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12/06/2005 - Revista Isto É

Pesquisador critica quebra de patentes de remédios contra a Aids

Pesquisador critica quebra de patentes de remédios contra a Aids e aponta falhas no programa nacional de controle da doença, considerado modelo

O pesquisador Mauro Schechter é uma figura polêmica. Professor de doenças infecciosas da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro e chefe do Laboratório de Pesquisas em Aids do Hospital Clementino Fraga Filho, ele não teme botar a boca no trombone. Vai, por exemplo, na contramão dos aplausos à aprovação, há duas semanas, do projeto de lei que permite a quebra de patentes de remédios contra a Aids. “É um assunto que desperta reações apaixonadas”, diz.

Outra estocada atinge mais um fator de orgulho nacional: os remédios genéricos. “É uma indústria que dá lucros fabulosos e não investe em inovações”, acusa. O médico ainda aponta falhas no Programa Nacional de DST-Aids, considerado modelo no mundo. A falta de dados confiáveis e a ínfima produção científica brasileira sobre a doença estão entre as críticas. Aos 52 anos, Schechter é um dos coordenadores do Congresso Mundial de Aids, que acontecerá no Riocentro, em julho.

ISTOÉ – O sr. é favorável à quebra de patentes dos remédios contra a Aids?

Mauro Schechter – Quero deixar claro que tenho relações profissionais com inúmeras indústrias, regidas por contratos de consultoria. Sou pesquisador da UFRJ e meu emprego não está em jogo por isso. A questão é conciliar a necessidade de renovação com o acesso ao tratamento. O detentor da patente do efavirenz (Bristol Meyers-Squib), por exemplo, já ofereceu ao governo o licenciamento há dez anos. Por que fazer compulsoriamente algo que poderia ser feito voluntariamente? O lopinavir é da Abbott, que declarou a intenção de transferir para o Brasil a produção mundial do remédio. O que ele pode gerar de divisas e impostos pagos é mais do que o governo gasta com a compra de remédios.

ISTOÉ – O governo é capaz de checar a qualidade dos genéricos?

Mauro Schechter – Há pessoas dedicadíssimas na Agência Nacional de Vigilância Sanitária, mas eles têm um quadro de pessoal restrito. Como vigiar a produção do País inteiro?

ISTOÉ – Existe garantia de que o genérico seja igual à droga de marca?

Mauro Schechter – Se a curva da quantidade do genérico no sangue (diferença entre o momento em que a pessoa o ingere até atingir o efeito desejado) for semelhante à do de marca, ele é bioequivalente, o que não quer dizer que terá a mesma eficácia.

ISTOÉ – Que medidas poderiam ser tomadas para reduzir os custos do tratamento contra a Aids?

Mauro Schechter – A padronização de tratamento, como é feito com pacientes de tuberculose. A Aids começa a ser tratada na África de maneira direcionada. Há aplicação de testes, como os de resistência do vírus a medicamentos, sem demonstração na literatura científica de aumento da sobrevida do paciente. O Brasil gasta milhões de dólares por ano com esse teste. Outra medida: um dos remédios mais usados, o Ritonavir, vem em um frasco de 12 comprimidos. Mas hoje só são usados dois e há muita gente jogando fora frascos do remédio.

ISTOÉ – O Programa de Aids estaria perdendo a qualidade?

Mauro Schechter – Ele tem méritos inegáveis, mas há problemas. Não temos dados confiáveis. Em uma auditoria feita há dois anos pelo Banco Mundial, uma das queixas foi a falta de dados com padrão de qualidade. Não é possível saber quantas pessoas entre 15 e 25 anos do sexo feminino tomavam determinado remédio, apesar de não poder ser usado por mulheres com potencial de engravidar. Há muito poucos trabalhos nacionais publicados na literatura internacional, outra falha grave.

ISTOÉ – Quais os demais problemas?

Mauro Schechter – A sustentabilidade do programa está em cheque. O próprio governo diz que não terá recursos para mantê-lo a longo prazo.

ISTOÉ – Por que o governo prioriza a Aids em detrimento de outras doenças?

Mauro Schechter – Em termos de África e de mundo, não há dúvida de que a Aids é uma tragédia sem paralelo. Mas em termos de Brasil, não. No Brasil morre mais gente de ataques cardiovasculares do que de Aids, 86% dos brasileiros têm colesterol alto. O governo deveria produzir remédio para controlar colesterol e inseri-lo na merenda escolar? Compete ao ministro da Saúde estabelecer prioridades.

ISTOÉ – Não teria deixado de ser uma tragédia em grande parte por causa do Programa DST-Aids?

Schechter – Sem dúvida. Mas não podemos esquecer o resto. Hoje, duas crianças chegam ao posto de saúde, as duas com infecção no ouvido. A que tem HIV sai com antibiótico, a outra leva a receita. Isso tem de ser discutido.