isso não é exigido no âmbito das regras da Organização Mundial do Comércio (OMC) para os casos em que a licença compulsória for para o uso governamental, nem é exigido na legislação dos Estados Unidos.

O que é previsto na OMC é que a Tailândia notifique "imediatamente" ao detentor da patente quando for emitir uma licença compulsória. A Tailândia claramente fez isso. O governo dos Estados Unidos não pode supervisionar a forma como a Tailândia lida com os detentores das patentes, uma vez que este país está em conformidade com as obrigações do Acordo TRIPS da OMC.

Em 2001, o governo dos Estados Unidos e todos os outros países membros da Organização Mundial do Comércio anunciaram a assinatura da Declaração da Doha sobre o Acordo TRIPS (Aspectos dos Direitos da Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio) e Saúde Pública. Este acordo histórico dizia o seguinte:

”Concordamos que o Acordo TRIPS não impede e não deve impede que os membros adotem medidas de proteção à saúde pública. Deste modo, ao mesmo tempo em que reiteramos nosso compromisso com o Acordo TRIPS, afirmamos que o Acordo pode e deve ser interpretado e implementado de modo a implicar apoio ao direito dos Membros da OMC de proteger a saúde pública e, em particular, de promover o acesso de todos aos medicamentos. Nesse sentido, reafirmamos o direito dos membros da OMC de fazerem uso, em toda sua plenitude, da flexibilidade implícita nas disposições do Acordo TRIPS para tal fim.”

A Tailândia obviamente está tentando fazer exatamente o que a Declaração de Doha afirmou que poderia. Respeitar a decisão da Tailândia em exercer seu direito previsto na Declaração de Doha é uma questão de extrema urgência para os pacientes tailandeses que necessitam do tratamento para Aids a preços acessíveis.

O medicamento efavirenz, recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para o tratamento da infecção causada pelo HIV/Aids, está atualmente protegido por patente na Tailândia e a situação monopolística tem afetado tanto o fornecimento como a capacidade aquisitiva no país. O preço praticado na Tailândia pelo detentor da patente Merck (1,400 baht/mês - US$39) é o dobro do que as empresas indianas de medicamentos genéricos estão oferecendo para o medicamento (650 baht/mês - US $18). Além disso, em várias ocasiões, a Merck tem sido incapaz de fornecer o medicamento na Tailândia.

Estima-se que existam pelo menos 12.000 pessoas na Tailândia que estejam precisando atualmente de efavirenz. No entanto, em virtude dos custos e das dificuldades no fornecimento, o número de indivíduos que estão recebendo o medicamento é significativamente menor.

MSF tem trabalhado na Tailândia desde 1976. A organização começou a fornecer tratamento ARV às pessoas com HIV/Aids em 2000 e tem presenciado o desenvolvimento do programa tailandês de tratamento da Aids. A produção de medicamentos genéricos é a espinha dorsal do programa tailandês de tratamento universal de HIV/Aids. Antes da produção de medicamentos genéricos, o custo do tratamento padrão de HIV/Aids na Tailândia era de mais de 33.330,00 baht por paciente pode mês (US $924), e apenas 3.000 pessoas estavam tendo acesso. Em 2002, a Tailândia lançou uma versão genérica da terapia tripla para o tratamento de HIV/Aids, resultando em uma queda de 18 vezes no custo do tratamento. Graças a isso, mais de 85.000 pessoas com HIV/Aids estão hoje recebendo o tratamento.

O UNAIDS relata que a Tailândia é o único país do Sudoeste da Ásia que garante acesso ao tratamento da Aids para mais da metade do número total de pessoas que dele necessita. Tanto a OMS (em agosto de 2005) como o Banco Mundial (em agosto de 2006) previram um aumento dramático dos custos dos medicamentos na Tailândia por causa da necessidade de os pacientes migrarem para medicamentos mais novos e mais caros nos casos de ocorrência de resistência e toxicidade. Ambas organizações recomendam o uso das salvaguardas da saúde pública reconhecidas na Declaração de Doha sobre o Acordo TRIPS e Saúde Pública.

A emissão e execução de uma licença compulsória, permitindo tanto a importação como a produção local, irá aumentar o fornecimento e capacidade aquisitiva para a compra do efavirenz, beneficiando, assim, pacientes tailandeses. A criação de um mercado competitivo de medicamentos genéricos para o efavirenz e para medicamentos de Aids mais novos que são patenteados na Tailândia e em outros mercados é fundamental para a manutenção de pacientes sob tratamento, já que há um aumento da resistência natural à terapia ARV de primeira escolha. Além disso, a existência de um mercado competitivo é igualmente importante para ampliar de forma significativa o acesso ao tratamento ARV.

A decisão da Tailândia terá importantes conseqüências, não apenas para o próprio país, como também para qualquer outro país em desenvolvimento que necessite obter produtos genéricos de baixo custo. Se a Tailândia for até o fim e começar a comprar de fornecedores de versões genéricas, criará um mercado global para produtos genéricos mais amplo, estimulando a concorrência e reduzindo preços em todas as partes para os produtos mais novos. Muito embora os benefícios da expansão da concorrência com medicamentos genéricos seja amplamente valorizada, muitos países em desenvolvimento têm sido relutantes em emitir licenças compulsórias com medo de que o governo dos Estados Unidos se oponha a tais ações e exerça pressão.

Pedimos que o governo dos Estados Unidos abstenha-se de quaisquer oposições ou interferências frente aos esforços que o governo tailandês vem fazendo para utilizar as flexibilidades da OMC para comprar medicamentos genéricos para Aids - incluindo pressões ou tentativas de convencer o país a realizar negociações com a Merck, ao invés de seguir em frente para executar a licença compulsória que foi emitida.

Atenciosamente,

Nicolas de Torrente
Diretor Executivo
Médicos Sem Fronteiras (MSF-USA)

Paul Cawthorne
Chefe de Missão, MSF-Tailândia


Fonte: Médicos Sem Fronteiras