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ÓRFÃS DA AIDS NA ÁFRICA
04/06/2005 - New York Times
Pobreza. machismo e perda precoce dos país causam desamparo
Eles se conheceram há um ano em uma estrada de terra do lado de fora da casa de sua tia, nesta cidade em dificuldades, onde as casas são feitas de junco amarrado e a única água disponível vem de poços. Flora Muchave tinha 14 anos. Elario Novunga tinha 22, era bem vestido e, segundo Flora, cheio de promessas.
Lisario Mariquele, de 15 anos, segura seu bebê durante aula que acontece ao ar livre
Uma se destacou: a família de Flora estava à beira da miséria desde que o pai dela, um mineiro, morreu em decorrência da Aids em 2000. Elario disse que mudaria isto. "Ele pediu que eu fizesse sexo com ele, e ele garantiria tudo o que eu precisasse", lembrou Flora. "Ele disse que cuidaria de tudo para mim."
Ele mentiu. Elario deu a Flora o equivalente a cerca de US$ 4 e um bebê, cujo nascimento iminente a forçou a abandonar a 6ª série. Antes da mãe de Flora ter morrido em maio, aparentemente em conseqüência da Aids, ela perdoou sua filha por ter ignorado seus alertas sobre homens de fala mansa. Mas ela previu um futuro sombrio para sua única filha.
"Agora você vai sofrer", Flora lembrou do lamento dela em seu leito de morte.
A história admoestadora de Flora Muchave não é nova; a África possui a mais alta taxa do mundo de gravidez adolescente e o menor número de meninas matriculadas na escola primária. Mas nos últimos 25 anos, as tendências eram positivas. As meninas africanas, como as meninas de toda parte, estavam se casando mais tarde e um percentual crescente estava na escola.
A epidemia de Aids agora ameaça eliminar estes avanços conquistados arduamente. Órfãs e empobrecidas pela morte dos pais, as meninas daqui estão sendo levadas ao sexo em idades chocantemente cada vez mais precoces para sustentar a si mesmas, seus irmãos e, freqüentemente, seus próprios filhos.
"A Aids está revertendo as tendências que estavam melhorando para as meninas", disse Margie de Monchy, a diretora regional de proteção infantil do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef). "Nós realmente temos que olhar para estas opções ruins --e às vezes falta de opções-- que elas têm para sobreviver."
Com 12 milhões de crianças órfãs na África sub-Saara por causa da Aids, abunda sofrimento entre os meninos e meninas. Mas as meninas órfãs tendem a se sair pior, dizem as autoridades de ajuda humanitária, porque tradicionalmente possuem um status inferior na sociedade africana, são mais vulneráveis à exploração sexual e, por motivos anatômicos, apresentam maior probabilidade do que os meninos de contrair o HIV.
No Zimbábue, um novo estudo do Unicef revelou que as meninas órfãs apresentam uma probabilidade três vezes maior de ser infectadas do que as meninas cujos pais ainda estão vivos. Na Zâmbia, as meninas órfãs são as primeiras a abandonarem a escola.
Na capital da Zâmbia, Lusaka, parentes pobres obrigam algumas meninas órfãs, de até 14 anos, a ir para as ruas à noite, dizendo que precisam ganhar seu sustento, como revelou uma pesquisa recente.
Em Lesoto, um número crescente de meninas adolescentes são forçadas a trabalhar como criadas ou prostitutas, informaram pesquisadores do Unicef.
"As meninas órfãs estão na absoluta marginalidade", disse James Elder, o porta-voz do Unicef no Zimbábue. "Elas estão no fundo do poço. Elas apresentam uma probabilidade muito alta de adotar comportamento de risco apenas para sobreviver."
Patrice Lumumba, na costa do Índico e a três horas de carro ao norte da capital, Maputo, está longe de ser a cidade mais pobre de Moçambique. A maioria das suas casas de junco ou concreto é bem construída e bem cuidada. A maioria dos moradores tem móveis, mesmo que apenas um conjunto de cadeiras de plástico oferecidas aos convidados.
Mas a Aids atingiu duramente aqui, como em toda parte no Sul da África. Uma entre cada seis pessoas com idade entre 15 e 49 anos está infecta com o vírus aqui na província de Gaza.
Dos 43 mil habitantes da cidade, 1.583 são órfãos. Um entre quatro alunos do primário perdeu pelo menos um dos pais, segundo Pedro Mausse, diretor da escola primária.
Os pais de Flora mobiliaram sua casa de junco de dois cômodos, que possui um telhado de metal corrugado, com um guarda-roupa, pratos e duas poltronas estofadas. Flora disse se lembrar de como o salário de seu pai, que trabalhava nas minas da África do Sul, sustentava a família.
Após a morte dele em 2000, aos 36 anos, ela disse, o que sua mãe ganhava como cozinheira em uma escola bíblica --o equivalente a menos de US$ 35 por mês-- já não era o bastante.
Ela não podia mais contratar um trator ou bois para arar os dois campos da família. "Era difícil conseguir comida, roupas e sabão", disse Flora, uma garota baixa e roliça com sorriso fácil, cílios curvados e pele de ébano.
A situação a deixou ainda mais suscetível às promessas de Elario, ela disse. "Na verdade, eu fui enganada", disse ela, sorrindo em embaraço, enquanto esperava por alimento doado no lado de fora de uma organização financiada pela Unicef. "Ele é um grande mentiroso."
A mãe de Flora, Ester, ainda estava trabalhando como cozinheira em outubro passado quando uma parente lhe disse que Flora estava grávida.
"A princípio eu neguei", disse Flora. "Então comecei a chorar. Então ela começou a chorar. Ela disse: 'Eu alertei você contra isto. Agora você vai descobrir por conta própria'."
A morte da mãe em 9 de maio ainda está vívida na mente de Flora. Naquela manhã, ela disse, Ester chamou Flora e o irmão dela de 7 anos até o lado de sua cama e ordenou que tomassem o café da manhã.
"Me disseram que vocês não estão comendo, que vocês estão passando todo o tempo chorando", Flora lembrou dela ter dito. "Independente de chorar ou não, eu ainda assim vou morrer. E não sei quem cuidará de vocês."
Apesar do corpo de Flora estar pesado após oito meses de gravidez, ela ainda parece uma adolescente comum. Seu rosto está coberto de acne, sua blusa preta de poliéster é cheia de babados, sua sandália de plástico é de uma cor amarela alegre. Mas não há mais nada de infantil em sua vida.
Os parentes de seu pai abandonaram a ela e a seu irmão porque a mãe ficou com os bens do marido depois que ele morreu, insultando a tradição que diz que os parentes do homem, e não a esposa, devem herdar sua riqueza. A irmã de sua mãe, uma viúva com cinco filhos, não pode oferecer muita ajuda.
Assim foi Flora que, em uma quarta-feira de maio, trouxe arrastando para casa um saco de mais de 30 quilos de espigas de milho, 3 quilos de feijão e um litro de óleo de cozinha do centro dirigido pela Reencontro, patrocinada pela Unicef, uma caridade moçambicana que ajuda pessoas com Aids e órfãos. No dia seguinte, ela equilibrou na cabeça um balde de água de 25 quilos e caminhou 800 metros de casa até o poço da cidade.
"Não há ninguém para ajudar", disse ela, ensopada pela água que escorria do balde, enquanto lutava para descê-lo. "A responsabilidade está nas minhas mãos, então tenho que fazê-lo."
Os ativistas da Reencontro estão pedindo para que Flora volte à escola, e Flora, que disse que costumava tirar boas notas, está interessada. "Mas eu não sei quem pagará pelos livros", disse ela.
Flora é apenas uma das 639 meninas órfãs em Patrice Lumumba identificadas pela Reencontro. Há dois anos, um funcionário encontrou Lisario Mariquele, já grávida aos 13 anos e cuidando de sua mãe doente e três irmãos mais novos. O pai dela tinha morrido pelo menos quatro anos antes, aparentemente em decorrência de Aids.
Apesar de o irmão mais novo dela ter chegado até a terceira série, Lisario nunca freqüentou a escola. Seu conhecimento se resumia às tarefas: baldear água, cozinhar sobre uma fogueira, ajoelhar-se sobre uma bacia de madeira com um pau pesado para transformar o milho em pasta. O trabalho dela se multiplicou no ano passado depois que seu filho nasceu e sua mãe, portadora do vírus HIV, morreu.
Em uma manhã recente, Lisario parou de moer o milho para conversar, com seus braços e blusa respingados de pasta branca. O filho dela, Vincente, dormia ao lado em uma esteira de bambu suja, anêmico e sofrendo de diarréia. O campo de terra ao redor deles estava repleto de garrafas de cerveja, sapatos, trapos e outros entulhos.
O pai do filho dela se chama João, ela disse. Ela nunca soube o sobrenome ou a idade dele. Ela concordou em fazer sexo, ela disse, porque "ele prometeu cuidar de mim".
"Foi um erro da minha parte", disse ela. Quando o bebê nasceu, ela achou João em uma cidade próxima. Ela disse a ele: "O bebê é seu".
Sob pressão da Reencontro, ela agora está matriculada na primeira série. Dia sim, dia não durante a semana, à tarde, ela prende Vincente nas suas costas com uma tira de tecido e caminha até a escola, onde uma aula de duas horas para adultos é ministrada sob uma árvore.
Ela não está devidamente equipada e se sente insegura lá. Em uma recente quarta-feira, ela teve que pedir um lápis e apontador emprestados. Ela comparou repetidas vezes suas anotações de português, a língua oficial de Moçambique, com as de um colega de classe.
"Eu aprendi muitas coisas", disse ela na manhã seguinte, enrolando às pressas um pano ao redor de seu bebê nu. "Mas não consigo lembrar delas agora."