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Bebê pega Aids em transfusão
26/06/2003 - CORREIO BRAZILIENSE
Foram 14 transfusões de sangue de 11 doadores diferentes.
Com dois meses de vida, menina recebe sangue de 11 doadores. Dois anos depois, testes revelam que um deles estava contaminado. Investigação de hemocentro descarta risco de outras pessoas terem sido infectadas
Renato Alves e Maria Ferri
Da equipe do correio
Uma recém-nascida foi infectada com o vírus da Aids após transfusão de sangue, no Hospital Regional da Asa Sul (HRAS), em 2001. A menina passou dois meses internada para se recuperar de uma cirurgia que havia feito para desobstruir as vias biliares, que ficam na região do fígado. Na época em que foi operada, ela tinha 62 dias de vida. Recebeu 14 transfusões de sangue de 11 doadores diferentes, no período de internação. Os pais da criança só souberam que ela portava HIV no dia 5 de maio de 2003, quando a bebê realizou testes no Hospital das Clínicas, em São Paulo (SP). O sangue foi submetido a exames de triagem para um futuro transplante de fígado.
É a primeira vez que alguém é contaminado com sangue do Hemocentro de Brasília, que recebe uma média mensal de 4 mil doações e abastece toda rede pública de saúde e hospitais militares do Distrito Federal. O caso também é raro no Brasil. Só há registro de outro igual em Ribeirão Preto (SP), onde uma menina foi infectada ao receber transfusão de sangue, também em 2001.
O hospital paulista comunicou a doença da menina brasiliense à Fundação Hemocentro de Brasília dois dias depois de o teste de HIV da criança dar positivo. O Hemocentro fez mais dois exames na garota. Ambos deram positivo. Foi aberta investigação interna. O órgão descobriu que um dos 11 doadores do sangue usado na transfusão da bebê estava com Aids. Os pais da criança também foram submetidos ao teste de HIV. O resultado dos dois deu negativo.
Investigação do hemocentro afasta risco de outra pessoa ter sido contaminada pelo sangue desse doador. Do lote usado na criança, apenas outro paciente recebeu sangue. Era um doente de leucemia, que morreu no dia da transfusão, no Hospital Regional de Taguatinga.
Janela imunológica
Não existe exame que elimine totalmente o risco de contaminação pelos vírus da Aids e Hepatite C por transfusão. ‘‘Foi uma fatalidade. Em nenhum lugar do mundo foram desenvolvidos exames capazes de detectar essas doenças sem considerar a janela imunológica’’, explica a vice-diretora do Hemocentro, Regina Gatto. A janela imunológica é o período entre a contaminação e a possibilidade de detecção do vírus no organismo.
O Hemocentro usa testes capazes de acusar o vírus do HIV após 22 dias da contaminação. No caso da Hepatite C, o prazo é de 70 a 82 dias. ‘‘O Hemocentro não identificou o vírus do HIV porque o doador deve ter cedido sangue antes de completar 22 dias da contaminação’’, acredita Regina Gatto.
O Hemocentro analisou o plasma do sangue do doador, que estava no estoque. O material foi submetido a teste em Brasília e não foi detectado o vírus. A bolsa com o plasma foi enviada para a Fundação Osvaldo Cruz (Fiocruz), no Rio de Janeiro, que realiza o Teste de Ácido Nucleico (NAT). Essa análise identifica os anticorpos para o HIV após 11 dias da contaminação.
A triagem do NAT diminui em 50% o período da janela imunológica, mas não o elimina. Até o fechamento desta edição, o Hemocentro não havia recebido o resultado do NAT. Segundo Regina Gatto, a Fiocruz informou oficialmente ontem que o exame deve chegar ao DF até o começo da próxima semana.
Mesmo que o resultado dê negativo, não há como descartar a possibilidade desse sangue ter sido o que contaminou a menina. ‘‘Fica difícil saber ao certo quando o doador contraiu o HIV, já que vão restar 11 dias sob suspeita’’, conta o subsecretário de Vigilância à Saúde do DF, Elias Tavares.
Os dados dos doadores do sangue recebidos pela criança foram levantados a partir do prontuário da paciente, no HRAS. O Hemocentro de Brasília mantém um banco de dados informatizado com todas as informações sobre os doadores e o material coletado. Seis das 11 pessoas que doaram o sangue à menina são doadores regulares do Hemocentro e já fizeram novas coletas depois da transfusão da menina.
Eles haviam passado por teste de HIV posteriormente — obrigatório em cada doação — por isso, foram descartados da lista de suspeitos. As outras cinco pessoas foram convocadas para novo exame. Descobriu-se que uma delas tem o vírus.
Logo que recebeu a informação da contaminação da recém-nascida, há três semanas, o Hemocentro de Brasília comunicou o problema à Secretaria de Saúde do Distrito Federal, ao Ministério Público do DF e à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). O promotor Diaulas Ribeiro, da Promotoria de Defesa dos Usuários de Saúde (Pró-Vida), instaurou um processo. Mas não quis dar entrevista.
Doar sangue é um ato de desprendimento e solidariedade, por isso tem de ser consciente. O doador, com um gesto tão nobre, não pode ser responsabilizado por uma fatalidade
Josenilda Gonçalves, gerente do Programa DST Aids no Distrito Federal
Os nomes da criança, dos pais e dos doadores não foram publicados para serem preservados.
Uma criança alegre, extrovertida e inteligente
A menina contaminada durante a transfusão tem hoje dois anos e recebe cuidados especiais por causa do problema no fígado. Os pais cuidam da limpeza de todos os cômodos da casa, em uma cidade do Distrito Federal, para reduzir os riscos de infecção. A alimentação da garota é à base de frutas e verduras. Por recomendação médica, come o mínimo de gordura. A criança toma remédios para evitar problemas com o fígado. Mas não precisa de medicamentos para combater o vírus HIV, já que a doença não se manifestou.
De acordo com parentes próximos, a menina é alegre, extrovertida, inteligente e gosta de desenhar. Nem as paredes da casa escapam. Assistir a desenhos e ao programa da Xuxa é outro passatempo da garota.
Ela passa a maior parte do tempo com o pai, que está desempregado e tenta concluir o segundo grau para conseguir um emprego. Ele trabalhava como auxiliar administrativo de uma empresa. A mãe ganha pouco mais de R$ 300 por mês como manicure. O salário não é suficiente para sustentar a menina e o irmão mais velho. A família recebe doações de amigos. Os parentes não têm condições financeiras para ajudar.
Desde que soube que a filha foi contaminada pelo HIV, no mês passado, a mãe não dorme direito e entrou em depressão. O marido procura se manter equilibrado para evitar que a família não se desespere. Mas está ansioso por uma resposta. Ele quer saber como a filha contraiu o vírus. A menina recebe acompanhamento médico pelo programa DST Aids do Distrito Federal.