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Ministério da Sáude x Abbott

07/01/2006 - Revista Veja

Um acordo sem pé nem cabeça

Negociação entre o laboratório Abbott e o
Ministério da Saúde, para baixar preço de
remédio antiaids, é uma piada gerencial

Em outubro passado, o ministro da Saúde, Saraiva Felipe, descreveu como histórico um acordo que acabara de assinar com o laboratório farmacêutico americano Abbott para reduzir o preço de um dos remédios que integram o coquetel antiaids. Sob a ameaça de ter uma de suas patentes quebradas, o laboratório baixou de 1,17 dólar para 63 centavos de dólar o custo de cada cápsula do Kaletra, um dos inúmeros medicamentos que dificultam a replicação do vírus HIV no organismo humano. Além disso, o Abbott comprometeu-se a doar, exclusivamente no ano de 2006, 3 milhões de dólares em medicamentos de todo tipo ao Ministério da Saúde. Em troca, o governo prometeu não quebrar a patente do Kaletra até 2011 e não alterar, até lá, nenhuma cláusula do contrato – ao menos unilateralmente. Segundo os cálculos do ministro, o acerto traria ao governo uma economia de 339,5 milhões de dólares. A euforia de Saraiva Felipe durou pouco. A direção do programa antiaids do próprio governo, os laboratórios farmacêuticos concorrentes e as ONGs especializadas em saúde criticaram fortemente os termos da negociação, recheada de lances curiosos.
Refeitas as contas, o governo, nessa negociação, entregou os anéis e os dedos. A matemática claudicante do ministro tem como base (e projeta para o futuro) o preço do Kaletra atualmente praticado. Só que o preço dos medicamentos cai naturalmente até 70% em cinco anos. Com o avanço tecnológico, novas drogas surgem no mercado, remédios ficam obsoletos e seus preços despencam. Estima-se que o Kaletra custará menos de 50 centavos de dólar em apenas três anos. Mas, pelo acordo, o governo continuará pagando mais pelo remédio. É justamente por esse fator que os acertos anteriores do governo brasileiro com laboratórios estrangeiros fixavam prazos mais curtos, de no máximo um ano.
Qual é a explicação do ministro da Saúde? Segundo sua assessoria, o acordo fixa um preço, mas não obriga o governo a comprar o Kaletra até 2011. Se houver um novo medicamento no mercado, mais barato e eficiente, a droga poderá ser substituída. O ministério diz ainda que o próprio acordo já prevê, neste ano, a possibilidade de obsolescência do medicamento do Abbott. Nesse caso, o governo compromete-se a pagar 1,04 dólar até 2011 para cada cápsula de uma versão nova do próprio Kaletra, chamada Meltrex. Esse novo medicamento, admite o governo, ainda terá de passar pelo crivo da Vigilância Sanitária brasileira, "por uma questão de segurança dos pacientes". Ou seja, o governo se comprometeu a pagar mais por um medicamento que ainda não existe no mercado brasileiro e que poderá ter concorrentes mais eficientes – e baratos.
A resposta do ministro apóia-se em sofismas infantis. O fato de o governo não ser obrigado a comprar volumes fixos do Kaletra é uma boa notícia apenas por um motivo: porque o preço estipulado no contrato é obviamente desfavorável para o Estado. Além disso, ao admitir a obsolescência do remédio já em 2006, por que o governo se deu ao luxo de assinar um acordo para os próximos cinco anos sobre um medicamento que logo será superado por outros? Pedro Chequer, diretor do Programa Nacional de DST/Aids do próprio Ministério da Saúde, admite que o acordo tem problemas. Diz, por exemplo, que a próxima versão do Kaletra é apenas um truque comercial, sugerindo que nem deveria ter sido incluída no acordo. "O Meltrex é uma maquiagem do Kaletra. Ainda não se conhece sua real eficiência e é só uma forma de o laboratório perpetuar sua patente. É sabido também que o Abbott já vende o Kaletra a 23 centavos de dólar em outros países. Os preços cobrados no Brasil são altíssimos", diz ele. Segundo Chequer, os laboratórios cobram preços altos justamente porque sabem da tendência de queda drástica ao longo dos anos. Desse ponto de vista, na melhor das hipóteses, o governo brasileiro caiu num conto-do-vigário. O presidente do Abbott, Santiago Luque, não quis atender a reportagem de VEJA.
A forma como o contrato foi amarrado entre o laboratório Abbott e o Ministério da Saúde surpreendeu a indústria e até integrantes do governo. Tudo começou com uma portaria amalucada assinada pelo ministro da Saúde anterior, Humberto Costa, em junho do ano passado. A portaria declarava de interesse público os medicamentos vindos das associações dos princípios ativos lopinavir e ritonavir, que compõem o Kaletra. Na prática, seria o primeiro passo para a emissão de licenças compulsórias, a famosa quebra de patentes. Profissionais ligados à indústria farmacêutica consideraram a portaria uma balela, mesmo os que defendem a ferro e fogo a quebra de patentes. Segundo eles, os laboratórios oficiais estão em frangalhos e seriam incapazes de produzir os medicamentos com patente quebrada. O laboratório de Farmanguinhos, o maior deles, nem tem dinheiro para consertar algumas de suas máquinas.
Foi nesse quadro caótico que as negociações tiveram início no ano passado, pela primeira vez sem a presença de representantes do Programa Nacional de DST/Aids. O resultado foi um acordo ainda mais absurdo que o de Saraiva Felipe. Seu texto previa que os termos da negociação seriam sigilosos. Proibia ainda o país de quebrar a patente de qualquer medicamento produzido pelo laboratório Abbott. O acordo chegou a ser anunciado oficialmente em julho, mas foi cancelado pelo atual ministro, que o renegociou em bases um pouco melhores, mas ainda assim ruins. "A proposta anterior foi considerada insatisfatória por Saraiva Felipe", informa a assessoria do ministro. O ex-ministro Humberto Costa retruca: "Não há por que dizer que as eventuais falhas do atual acordo seriam relacionadas com o meu acordo. Se mantiveram algo ruim, a responsabilidade é deles".
Segundo Chequer, o primeiro acordo foi fechado "sob muita pressão dos Estados Unidos e ameaças de retaliação econômica". É de compreender. Empresas privadas têm o objetivo de buscar lucros. Foi isso que fez o Abbott. Governos têm a obrigação de defender o interesse econômico de empresas de seus países. Foi isso que fez o governo americano. O único que não cumpriu seu papel foi o Ministério da Saúde. Uma pena. Por distribuir gratuitamente medicamentos aos soropositivos, o programa antiaids brasileiro tem projeção mundial e o apoio de organizações internacionais de saúde. A sobrevida média dos pacientes após o diagnóstico, que era de dezoito meses em 1995, subiu para 56 meses em adultos e 67 meses em menores de 13 anos. O programa também ganhou destaque por recorrer à ameaça de quebra de patentes farmacêuticas dos grandes laboratórios, como uma forma de forçá-los a reduzir o preço de remédios que integram o coquetel antiaids. Ainda que nenhuma patente jamais tenha sido quebrada, a simples ameaça conferia ao programa brasileiro uma imagem "cult" junto aos movimentos antiglobalização, que preferem colocar nas grandes empresas a culpa pelas mazelas dos países emergentes. O apoio mundial ao programa antiaids brasileiro pode ter começado a morrer com o acordo entre o Ministério da Saúde e o laboratório Abbott. ONGs e entidades especializadas em saúde temem que negociações como essa engessem o orçamento público, inviabilizem a distribuição gratuita de medicamentos antiaids e virem referência para acordos futuros.