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ENTRE DUAS ÁFRICAS

10/10/2005 - Revista Veja

Uma visão sobre a industria farmacêutica

Não é todo dia que um cineasta com o talento de Fernando Meirelles surge no cenário nacional – ou, feitas as contas, no estrangeiro. Por isso mesmo, dados o prestígio de Cidade de Deus e a dimensão das expectativas geradas por ele, se poderia supor que, em sua aventura seguinte, Meirelles estaria fadado a desapontar. Definitivamente, não é esse o caso. O Jardineiro Fiel (The Constant Gardener, Estados Unidos/Inglaterra, 2005), que estréia nesta sexta-feira no país, confirma não apenas sua capacidade, como também sua força. Meirelles trabalha aqui com um elenco e um produtor ingleses, e em locações pouco amigáveis – a maior parte da ação transcorre em Londres, cuja prefeitura não costuma facilitar a vida das equipes de filmagem, e no Quênia, cuja boa vontade para com o projeto veio com o contrapeso do calor, do relativo caos de um país pobre e de técnicos pouco familiarizados com as exigências de um longa-metragem. Mais complicado ainda é o fato de essa ser uma adaptação de um dos mais britânicos escritores da atualidade – o ex-diplomata e ex-agente secreto John Le Carré, que por contrato tinha direito à aprovação de elenco, equipe, roteiro e montagem final. Obstáculos como esses já derrotaram um sem-número de estrangeiros convidados a trabalhar com dinheiro americano. Mas, embora seja um trabalho de encomenda, O Jardineiro Fiel é também, de cabo a rabo, um filme com a assinatura de Meirelles, sem nenhum daqueles sinais sempre tão evidentes de interferência do alto comando.

O protagonista de O Jardineiro Fiel é Justin Quayle (Ralph Fiennes), diplomata de médio escalão tido como vacilante e ineficaz. Sua maior utilidade, na visão de sua chefia, é como peça ornamental. Deveria ser essa, também, a função de sua mulher, a bela e jovem Tessa (Rachel Weisz). Mas, postados no Alto Comissariado de Nairóbi, os Quayle se tornam motivo de irritação e embaraço para o governo inglês, por causa do brio de Tessa e da inabilidade, ou falta de vontade, do marido em controlá-la. Espécie de versão radical da princesa Diana, ela visita favelas, inspeciona campos de refugiados e investiga obsessivamente as atividades de um gigantesco conglomerado farmacêutico, disparando cartas, relatórios e denúncias para o governo, ONGs e para a própria corporação. É quase certo que seja essa a razão de Tessa aparecer brutalmente assassinada num ponto remoto do país, no episódio que dá início ao filme. Tão certo, na verdade, que todas as forças em ação no Quênia se unem sub-repticiamente para forjar uma história de banditismo e adultério (Tessa viajava com um médico negro, ausente da cena do crime), e também para demover Justin antes que ele se torne fonte de novos constrangimentos.

Essa estrutura convencional de thriller não dura muito nas mãos de Meirelles. A cena que abre O Jardineiro Fiel, aliás, já anuncia que ela será trocada por algo muito mais interessante: na pista de um aeroporto, assiste-se a uma despedida amorosa entre marido e mulher, que está partindo com o médico negro, Arnold Bluhm, naquela que será sua viagem final. À medida que Tessa e Arnold caminham em direção ao avião, ambos são tragados pela luz branca e intensa da África (a excelente fotografia é, de novo, do César Charlone de Cidade de Deus). Um momento corriqueiro, portanto, mas que prenuncia o caos. A despeito do tom de denúncia da trama – o conglomerado farmacêutico está usando a população miserável do Quênia como cobaia para um remédio com efeitos colaterais potencialmente letais –, esse será um caos de ordem íntima. Contrariando sua docilidade habitual, Justin decide que a única coisa que ainda pode fazer pela mulher morta é continuar sua cruzada, numa jornada que o levará de Berlim ao Sudão – e, acima de tudo, a seu próprio interior. O que vai transpirar ao longo do filme é que Justin, um jardineiro devoto da beleza e da serenidade de suas flores, sente que não deu a Tessa mais do que sua complacência, deixando-se manter na ignorância das atrocidades que a investigação da mulher ia revelando. Aprender a conhecê-la por meio de seu trabalho será, assim, seu grande gesto romântico.

Rachel Weisz, como Tessa Quayle: uma versão radical e militante da princesa Diana

Segundo Meirelles, o material rodado em oito semanas no Quênia e outras tantas na Europa era tão extenso que dele se poderia ter feito um thriller cheio de suspense e cenas de perseguição ou, da mesma forma, um drama político completo. Na sala de edição, entretanto, Meirelles e a montadora Claire Simpson perceberam que o melhor e mais instigante Jardineiro Fiel seria esse que trata da paixão de Justin por Tessa. O desempenho de Ralph Fiennes, soberbamente matizado e contido, influiu nessa decisão. Mas a outra parte do mérito por ela deve ser atribuída aos instintos certeiros de Meirelles. Bombardeado por Hollywood com quase setenta roteiros na esteira do sucesso de Cidade de Deus, o brasileiro chegou a se ligar brevemente a Colateral, no qual dirigiria Russell Crowe (e que depois foi feito com Tom Cruise e o diretor Michael Mann). Mas desistiu do projeto em favor de O Jardineiro Fiel – disponível no Brasil pela editora Record – por ele ser mais barato (25 milhões de dólares), e assim lhe garantir mais liberdade, e por acreditar que a história de Le Carré oferecia uma perspectiva original sobre uma indústria que, apesar de todos os benefícios que proporciona, detém um poder desmedido – e não hesita em usá-lo. Em entrevista a VEJA, o diretor disse que sua maior tristeza foi ter de descartar, em prol do ritmo narrativo, uma trama paralela sobre dois africanos tratados com o insuficientemente testado (e fictício) medicamento Dypraxa. Essas seqüências ficaram no chão da sala de montagem, mas muitas outras foram eliminadas antes, no processo de refeitura do roteiro – assinado pelo inglês Jeffrey Caine, parcialmente reorganizado por Bráulio Mantovani, também de Cidade de Deus, e palpitado por John Le Carré. As vítimas necessárias dessa limpeza foram as intrincadas referências ao sistema de classes inglês e trechos substanciosos da trama.

Meirelles cortou muito, mas poderia ter cortado ainda mais. A tese política do filme, de que os governos hoje atuam como lacaios das grandes corporações em cantos do globo onde a lei é mais, digamos, flexível, é provocadora e oportuna. Mas, se há algo que faz peso em O Jardineiro Fiel e às vezes o puxa para trás, são o excesso de exposição sobre o Dypraxa e as maquinações da indústria farmacêutica na África (de acordo com Le Carré, a sujeira que ele expõe em seu livro não é nada perto da realidade apurada em sua pesquisa). Aquilo que funciona na página compete no filme com a pungência do amor de Justin e com a vibração com que Meirelles filma um continente ainda mais tumultuado do que o seu. O brasileiro é um desses raros cineastas que florescem diante do imprevisto e do inesperado, e o excesso de enredo subtrai do prazer que é vê-lo em ação. Há que reconhecer a sensatez e a generosidade de Le Carré em não exercer os vários vetos a que seu contrato o autorizava: a única expectativa que Fernando Meirelles reverte com O Jardineiro Fiel é a de que os filmes são sempre piores do que os livros dos quais se originam. Este aqui, sem dúvida, é melhor.

O discreto charme de Ralph Fiennes

Revelado como um comandante nazista em A Lista de Schindler e consagrado como herói romântico em O Paciente Inglês, Ralph Fiennes parece deter um quase-monopólio sobre o papel do inglês de classe alta, patologicamente reservado e polido. Na superfície, é de novo esse o personagem que ele interpreta em O Jardineiro Fiel. Mas o que Fiennes demonstra é que o sotaque não faz o inglês. Além dele e da discrição, pouco têm em comum o autodestrutivo Conde Almásy de O Paciente Inglês, o amargo Bendrix de Fim de Caso ou o doce e vago Justin Quayle do filme de Fernando Meirelles – assim como eles, por sua vez, provavelmente só se irmanam com o próprio ator na sua reserva contumaz. Fiennes, de 42 anos, é tão hábil em camuflar os aspectos preponderantes de sua personalidade que, a cada filme, em vez de saber-se mais do que antes sobre ele, fica-se sabendo menos.

Essa qualidade rende uma cena antológica em Jardineiro. Avisado da morte de sua mulher, Justin Quayle permanece impassível. Apenas, numa reação que a platéia nunca calcularia, agradece ao colega a consideração de dar-lhe a notícia. Por seu rosto, porém, passam traços quase imperceptíveis de dor, confusão e pânico. "Eu, por mim, estaria burilando essa cena até hoje. Mas o Fernando argumentou que há algo de especial numa tomada que ainda é espontânea", disse Fiennes a VEJA durante uma visita ao Rio de Janeiro, na semana passada.

Como o próprio ator frisa, ele não integra a lista "A" de Hollywood, aquela que recebe todos os melhores scripts primeiro. Por isso seu currículo inclui trabalhos excepcionais, como o Spider de David Cronenberg, e outros que têm a distinção apenas de garantir algum poder de barganha ao ator. "Encontro de Amor, que fiz com Jennifer Lopez, não é um ótimo filme. Mas milhões de pessoas tiraram duas horas de satisfação dele. Se algo é popular e não me ofende, por que não fazê-lo?", explica. É mais ou menos por essa razão que Fiennes fará Lorde Voldemort em Harry Potter e o Cálice de Fogo – é divertido, não ofende e metade dos seus amigos o fez jurar que não deixaria a oportunidade passar (a outra metade implorou que ele a recusasse). Quando sente que está se esgotando, ele vai se recarregar no teatro. E em especial com Shakespeare. "Se a questão é roteiro, qual poderia ser melhor do que os dele?"

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