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LISTA DE SCHINDLER
03/09/2006 - Folha de São Paulo
Combate à Aids tem "lista de Schindler"
diz médico Presidente da Sociedade Internacional de Aids quer acesso universal até 2010
Primeiro presidente da Sociedade Internacional de Aids nascido no Terceiro Mundo, o médico infectologista argentino Pedro Cahn, 58, professor da faculdade de medicina da Universidade de Buenos Aires, diz que o acesso ao tratamento do HIV no mundo é como uma "lista de Schindler": alguns portadores são escolhidos para ser salvos, enquanto outros são condenados a morrer. Por dia, 11,2 mil pessoas se infectam com o vírus e há cerca de 8.000 mortes relacionadas à Aids no mundo, de acordo com dados do Unaids, o programa da ONU para HIV/ Aids. Com cerca de 11 mil membros em 153 países, a entidade é formada por profissionais que atuam no estudo, na prevenção e no tratamento da Aids. Leia trechos da entrevista que o infectologista concedeu à Folha.
FOLHA - O que significa a escolha do sr. para presidir a sociedade?
PEDRO CAHN - É uma mensagem forte que a Sociedade Internacional de Aids está enviando sobre seu compromisso com o que acontece em todos os países do mundo, e não somente com os mais desenvolvidos.
FOLHA - Na conferência mundial, o sr. afirmou que a América Latina parece estar ausente da agenda dos organismos internacionais, em razão da preocupação com a África.
CAHN - Na América Latina, temos aproximadamente 2 milhões de pessoas vivendo com HIV. O problema é que a porcentagem de pessoas da região que tem acesso ao tratamento está em cerca de 60%, melhor que outras regiões, como a África, onde o número fica entre 10% e 15%. Mas isso é impulsionado pelos programas de alguns países. Brasil, em primeiro lugar, e depois Argentina, México, Chile, Uruguai, Venezuela e Cuba. No resto dos países, o acesso é muito pequeno ou nulo. E ainda há muita gente que precisa de tratamento e ainda não sabe.
FOLHA - A situação é grave?
CAHN - Sim. A situação da África, como um todo, é mais grave. Mas, quando alguém contrai o HIV na América Latina e não recebe tratamento, morre como se estivesse na África. É o caso, por exemplo, das pessoas que vivem no Haiti e Honduras.
FOLHA - Quanto dinheiro é preciso para atender a todos que têm HIV?
CAHN - Para atingir o acesso universal à prevenção, cuidado e tratamento, em 2008 necessitaremos de US$ 23 bilhões. Veja a magnitude do esforço que temos de fazer. Estamos longe. Como os organismos internacionais não querem firmar um compromisso numérico, então estamos falando de um acesso parcial. Na verdade, trata-se de uma lista de Schindler, na qual alguns entram para salvar suas vidas e outros não -são condenados ao sofrimento e à morte. Devemos manter a pressão sobre os líderes do G8 para que cumpram seu compromisso de dar acesso universal em 2010. Agora, pretendemos pressionar mais intensamente.
FOLHA - O pequeno número de produtores dos princípios ativos dos medicamentos para conter o vírus também complica o acesso?
CAHN - As substâncias são produzidas por poucas indústrias, mas não faltam. O que falta é vontade política para investir dinheiro para que as pessoas não continuem morrendo de uma doença tratável. Se há uma tragédia natural, um tsunami, surge toda a ajuda. No caso da Aids, são mil tsunamis juntos.
FOLHA - O sr. acredita na cura da Aids? Para quando?
CAHN - Quando ocorrer, o problema ainda será o mesmo: como fazer para o medicamento que cura chegar a todos?
FOLHA - Como o sr. avalia a experiência do Brasil?
CAHN - É a mais bem-sucedida do mundo no que se refere ao tratamento dos portadores e ao não aceitar qualquer preço dos produtores. O Brasil tem muito a ensinar, particularmente a países da África e da Ásia.
FOLHA - Por que não foi utilizado o mecanismo de quebra de patentes?
CAHN - O ideal é sempre tentar um acordo, negociar com as companhias fabricantes para não chegar a esse ponto. Esse é o último recurso. O Brasil esteve próximo disso no ano passado, mas, no final, foi feito um acordo com a farmacêutica.