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REMÉDIOS VIA JUSTIÇA

03/10/2005 - Folha de São Paulo

Estados tentam barrar

Os governos estaduais querem barrar, por meio de lei, o número crescente de decisões judiciais que obrigam o fornecimento de remédios e outros tratamentos de alto custo que não são pagos pelo SUS (Sistema Único de Saúde). Projeto nesse sentido já está sob análise do governo federal.
Secretarias da Saúde afirmam que precisam combater o custo crescente das ordens judiciais e acusam a indústria farmacêutica de estar por trás delas. Apontam, como exemplo, casos em que os pedidos são feitos por médicos ligados a laboratórios e em que as multinacionais chegam a tentar ser co-autores das ações.
Os pacientes e seus defensores, no entanto, temem que a proposta dificulte mais ainda o acesso aos remédios. Para muitos deles, esperar mais pelo tratamento pode custar a vida.
A proposta prevê que os juízes só poderão conceder os tratamentos após manifestação dos governos, em até 72 horas. Atualmente, os Estados não precisam ser consultados para essa decisão. Além disso, estabelece que só pacientes do SUS (inúmeras ações beneficiam usuários de planos de saúde) poderão ser beneficiados e exige a concessão apenas de remédios comercializados no país, sendo que a maioria das drogas de alto custo hoje é importada.
"Os Estados estão em uma situação de quase asfixia", diz Fernando Cupertino, vice-presidente do Conselho Nacional de Secretários de Saúde e secretário da Saúde de Goiás. "É justo comprar R$ 187 mil em remédios que não têm sua eficácia comprovada?"
As secretarias questionam ainda as ordens para fornecer remédios ainda não incorporados ao SUS e drogas cujo custo-benefício não justifica a compra em larga escala. Também querem que usuários de planos de saúde passem a acionar as operadoras, e não o governo, quando não tiverem acesso a um tratamento.
Só neste ano, foram gastos em Goiás R$ 2,9 milhões com as decisões judiciais, enquanto em todo o ano de 2004 o valor foi de R$ 1,4 milhão. Mato Grosso do Sul teve um aumento de mais de 200%.
O secretário estadual da Saúde do Rio, Gilson Cantarino, já recebeu seguidas ameaças de prisão para fornecer tratamentos que o SUS não garante. Mas sua assessoria diz que a maioria dos pedidos é perfumaria, até a compra de xampu e sabonete líquido já foi ordenada pela Justiça.

Crescimento

Segundo a Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, 10 mil pacientes recebem tratamentos via ordens da Justiça, e os custos com as ações em 2005, de R$ 86 milhões, cresceram 79% em relação a 2004, já correspondendo a 30% do gasto no programa oficial de remédios de alto custo. Em comparação, o governo gasta R$ 284 milhões para 250 mil pessoas no programa dos medicamentos mais caros bancados pelo SUS.
Os remédios que chegam por via judicial são mais dispendiosos porque não são comprados por licitação, onde ganha o melhor preço. Para os Estados, isso explica porque as ações atraem tanto o interesse dos laboratórios.
"Há, sim, uma mobilização de interesses das multinacionais", diz Cupertino. Indústrias farmacêuticas rechaçam as acusações.
Para Mario Scheffer, autor de estudo sobre as decisões judiciais no campo da Aids, mudanças nos prazos para a aprovação da entrada de produtos no país seriam suficientes para diminuir o número de ações. Quanto mais demora o registro, quando já há aprovação em outros países, maior a pressão via Judiciário. "O projeto de limitar as ações atinge o direito dos pacientes de buscar a saúde por meio do Judiciário", afirma.
Há mais de dois anos, o governo não revisa a lista de remédios de alto custo pagos pelo SUS, o que também explica a pressão das ações.

Dever de casa

"Se há influência do laboratório, que o governo puna o laboratório, não o paciente", diz Anselmo Prieto Alvarez, chefe da assistência jurídica da capital paulista, de onde partiram cerca de 3.000 ações para beneficiar pacientes carentes. "Não devemos considerar a exceção como regra."
Na sua experiência, Alvarez vê faltar o básico para a manutenção da qualidade de vida, como fraldas geriátricas e fitas para o controle do nível de glicose no sangue dos diabéticos. "A gente vê uma certa desorganização [das secretarias]", afirma.
Defensores dos pacientes levantam ainda outras hipóteses para explicar a sufocação dos Estados. Os governos não estariam fazendo o "dever de casa": a maioria dos Estados não cumpre o mínimo de investimentos obrigatórios em saúde, segundo relatórios recentes do Ministério da Saúde.
Além disso, a Controladoria Geral da União divulgou em agosto passado que encontrou diferença de R$ 13,3 milhões entre o que cinco Estados (AM, MG, MS, SC e RN) receberam do governo federal para pagar remédios de alto custo e o que foi efetivamente dispensado aos pacientes. Isso por causa de falhas nos sistemas de controle de Estados e do Ministério da Saúde.
A auditoria ocorreu por sorteio, entre janeiro e junho de 2004, e a controladoria determinou que o governo federal recupere os recursos. (Fabiane Leite)