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PRESIDENTE MUNDIAL DA NOVARTIS

03/01/2005 - Agência Aids

Fala sobre patentes em entrevista à Revista Veja

A Revista Veja desta semana publicou uma entrevista com o presidente mundial do laboratório farmacêutico Novartis, Daniel Vasella. No texto, o presidente reconhece o erro das indústrias farmacêuticas na polêmica sobre a quebra de patentes contra Aids para os países africanos. “Parecia que nossos lucros eram mais importantes que o destino dos doentes mais pobres do mundo – e essa foi uma má decisão. Deveríamos ter buscado uma alternativa. Situações excepcionais exigem soluções excepcionais”, comenta Vasella.
O presidente da Novartis é radicalmente contrário à quebra de patentes de medicamentos. Segundo Vasella, se cada país pudesse quebrar as patentes dos remédios anti-aids, não haveria investimento mais em anti-retrovirais.

Entrevista de Marcelo Carneiro

O presidente de um dos cinco maiores laboratórios farmacêuticos do mundo diz que sem respeito ao direito autoral acabam também os avanços no combate ao câncer e a outras doenças.

Em 1988, aos 35 anos, o médico suíço Daniel Vasella decidiu abandonar os plantões em um hospital universitário para trabalhar na área de vendas de um laboratório farmacêutico em Nova Jersey, nos Estados Unidos. Se o projeto não desse certo, poderia voltar ao consultório, pensava. Hoje, Vasella é o presidente mundial da Novartis, empresa que fatura anualmente 30 bilhões de dólares e é um dos cinco gigantes da indústria farmacêutica. O executivo tornou-se paradigma do implacável estilo americano de negociação. Em 2001, protagonizou uma polêmica com o governo brasileiro por causa da ameaça de quebra de patentes de medicamentos contra aids. Ele fala sem rodeios sobre um dos assuntos mais constrangedores para seu ramo atualmente: os graves efeitos colaterais de remédios, que recentemente resultaram na retirada de alguns produtos do mercado. "É errado acreditar que remédios não tenham efeitos colaterais ou que os laboratórios conheçam todos esses efeitos quando uma nova droga é lançada", disse Vasella, em entrevista por telefone a VEJA, de seu escritório na Basiléia, dias antes de sua viagem ao Brasil, na qual encontrará o presidente Lula.

Veja – Em setembro, o laboratório Merck teve de retirar o antiinflamatório Vioxx das prateleiras. O remédio está sob suspeita de provocar infarto nos pacientes. Em dezembro, outro laboratório, o Pfizer, admitiu que o Celebra também poderia causar problemas cardíacos. O que está acontecendo com a indústria farmacêutica?

Vasella – Esses episódios trazem várias lições. A primeira delas: é errado acreditar que remédios não tenham efeitos colaterais ou que os laboratórios conheçam todos esses efeitos quando uma nova droga é lançada no mercado. Não há nenhum remédio que não tenha efeito colateral. Eu disse nenhum. Cada droga tem seus efeitos, mais ou menos severos. Quando um remédio é lançado, ele passa a ser usado como tratamento para 10.000 ou 100.000 pacientes, e você então começa a ver efeitos colaterais que não via quando esse medicamento era administrado a um número menor de pessoas. Por isso é vital que a indústria farmacêutica, os médicos, os pacientes e os órgãos governamentais trabalhem juntos, em uma operação de vigilância, para identificar os efeitos colaterais quando os remédios passarem a ser usados por mais pessoas. Nós tratamos um paciente porque ele está doente e porque temos a esperança de que a droga que ele está recebendo promova mais benefícios do que efeitos colaterais.

Veja – Nos últimos três anos, a Novartis reduziu em até 35% o tempo médio da chegada de uma nova droga às farmácias, das primeiras pesquisas ao lançamento no mercado. Essa rapidez não compromete a segurança do medicamento?

Vasella – Não. Nós conseguimos acelerar esse processo melhorando a tecnologia. Mas existe um dilema. Ao mesmo tempo, hoje as autoridades da área regulatória têm exigido estudos clínicos com um número maior de pacientes, o que os torna mais demorados e mais caros. A discussão em torno do Vioxx e do Celebra certamente forçará as autoridades a assumir uma atitude ainda mais conservadora na liberação dos medicamentos.

Veja – Mas, depois desses episódios, o FDA, agência americana que é referência mundial no controle de medicamentos, foi acusado por especialistas de ter afrouxado seus mecanismos de vigilância.

Vasella – Não vejo razão para nenhum tipo de suspeita sobre a atuação do FDA. Nossa relação com a agência é dura, às vezes difícil, mas sempre orientada por padrões científicos e racionais.

Veja –Para várias pessoas, a indústria farmacêutica é vista como um negócio mais focado em marketing do que em encontrar a cura das doenças. Por que os laboratórios têm essa imagem?

Vasella – O sistema de saúde envolve pacientes, médicos, hospitais, laboratórios, farmácias e até o governo. Nós, porém, somos os únicos que tornamos públicos nossos lucros. É uma situação profundamente difícil. Por um lado, produzimos remédios que ajudam pacientes. Por outro, temos lucro com isso. Às vezes, muito lucro. Há alguns anos, tivemos uma polêmica sobre a liberação de patentes de medicamentos contra a aids para os países africanos. A indústria farmacêutica não teve um bom comportamento naquele episódio. Parecia que nossos lucros eram mais importantes que o destino dos doentes mais pobres do mundo – e essa foi uma má decisão. Deveríamos ter buscado uma alternativa. Situações excepcionais exigem soluções excepcionais.

Veja- Mas, em 2001, em meio à guerra entre o Brasil e os grandes laboratórios envolvendo a quebra de patentes para medicamentos contra a aids, o senhor disse que não investiria em um país que não respeita a propriedade intelectual. Sua opinião mudou?

Vasella – Não. Quem despreza a propriedade intelectual está ferindo os pacientes. É uma atitude anti-ética, porque sem o respeito às patentes não haverá progresso. Tenho de levantar minha voz contra isso. Também acredito que nós precisamos estabelecer parcerias com governos e com organizações não-governamentais ou multilaterais para dar acesso a medicamentos para pessoas que não tenham condições de pagar. Mas quebrar patentes é uma atitude míope de quem acha que está ajudando o paciente. Você pode ajudar, a curto prazo, mas está destruindo a possibilidade de novas terapias para as gerações futuras. Nesse assunto, sou inflexível, não há ambigüidade. No caso dos países da África, acho que os laboratórios aprenderam a lição. Acredito também que a indústria é muito melhor do que a forma como está sendo vista hoje. É importante lembrar que, ao longo dos últimos quarenta anos, o lançamento de novos medicamentos, por parte dos laboratórios, reduziu dramaticamente a mortalidade da população. Nos casos de infarto, por exemplo, essa diminuição chegou a 60%. A sociedade precisa decidir se quer continuar a contar com esse tipo de avanço. Para que existam empresas investindo no desenvolvimento de novas terapias, é necessário que haja respeito às patentes e que os remédios tenham um preço capaz de financiar as pesquisas, além de gerar lucro. Afinal, nós trabalhamos em uma economia capitalista.

Veja – O senhor discutirá essa questão na reunião que terá com o presidente Lula?

Vasella – Tenho certeza de que isso será colocado em discussão. A Novartis não produz medicamentos contra a aids, mas eu gostaria que o governo e as companhias que têm esses remédios chegassem a um acordo que atendesse à necessidade dos pacientes e ao mesmo tempo respeitasse a propriedade intelectual. Imagine se cada país pudesse quebrar as patentes dos remédios anti-aids. Em pouquíssimo tempo, nós estaríamos na mesma situação que há, hoje, para as doenças tropicais. Ninguém investiria um centavo em pesquisa, porque não se poderia ganhar dinheiro com ela. Já no século XVIII, Adam Smith dizia que o comportamento das pessoas está diretamente relacionado aos seus interesses. E a melhor maneira de termos novos produtos é criar, para as empresas, o interesse em desenvolvê-los. Não acredito que os governos tenham bons institutos de pesquisa. Nos países do antigo bloco soviético, apesar de muito dinheiro ter sido investido nos institutos, quase nenhuma nova droga foi descoberta.

Veja – A Novartis, uma empresa de origem européia, investiu 4 bilhões de dólares na construção de um centro de pesquisa nos Estados Unidos. Seu estilo de gestão é mais americano do que europeu. Isso lhe traz problemas em casa?

Vasella – Nós também mudamos nosso escritório central para Cambridge, nos Estados Unidos, e isso não nos criou nenhum problema. Hoje, nós somos vistos como uma empresa suíço-americana e posso dizer que a cultura gerencial americana é a mais avançada. A razão de termos instalado o centro de pesquisa em Cambridge, próximo do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) e de Harvard, é simples. Nos EUA, nós teremos acesso aos maiores talentos científicos, mais facilmente do que teríamos em qualquer outro lugar no mundo. Na Europa, tem sido cada vez mais difícil encontrar pesquisadores e atrair talentos. Cerca de 70% dos estudantes europeus que fazem pós-doutorado nos Estados Unidos preferem permanecer lá a retornar a seu país.

Veja – E por que isso ocorre?

Vasella – A sociedade americana acredita, ama e aplaude o progresso. Na Europa, nós temos uma série de dúvidas a respeito do progresso. É uma sociedade mais conservadora. Além disso, os governos europeus têm gasto muito dinheiro em programas sociais, de saúde e com os desempregados e os aposentados, mas esquecem que os indivíduos devem ter responsabilidade e liberdade. Hoje, as pessoas desenvolveram uma atitude de esperar tudo do governo. Se você se aposenta aos 60 ou aos 55 anos, quando ainda poderia trabalhar por mais tempo, quem vai pagar por isso? É um problema que vai além da indústria farmacêutica.

Veja – Com a ajuda principalmente da internet, muitos pacientes conseguem um volume enorme de informações sobre suas doenças. Como isso afeta a relação médico-paciente?

Vasella – Hoje, os doentes, especialmente os que sofrem de um mal crônico ou muito grave, conseguem acesso rápido a uma grande quantidade de informações. Em alguns casos, eles sabem mais que seus próprios médicos, e isso é um desafio para esses profissionais. Mas os pacientes não têm como comparar seu caso com o de outros doentes, fazer um julgamento sobre qual é o tratamento mais apropriado e qual não é recomendável, algo que só um médico está apto a fazer. Portanto, os médicos continuam tendo papel crucial no tratamento.

Veja – Um dos desafios da medicina tem sido criar remédios que retardem os efeitos de doenças geralmente associadas à velhice. Como a indústria tem reagido a isso?

Vasella – Esse é, de fato, um dos maiores desafios, em razão das mudanças demográficas que estão ocorrendo no mundo, tanto nos países desenvolvidos quantos nos que estão em desenvolvimento. O número de pessoas acima de 65 anos, na Europa, vai crescer quase 27% nos próximos 25 anos. Isso tem impacto nos custos de saúde, porque pessoas acima dos 55 anos passam a usar mais os serviços médicos, consumir mais remédios e sofrer de doenças crônicas como arteriosclerose, mal de Alzheimer ou demência.

Veja – Por que é tão difícil encontrar a cura para as doenças que afetam o cérebro?

Vasella – Há várias razões. A mais significativa é que o cérebro é o órgão mais complexo. Além disso, as doenças e terapias associadas ao cérebro dificilmente podem ser comparadas com modelos usados em outros animais, como ocorre nos demais órgãos do corpo humano. Isso torna as pesquisas nessa área uma sucessão de estudos de tentativa e erro. No momento, estamos trabalhando em um tipo de vacina contra o mal de Alzheimer, mas eu devo ser prudente, porque não conseguimos ainda entender completamente a doença. Estes são nossos dois maiores problemas: falta de conhecimento e alta complexidade do cérebro.

Veja – Até os 35 anos, o senhor era um médico que atendia em consultórios, sem nenhuma experiência empresarial ou executiva. Como foi a transição para o mundo da indústria farmacêutica?

Vasella – No primeiro ano, foi bastante difícil. Eu era um médico respeitado, mas, quando decidi mudar de carreira, não conhecia nada. Tive de começar do zero. As pessoas me olhavam e se perguntavam: "O que ele está fazendo aqui, por que não continuou a ser médico, será que matou algum paciente?". Após um ano, ganhei o respeito de meus colegas. Depois de dois anos, não tive dúvida: queria continuar no mundo dos negócios.

Veja – O senhor decidiu tornar público seu salário (o equivalente a 39 milhões de reais anuais), uma atitude rara entre executivos líderes de empresas. Qual a razão?

Vasella – Discutimos bastante sobre essa decisão. Por um lado, havia a questão da privacidade, e quanto uma pessoa ganha é um dado privado. Por outro, os acionistas queriam mais transparência. Nós chegamos à conclusão de que os acionistas deveriam saber quanto eu ganho. É claro que isso tem efeitos negativos e positivos. Há gente que, ao saber qual é meu salário, passa a me ver com outros olhos. Até para meus filhos é complicado explicar que eu ganhe tanto. O lado bom é que não tenho nada a esconder.

Veja – Aos 5 anos, o senhor descobriu que tinha asma. Aos 8, contraiu tuberculose e meningite. Aos 10, perdeu sua irmã mais velha, vítima de câncer. Três anos depois, viu seu pai também morrer, por causa de complicações pós-cirúrgicas. Em que medida a proximidade com a doença e a morte foram determinantes para sua vocação?

Vasella – Quando se é paciente por um bom tempo, passa-se a saber como os doentes se sentem. Isso não é fácil. Quando se enfrenta a morte tão cedo, descobre-se que faz parte da realidade da vida a certeza de que um dia vamos morrer. Você não fica pensando nisso a toda hora, mas passa a ter consciência de que esse dia chegará. Obviamente, minha decisão pela medicina está ligada a dois fatores. Primeiro, o desejo de ser um médico tão bom quanto os que eu tive. Segundo, ter o poder, com novos medicamentos, de mudar dramaticamente para melhor a qualidade de vida dos pacientes. Minha consciência a respeito da morte deu-me fome pelas descobertas.

Fonte: Revista Veja